Amigas e amigos,
Em seu livro mais recente, Monstruário de fomes (Patuá, 2019), o poeta Ruy Proença investiu numa forma poética pouco praticada no Brasil:
o poema em prosa. De fato, entre os nomes mais celebrados da poesia brasileira são raras as ocorrências desse
tipo de poema.
Historicamente, o poema em prosa conquistou visibilidade especial com o livro de
Charles Baudelaire (1821-1867) Petits Poèmes en Prose, também conhecido
como Le Spleen de Paris, publicação póstuma de 1869. Talvez a citação mais lembrada dessa obra seja o trecho que diz: “É preciso estar sempre embriagado
(...). Com vinho, poesia ou virtude, a escolher. Mas embiaguem-se”.
Ao retomar o formato baudelairiano, Ruy Proença oferece aos leitores um volume obviamente resultante de um projeto. Na avaliação
do poeta e crítico Renan Nuernberger, autor do posfácio de Monstruário de Fomes, esse livro constitui “uma espécie de reescrita de Caçambas” (Editora 34, 2015),
título anterior de Proença destacado aqui na edição n. 343 do poesia.net.
Para Nuernberger, Proença combina sua experiência poética com uma “formulação prosaica, localizada entre o diário e o documentário” e assim “relativiza as fronteiras
entre o registro e o devaneio”. De certo modo, a prosa puxa o texto para o relato mais factual e a poesia, ao contrário, o empurra em direção à fantasia.
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Para este boletim, selecionei cinco poemas em prosa de Ruy Proença. O primeiro é “O Bicho”, a experiência do “bicho-homem”, certamente um
animal urbano, quando se vê, segundo o poeta, num ambiente campestre.
Em seguida, vem “O Amor”. Aqui, em pinceladas breves, tenta-se definir esse contraditório sentimento. Sem, naturalmente, chegar a uma conclusão,
o texto termina perguntando se o amor não será um produto falso e contrabandeado. Aliás, Carlos Drummond de Andrade classifica a relação amorosa como um
“monstruário de fomes enredadas”, expressão da qual Ruy Proença extraiu o título de seu livro. O poema de Drummond é “Mineração do Outro” (do livro
Lição de Coisas, 1962).
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“O Fundo da Cartola” é um poema no qual a imaginação do poeta corre solta. Aí está um momento em que prevalece a fantasia.
Feito de perguntas, brinca com referências artísticas como Bernardo Soares,
o semi-heterônimo de Fernando Pessoa,
a Pasárgada de Manuel Bandeira, uma sonata de Beethoven, uma canção com letra do poeta Torquato Neto... E é
só isso. Puro devaneio.
Como a cumprir a observação feita por Renan Nuernberger, “Janelas” equilibra-se entre o relato de uma viagem e a dimensão
poética extraída dessa experiência. Tanto que um poema (em versos) escrito sobre a viagem é citado no final
do texto em prosa.
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Alcançamos, por fim, o poema “Agora”, dedicado (no final do livro) ao poeta e letrista Arnaldo Antunes. O autor destaca que o texto foi escrito
“em consonância” com uma letra homônima do compositor. Aqui, Proença usa a mesma técnica reiterativa das letras de Antunes e busca, pela repetição
da palavra “agora”, destacar a simultaneidade de tudo nos passos de nossa vida veloz. É como se todos os fatos acontecessem ao
mesmo tempo, desde o banal apodrecimento do mamão na fruteira até a morte da mãe, passando por uma miríade de situações,
sem direito sequer a uma simples pausa para pensar.
Diferentemente de todos os outros no livro, neste poema não aparecem pontos nem vírgulas: tudo se atropela. E mais: não há ponto final,
o que abre a hipótese de que o “agora” se estende indefinidamente. Não por acaso, Ruy Proença fecha o livro com esse texto
que não termina. É tudo muito rápido — e breve.
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Depois dos poemas trazidos de Monstruário de Fomes, encerro a miniantologia ao lado com “Tiranias”, um texto do livro Visão do Térreo (2007).
Fiz questão de citá-lo aqui porque, a meu ver, é um poema que resume estes tempos em que os fatos e a boa
argumentação lógica não são mais suficientes: “os ouvidos têm paredes”.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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