Número 445 - Ano 18

Salvador, quarta-feira, 10 de junho de 2020

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«Sempre haverá / uma voz / que te chama / de onde o prodígio / não veio.» (Francisco Carvalho) *

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Alexandre Bonafim
Alexandre Bonafim



Amigas e amigos,

O poeta Alexandre Bonafim (Belo Horizonte, 1976) é velho conhecido dos leitores do poesia.​net. Já esteve esteve aqui em duas outras edições: n. 339 (setembro de 2015) e n. 188 (novembro, 2006). Bonafim retorna agora após o lançamento de sua nova coletânea, Noite de Dioniso (Terra Redonda, São Paulo, 2019).

Na mitologia grega, Dioniso — equivalente ao romano Baco — é o deus dos ciclos vitais, das festas, do vinho, do teatro e dos ritos religiosos. Conforme a Wikipédia, Dioniso “nas cidades gregas era representado como o protetor dos que não pertencem à sociedade convencional e, portanto, simboliza tudo o que é caótico, perigoso e inesperado, tudo que escapa da razão humana e que só pode ser atribuída à ação imprevisível dos deuses”.

É sob a égide desse deus dos “desajustados” que Alexandre Bonafim constrói o projeto lírico de seu novo trabalho. Muito próximo da poesia portuguesa, o autor usa como epígrafe de Noite de Dioniso um trecho de Sophia de Mello Breyner Andresen, no qual a escritora dirige um apelo a Baco:

Evohé deus que nos deste
A vida e o vinho
E nele os homens encontraram
O sabor do sol e da resina
E uma consciência múltipla e divina.

•o•

Para este boletim, selecionei seis poemas dionisíacos de Alexandre Bonafim. Mas nesta edição, ao contrário do que faço habitualmente, não os comentarei um a um. Embora sejam textos separados, cada um com seu título, todos fazem parte de um mesmo canto.

No livro, o clima geral é marcado pela solenidade das cerimônias voltadas para os deuses. Esta afirmação parece colidir com a caracterização, apresentada mais acima, de Dioniso como o símbolo daquilo que não se ajusta às regras e convenções.

Contudo, acredito que não há contradição. Aqui estão o encantamento das tragédias, sóis esparramados, ritos de passagem, nascimentos, amores, mortes, sacrifícios. Mas tudo isso se equilibra entre a sutileza pacífica de renitentes flores (orquídeas, rosas etc.) e a violência de sóis esfuziantes, espinhos, sangue, punhais.

•o•

Há, mesmo, uma inclinação para o sensualismo que oscila entre o doce e o trágico, entre o prazer e a danação. Momentos de doçura aparecem como em “Abraço”: “Se eu pudesse abraçar / de uma só vez / um campo de girassóis / teu olhar cairia / límpido / como uma gota / um grão de areia / sobre os escombros / do que nunca fui”.

Observe-se aí: junto à placidez sugerida do campo de flores, vêm os escombros da alma. No mesmo poema, parte 3, o sujeito lírico propõe-se a amar “como quem / é o alvo / de mil flechas / de mil facas”. Ou, ainda, em “Grito”: “Um corpo é grito / de costas para a morte”.

Ao longo de todos os poemas predomina o verso curto, como se pode ver na microantologia ao lado. Assim, o poeta trabalha sempre com a exata dose de lirismo. Não escorrega no exagero, nem se envolve em formulações cifradas.

Termino com um exemplo desse lirismo envolvente e preciso. São exatamente os primeiros versos do poema “Vertical”: “Vertical e nítido / como um cavalo / ao meio-dia / golpeias os quatro / pontos cardeais / de tudo o que sou”.

Evoé, Dioniso!

•o•

Poeta e ensaísta, o mineiro Alexandre Bonafim é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e professor de pós-graduação na Universidade Estadual de Goiás. Em poesia, já publicou um bom punhado de títulos, entre os quais Noite de Dioniso (2019); O Secreto Nome do Sol (2013); Sob o Silêncio do Anjo (2009); e Biografia do Deserto (2006).


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


•o•


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Evoé, Dioniso!


• Alexandre Bonafim


              



Giorgio de Chirico - The disquieting muses-1916-18
Giorgio de Chirico, italiano, As musas inquietantes (1916-18)


NUDEZ

Uma nudez
capaz de clarificar
os objetos
adensando-os
em pura fantasia
concretude selvagem
intensa presença

Uma nudez
de ângulos precisos
perfeita
como prisma
peixe esguio
talhado em pedra
em sêmen

Um corpo
de contornos
em êxtase
jorro pleno do real
geometria
em vertiginosa
febre

Uma nudez
irmã gêmea
da sede
mãe de todo
o existente
pupila do fogo
espelho estilhaçado
pela luz das flores

Um corpo
despido até a ausência
capaz de purificar
o pensamento
concentrando-o
em maciça precisão
correnteza fixa
cortante delírio



Giorgio de Chirico - la.commedia.e.la.tragedia-1926
Giorgio de Chirico, A comédia e a tragédia (1926)


CASA

Habitar-te
em tudo o que és
até onde jamais foste
e nascer de teu ventre
como a sílaba primeira
de teu riso

Morar em ti
como quem escalpela
a face contra espinhos



Giorgio de Chirico - Il trovatora-1916
De Chirico, O trovador (1916)


VERTICAL

1

Vertical e nítido
como um cavalo
ao meio-dia
golpeias os quatro
pontos cardeais
de tudo o que sou

6

Vertical como um deus
caminhas transparente
pela lisura da manhã

O sol escorre de teu dorso
transborda o dia
em tudo o que és

Quase intangível
teu corpo
torna-se mais denso
que a pedra
pássaro atado
não ao ar
mas à terra
pássaro mais terra
que a pedra

Nítido e preciso
caminhas
desnudo
vertical como um deus



Giorgio de Chirico - portrait.premonitoire.de.guillaume.apollinaire-1914.jpg
De Chirico, Retrato premonitório de Guillaume Appolinaire (1914)


MEMÓRIA

O quarto resguarda
a tímida luz de outrora

Entre lençóis
vicejam os gestos
esquecidos
onde ainda hoje
moramos desde sempre

As mãos possuíam
essa clarividência
de tecer os sopros
os ardis da pele
de construir
um barco perdido
onde a respiração
queima a si mesma
ardendo o íntimo
mais secreto
do que éramos

Rosto contra rosto
flanco contra flanco
em única trama

nascíamos do que
jamais fôramos
do que nunca seríamos
inventávamos
um animal selvagem
capaz de nos ferir
de nos lanhar

Ardíamos o esquecimento
como quem acalanta
uma criança de argila



Giorgio de Chirico - Les.jeux.terribles-1925.jpg
De Chirico, Os jogos terríveis (1925)


ABRAÇO

1

Se eu pudesse abraçar
de uma só vez
um campo de girassóis
teu olhar cairia
límpido
como uma gota
um grão de areia
sobre os escombros
do que nunca fui

3

Saber de cor a luz de tua saliva
o cheiro áspero dos teus pelos
o sabor amargo do que em ti
é ausência
e sofreguidão

Amar-te
como quem
é o alvo
de mil flechas
de mil facas



Giorgio de Chirico - mystery-and-melancholy-of-a-street-1914.jpg
De Chirico, Mistério e melancolia de uma rua (1914)


GRITO

Um corpo é um cárcere
violenta o que somos
e o que não somos
até onde não estamos

Um cárcere onde
nos debatemos
contra o sangue
contra os ossos

Um corpo é um grito
de costas para a morte



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www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2020



Alexandre Bonafim
      in Noite de Dioniso
      Terra Redonda, São Paulo, 2019
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* Francisco Carvalho, “Pomar Alheio”, in O silêncio é Uma Figura Geométrica (2002)
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* Imagens: quadros do pintor surrealista Giorgio de Chirico (1888-1978)