Número 446 - Ano 18

Salvador, quarta-feira, 24 de junho de 2020

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«Não há nunca testemunhas. Há desatentos. Curiosos, muitos.» (Carlos Drummond de Andrade) *

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Primo Levi
Primo Levi



Amigas e amigos,

Químico e escritor, o italiano Primo Levi (1919-1987) escreveu memórias, contos, poemas e romances. Judeu, participou da resistência antifascista na Itália, durante a Segunda Guerra Mundial, e terminou prisioneiro no campo de concentração nazista de Auschwitz, na Polônia, experiências que são narradas em suas memórias.

Em seu livro É Isto Um Homem?, publicado em 1947, Levi conta sua passagem em Auschwitz: fome, sede e o cansaço dos trabalhos forçados. Essa narração é considerada um dos escritos memorialísticos mais importantes do século XX. O livro exalta a capacidade humana de resistir à dor e ao sofrimento, preservando a dignidade.

Levi estudava na Universidade de Turim em 1938 quando o governo fascista aprovou leis raciais que proibiam cidadãos judeus de frequentar escolas públicas. Mesmo assim, ele conseguiu se formar em 1941, quando a guerra já estava em curso. Mas seu diploma foi marcado com a expressão raça judia.

Em 1943, o jovem químico juntou-se à Resistência italiana (partigiani) e em dezembro desse ano foi detido pela milícia fascista. Primeiro, foi mandado para um campo de prisioneiros e em fevereiro de 1944 transferido para o campo de Auschwitz.

Por uma série de fatores, Primo Levi conseguiu sobreviver ao inferno do campo de extermínio e foi libertado em 1945. Ao retornar à Itália, tornou-se químico industrial e passou a escrever sobre sua experiência durante a guerra.

A experiência profissional também lhe deu motivos para a criação literária. Seu livro de contos A Tabela Periódica (1975) contém 21 narrativas, cada qual com o nome de um elemento químico e uma história a ele associada: “Argônio”, “Hidrogênio”, “Zinco”, “Ferro”, “Potássio” etc. Em outubro de 2006, O Royal Institute, do Reino Unido, classificou essa obra como o melhor livro de ciência já escrito.

Primo Michele Levi morreu em abril de 1987, aos 66 anos, em consequência de uma queda na escada de sua própria casa. Embora se acredite que o escritor cometeu suicídio, há quem diga que sua queda fatal foi provocada pela tontura, mal-estar de que ele sofria.

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Ao iniciar a produção deste boletim, selecionei apenas poemas da antologia bilíngue Mil Sóis, publicada em 2019 pela editora Todavia, com tradução de Maurício Santana Dias. Depois, ao ler É Isto Um Homem?, decidi incorporar à pequena amostra ao lado o poema de abertura desse livro de memórias.

Começo, portanto, com esse texto, que tem o mesmo título do livro. Escrito quando Primo Levi ainda tinha, bem vívidas, as lembranças de Auschwitz, o texto representa uma espécie de alerta desesperado a quem não viveu aquelas terríveis experiências.

O poema na verdade indaga se os indivíduos sujeitos àquelas provações são mesmo homens e mulheres. Um texto forte, pungente. Para se ler e pensar. Para se ler e fincar pé: nazifascismo nunca mais.

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Vêm a seguir quatro poemas da coletânea Mil Sóis. O primeiro é “Segunda-feira”, escrito em janeiro de 1946, a mesma época das memórias de É Isto Um Homem?. O tom, aliás, é similar. O poeta começa pensando liricamente num trem e conclui que nada é mais triste que esse veículo, por ter “somente uma voz”, “somente um caminho”.

Em seguida, ele se lembra de um burro de carga, daqueles que puxam uma carroça: “Está preso entre duas barras / E não pode olhar para o lado”. Observe-se que a liberdade é a preocupação subjacente. Mas logo o pensamento salta para o ser humano. E conclui: “Um homem também é uma coisa triste”.

O poema seguinte chama-se “Para Adolf Eichmann”. Tenente-coronel nazista, Eichmann (1906-1962) é considerado um dos principais organizadores do Holocausto. Ele foi o macabro gestor da logística de deportação em massa de judeus para os guetos e campos de extermínio nas zonas ocupadas pelos alemães na Segunda Guerra Mundial. Fugiu após a guerra e foi capturado na Argentina em 1960, ano em que o poema foi escrito.

Entende-se, então, por que o texto se dirige a Eichmann como “criatura deserta, homem cercado de morte”. O poema também proclama: “Ó filho da morte, não lhe desejamos a morte”. Levi, ao contrário, deseja que o nazista “viva tanto quanto ninguém viveu” e seja aterrorizado, todas as noites, pelas dores de suas vítimas. Contudo, na realidade, Eichmann foi julgado, considerado culpado por crimes de guerra e enforcado em 1962.

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Se os versos anteriores eram dedicados a um “precioso inimigo”, o poema agora se volta para os companheiros de luta, os partigia, integrantes da Resistência ao nazifascismo. Num texto emocionado, escrito em 1981, quase 40 anos após o conflito, Primo Levi lembra vários combatentes pelos nomes e sabe que muitos já morreram. Os vivos têm cabelos brancos, filhos e netos, e vivem com magras aposentadorias. O final é patético: “De pé, velhos, inimigos de si mesmos: / Nossa guerra jamais terminou”.

O último poema, “Almanaque”, foi lavrado no mesmo ano da morte de Primo Levi. Atento à evolução do mundo, o autor expõe seu descontentamento com o desastre ecológico. “Nós, linhagem rebelde / De muito engenho e pouco siso, / Vamos destruir e corromper / Sempre mais depressa”.

O poeta termina com uma dura e certeira previsão: “Logo, logo dilataremos o deserto / Nas selvas da Amazônia, / No coração vivo de nossas cidades, / Em nossos próprios corações”.

Primo Levi escreve com a voz rouca da História.

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Julgo adequado dizer que, para este boletim, selecionei apenas poemas de temática mais ou menos associada às experiências do autor durante a Segunda Guerra Mundial. Isso, porém, não indica que Levi só escreveu poemas com essa inspiração. Na verdade, ele também produziu textos de sensível percepção lírica, sobre a natureza, animais, flores, amizades, amores e a vida pessoal.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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É isto um homem?


• Primo Levi


              



Vilhelm Bjerke-Petersen - Alternate eroticism-1933
Vilhelm Bjerke-Petersen, dinamarquês, Erotismo alternativo (1933)


É ISTO UM HOMEM?

Vocês que vivem seguros
em suas cálidas casas,
vocês que, voltando à noite,
encontram comida quente e rostos amigos,
    pensem bem se isto é um homem
    que trabalha no meio do barro,
    que não conhece paz,
    que luta por um pedaço de pão,
    que morre por um sim ou por um não.
    Pensem bem se isto é uma mulher,
    sem cabelos e sem nome,
    sem mais força para lembrar,
    vazios os olhos, frio o ventre,
    como um sapo no inverno.
Pensem que isto aconteceu:
eu lhes mando estas palavras.
Gravem-na em seus corações,
estando em casa, andando na rua,
ao deitar, ao levantar;
repitam-nas a seus filhos.
    Ou, senão, desmorone-se a sua casa,
    a doença os torne inválidos,
    os seus filhos virem o rosto para não vê-los.

        (Tradução: Luigi Del Re)


SE QUESTO È UN UOMO

Voi che vivete sicuri
nelle vostre tiepide case,
voi che trovate tornando a sera
il cibo caldo e visi amici:
    Considerate se questo è un uomo
    che lavora nel fango
    che non conosce pace
    che lotta per mezzo pane
    che muore per un si o per un no.
    Considerate se questa è una donna,
    senza capelli e senza nome
    senza più forza di ricordare
    vuoti gli occhi e freddo il grembo
    come una rana d'inverno.
Meditate che questo è stato:
vi comando queste parole.
Scolpitele nel vostro cuore
stando in casa andando per via,
coricandovi, alzandovi.
Ripetetele ai vostri figli.
    O vi si sfaccia la casa,
    la malattia vi impedisca,
    i vostri nati torcano il viso da voi.




Vilhelm Bjerke-Petersen - Figure by the window
Vilhelm Bjerke-Petersen, Figura à janela


SEGUNDA-FEIRA

O que é mais triste que um trem?
Que parte quando deve partir,
Que tem somente uma voz,
Que tem somente um caminho.
Nada é mais triste que um trem.

Ou talvez um burro de carga.
Está preso entre duas barras
E não pode olhar para o lado.
Sua vida é só caminhar.

E um homem? Não é triste um homem?
Se vive há muito em solidão,
Se acha que o tempo terminou,
Um homem também é coisa triste.

17 de janeiro de 1946


LUNEDÌ

Che cosa è più triste di un treno?
Che parte quando deve,
Che non ha che una voce,
Che non ha che una strada.
Niente è più triste di un treno.

O forse un cavallo da tiro.
È chiuso fra due stanghe,
Non può neppure guardarsi a lato.
La sua vita è camminare.

E un uomo? Non è triste un uomo?
Se vive a lungo in solitudine
Se crede che il tempo è concluso
Anche un uomo è una cosa triste.

17 gennaio 1946




Vilhelm Bjerke-Petersen - Surrealist landscape
Vilhelm Bjerke-Petersen, Paisagem surrealista


PARA ADOLF EICHMANN

Corre livre o vento por nossas planícies,
Eterno pulsa o mar vivo em nossas praias.
O homem semeia a terra, a terra lhe dá flores e frutos:
Vive em ânsia e alegria, espera e teme, procria ternos filhos.

... E você chegou, nosso precioso inimigo,
Você, criatura deserta, homem cercado de morte.
O que saberá dizer agora, diante de nossa assembleia?
Jurará por um deus? Mas que deus?
Saltará contente sobre o túmulo?
Ou se lamentará, como o homem operoso por fim se lamenta,
A quem a vida foi breve para tão longa arte,
De sua terrível arte incompleta,
Dos treze milhões que ainda vivem?

Ó filho da morte, não lhe desejamos a morte.
Que você viva tanto quanto ninguém nunca viveu:
Que viva insone cinco milhões de noites,
E que toda noite lhe visite a dor de cada um que viu
Encerrar-se a porta que barrou o caminho de volta,
O breu crescer em torno de si, o ar carregar-se de morte.

20 de julho de 1960


PER ADOLF EICHMANN

Corre libero il vento per le nostre pianure,
Eterno pulsa il mare vivo alle nostre spiagge.
L’uomo feconda la terra, la terra gli dà fiori e frutti:
Vive in travaglio e in gioia, spera e teme, procrea dolci figli.

... E tu sei giunto, nostro prezioso nemico,
Tu creatura deserta, uomo cerchiato di morte.
Che saprai dire ora, davanti al nostro consesso?
Giurerai per un dio? Quale dio?
Salterai nel sepolcro allegramente?
O ti dorrai, come in ultimo l’uomo operoso si duole,
Cui fu la vita breve per l’arte sua troppo lunga,
Dell’opera tua trista non compiuta,
Dei tredici milioni ancora vivi?

O figlio della morte, non ti auguriamo la morte.
Possa tu vivere a lungo quanto nessuno mai visse:
Possa tu vivere insonne cinque milioni di notti,
E visitarti ogni notte la doglia di ognuno che vide
Rinserrarsi la porta che tolse la via del ritorno
Intorno a sé farsi buio, l’aria gremirsi di morte.

20 luglio 1960




Vilhelm Bjerke-Petersen - Fugitives n.1
Vilhelm Bjerke-Petersen, Fugitivos n. 1


PARTIGIA *

Onde vocês estão, partigia desses vales,
Tarzan, Riccio, Sparviero, Saetta, Ulisses?
Muitos dormem em túmulos decentes,
Os que restam estão de cabelos brancos
E contam aos filhos dos filhos
Como, no tempo remoto das certezas,
Romperam o assédio dos alemães
Ali onde hoje sobe o teleférico.
Alguns compram e vendem terrenos,
Outros vão roendo a pensão do INPS
Ou se encarquilham em repartições públicas.
De pé, velhos: para nós não há dispensa.
Nos reencontremos. Voltemos à montanha,
Lentos, arfantes, com os joelhos entrevados,
Com muitos invernos nas costas.
A subida da trilha nos será dura,
Nos será duro o catre, duro o pão.
Nos olharemos sem nos reconhecermos,
Desconfiados um do outro, ranzinzas, esquivos.
Como, então, ficaremos de sentinela
Para que na aurora não nos surpreenda o inimigo.
Que inimigo? Cada um é inimigo do outro,
Apartado cada um de sua própria fronteira,
A mão direita inimiga da esquerda.
De pé, velhos, inimigos de si mesmos:
Nossa guerra jamais terminou.

23 de julho de 1981

* Trata-se da abreviação que circulou no Piemonte (como dizer “Juve” por Juventus) para designar o partigiano, com a conotação de “destemido, decidido, rápido no gatilho”. [Nota do Autor]


PARTIGIA

Dove siete, partigia di tutte le valli,
Tarzan, Riccio, Sparviero, Saetta, Ulisse?
Molti dormono in tombe decorose,
Quelli che restano hanno i capelli bianchi
E raccontano ai figli dei figli
Come, al tempo remoto delle certezze,
Hanno rotto l’assedio dei tedeschi
Là dove adesso sale la seggiovia.
Alcuni comprano e vendono terreni,
Altri rosicchiano la pensione dell’INPS
O si raggrinzano negli enti locali.
In piedi, vecchi: per noi non c’è congedo.
Ritroviamoci. Ritorniamo in montagna,
Lenti, ansanti, con le ginocchia legate,
Con molti inverni nel filo della schiena.
II pendio del sentiero ci sarà duro,
Ci sarà duro il giaciglio, duro il pane.
Ci guarderemo senza riconoscerci,
Diffidenti l’uno dell’altro, queruli, ombrosi.
Come allora, staremo di sentinella
Perché nell’alba non ci sorprenda il nemico.
Quale nemico? Ognuno è nemico di ognuno,
Spaccato ognuno dalla sua própria frontiera,
La mano destra nemica della sinistra.
In piedi, vecchi, nemici di voi stessi:
La nostra guerra non è mai finita.

23 luglio 1981




Vilhelm Bjerke-Petersen - Untitled
Vilhelm Bjerke-Petersen, Sem título


ALMANAQUE

Continuarão correndo pro mar
Os rios indiferentes
Ou a transbordar ruinosos os diques
Obras antigas de homens tenazes.
Continuarão as geleiras
A crepitar consumindo o fundo
Ou precipitando repentinas
A extirpar a vida dos abetos.
Continuará o mar a debater-se
Cativo entre os continentes
Sempre mais avaro de sua riqueza.
Continuarão seu curso
Sol estrelas planetas e cometas.
Mesmo a Terra temerá as leis
Imutáveis da criação.
Nós não. Nós, linhagem rebelde
De muito engenho e pouco siso,
Vamos destruir e corromper
Sempre mais depressa;
Logo, logo dilataremos o deserto
Nas selvas da Amazônia,
No coração vivo de nossas cidades,
Em nossos próprios corações.

2 de janeiro de 1987


ALMANACCO

Continueranno a fluire a mare
I fiumi indifferenti
O a valicare rovinosi gli argini
Opere antiche d’uomini tenaci.
Continueranno i ghiacciai
A stridere levigando il fondo
Od a precipitare improvvisi
Recidendo la vita degli abeti.
Continuerà il mare a dibattersi
Captivo tra i continenti
Sempre più avaro della sua ricchezza.
Continueranno il loro corso
Sole stelle pianeti e comete.
Anche la Terra temerà le leggi
Immutabili del creato.
Noi no. Noi propaggine ribelle
Di molto ingegno e poco senno,
Distruggeremo e corromperemo
Sempre più in fretta;
Presto presto, dilatiamo il deserto
Nelle selve dell’Amazzonia,
Nel cuore vivo delle nostre città,
Nei nostri stessi cuori.

2 gennaio 1987





poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2020



Primo Levi
      •  Todos os poemas, exceto o primeiro:
      in Mil Sóis — Poemas Escolhidos
      Seleção, tradução e apresentação: Maurício Santana Dias
      Todavia, São Paulo, 2019

      •  “É isto um homem?”:
      in É Isto Um Homem?
      Tradução: Luigi Del Re
      Rocco, Rio de Janeiro, 1988
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* Carlos Drummond de Andrade, “Tarde de Maio”, in Claro Enigma (1951)
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* Imagens: quadros do pintor dinamarquês Vilhelm Bjerke-Petersen (1909-1957)