Número 443 - Ano 18

Salvador, quarta-feira, 29 de abril de 2020

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«Calo-me, espero, decifro. / As coisas talvez melhorem. / São tão fortes as coisas! // Mas eu não sou as coisas e me revolto.» (Drummond) *

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Vinicius de Moraes
Vinicius de Moraes



Amigas e amigos,

Este boletim é quinzenal (quarta-feira sim, quarta-feira não). Contudo, para fazer o operário em construção, de Vinicius, rimar com o 1° de Maio, Dia do Trabalho, decidi antecipar esta edição em uma semana. Assim, não haverá um boletim na data esperada: 6 de maio.

Aproveito para dedicar esta edição aos trabalhadores da saúde (médicxs, enfermeirxs, auxiliares etc.), esses titãs que hoje, em tempos de pandemia, sustentam nas mãos o bem mais precioso de milhares de pessoas — a vida.

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Vivemos num momento de altíssima tecnologia, quando tudo parece acontecer graças aos poderes de uma varinha de condão do Google ou por obra de algum truque de geolocalização (GPS, para os íntimos). Tudo virtual.

Nesse contexto, uma das coisas que pessoalmente me incomodam é a falsa democracia do celular. Todo mundo, do morador de favela ao mais alto executivo do banco, carrega uma dessas maquininhas (às vezes, mais de uma). E somos todos iguais perante o WhatsApp.

Deixemos bem claro: nada contra a tecnologia. Que se instalem os mais sofisticados dispositivos, as mais intrincadas inteligências artificiais. Mas que elas venham em benefício de todos, não como ferramentas de domínio e controle de uns poucos sobre os demais.

Retomemos o eixo: o trabalho. Diante dessa névoa “democrática”, o pão parece pousar em nossas mesas como por um passe de mágica. Esquecemos a longa sequência de pessoas que plantam, colhem, labutam nas fazendas, minas e fábricas. Esquecemos também os trabalhadores em serviços, que não fazem o pão, mas se dedicam a uma miríade de atividades que facilitam nossa vida...

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O poema discutido nesta edição celebra o trabalhador e o mundo do trabalho. Lembrei-me dele ao pensar nessa “névoa” de esquecimento e no 1° de Maio, o Dia do Trabalho. Refiro-me ao poema “O Operário em Construção”, do poeta, compositor musical e cronista carioca Vinicius de Moraes (1913-1980).

Publicado originalmente no livro Novos Poemas II, de 1959, esse romance — no sentido ibérico de poema narrativo, trovadoresco, como os textos do Romanceiro Gitano, de García Lorca e nossos folhetos de cordel — constitui um dos pontos áureos da vertente social na poesia de Vinicius de Moraes.

Vinicius inspira-se num trecho do evangelho de Lucas. É o momento no qual, segundo a Bíblia, Cristo se recolhe para jejuar durante 40 dias e 40 noites no deserto. Então, quando ele já estava enfraquecido pelo longo jejum, o Diabo aparece para tentá-lo, oferecendo-lhe “todos os reinos do mundo”. Cristo resiste.

Uma curiosidade. No volume Poesia Completa e Prosa (Nova Aguilar, 1986), a epígrafe bíblica desse poema dá o trecho da tentação de Cristo como parte do capítulo V do evangelho de Lucas. Conferi em duas traduções da Bíblia (uma protestante e uma católica) e verifiquei que o episódio citado está na verdade no capítulo 4, ou IV. Na transcrição ao lado, introduzi esta discreta correção.

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Passemos à leitura do poema. Nos primeiros versos, o trabalhador não compreende sua posição na sociedade. Um dia, porém, ele toma consciência de sua importância. Escreve Vinicius: “De forma que, certo dia / À mesa, ao cortar o pão / O operário foi tomado / De uma súbita emoção / Ao constatar assombrado / Que tudo naquela mesa / — Garrafa, prato, facão — / Era ele quem os fazia / Ele, um humilde operário, / Um operário em construção”. O trabalhador percebeu mais ainda: era ele quem fazia tudo: não só o que podia ser visto imediatamente ao seu redor, mas tudo mesmo: “Casa, cidade, nação!”

Nesse momento, diz o poeta, o operário ampliou-se em múltiplas direções: “cresceu em alto e profundo / em largo e no coração”. Com isso, adquiriu “a dimensão da poesia”. Assim, passou a conversar com os colegas de trabalho, tornou-se uma liderança. “O que o operário dizia / Outro operário escutava”.

Com esses dois movimentos — a tomada de consciência dos processos de sua própria vida e sua aproximação a outros trabalhadores —, o operário muda sua atitude. Ele, “que sempre dizia sim / Começou a dizer não”.

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Como se poderia esperar, o patrão recomenda aos seus capangas que “convençam” o trabalhador a pensar diferente. Não é difícil adivinhar que os argumentos usados para dissuadi-lo são a mais brutal violência. “Teve seu rosto cuspido / Teve seu braço quebrado / Mas quando foi perguntado / O operário disse: Não!”.

Chega, então, o momento “bíblico”. Já que não consegue dobrar o operário pela força, o patrão, repetindo a tentação de Cristo, resolve corromper o empregado. Leva-o ao ponto mais alto da construção, promete a ele mundos e fundos para que passe a ver as coisas pelo seu ponto de vista, de patrão. “E o operário disse: Não!”.

Era, no dizer do poeta, a voz do operário construído, não mais em construção.


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Não é a primeira vez que Vinicius de Moraes — poeta, cantor, compositor, autor teatral e cronista — comparece a este boletim. Ele já esteve aqui em três outras oportunidades:

* poesia.​net n. 300 (2013)

* poesia.​net n. 240 (2007)

*
poesia.​net n. 12 (2003)


Visite o site do poeta: viniciusdemoraes.com.br — um dos raros casos em que os herdeiros da obra de um grande autor se dispõem a compartilhar com o público informações, textos, fotos, áudio e vídeo.

Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado


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O operário em construção


• Vinicius de Moraes


              



Djanira-reflection-1995
Djanira, pintora paulista, Colheita (1961)


O OPERÁRIO EM CONSTRUÇÃO


E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:
— Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu. E Jesus, respondendo, disse-lhe:
— Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.
    LUCAS, cap. IV, vs. 5-8.


Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.

Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
— Garrafa, prato, facão —
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
— Exercer a profissão —
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.

E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:

Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.

E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.

Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
— “Convençam-no” do contrário —
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.

Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!

Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
— Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.

Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!

— Loucura! — gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
— Mentira! — disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.

Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.



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www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2020




Vinicius de Moraes
      in Poesia Completa e Prosa
      Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1986
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* Carlos Drummond de Andrade, “Nosso Tempo”, in A Rosa do Povo (1945)
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* Imagem: obra da pintora paulista Djanira (1914-1979).