Amigas e amigos,
Mais conhecida como ficcionista, a mineira Conceição Evaristo (Belo Horizonte, 1946) é uma das escritoras que conquistaram maior visibilidade nos últimos anos.
Também poeta e ensaísta, ela se destaca ainda pelo seu ativismo nos movimentos de valorização da cultura negra.
Neste boletim de número redondo, 450, apresento uma seleção de textos extraídos do livro Poemas da Recordação e Outros Movimentos,
publicado originalmente em 2008 (Ed. Nandyala) e agora já na 3a. edição (2017, Editora Malê). Nesse livro Conceição Evaristo reúne textos
nos quais combina poeticamente uma visão histórica da comunidade negra, experiências pessoais e flashes da vida cotidiana.
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O primeiro poema da microantologia ao lado é “Certidão de Óbito”, que põe em versos uma das mais tétricas manifestações do racismo estrutural no Brasil: o genocídio
de negros, especialmente jovens, nas periferias das grandes cidades. “Os ossos de nossos antepassados / colhem as nossas perenes lágrimas / pelos mortos de hoje”,
diz o poema. Não são apenas palavras.
Conforme um relatório do Senado Federal
publicado em 2016, todo ano, 23,1 mil jovens negros, de 15 a 29 anos, são assassinados no Brasil. São 63 por dia. Um a cada 23 minutos. Uma hecatombe,
mais ampla do que ocorre em guerras. Nos últimos anos, com o escancaramento de todos os preconceitos, talvez esses números sejam até piores. A pandemia
apenas torna tudo mais cruel. E, conclui o poema, a certidão de óbito “veio lavrada desde os negreiros”. O clima é idêntico no
poema seguinte, “Favela”, lugar onde “balas de sangue / derretem corpos / no ar”.
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Para escrever “Clarice no Quarto de Despejo”, Conceição Evaristo tomou como ponto de partida o encontro real que ocorreu em 1960 entre as escritoras Clarice Lispector
(1920-1977) e Carolina Maria de Jesus (1914-1977). Naquele ano, a já celebrada Clarice lançou, em julho, seu livro de contos Laços de Família. Carolina,
mineira negra e favelada, catadora de lixo, foi alçada à fama na mesma época, graças ao diário em que retratava a vida na favela, publicado em livro com
o título Quarto de Despejo.
As duas obras saíram pela mesma editora, a Livraria Francisco Alves, o que facilitou o encontro das autoras. Quarto de Despejo teve 600 exemplares
vendidos só no lançamento. Na terceira edição, apenas um mês depois, a tiragem foi de 50 mil exemplares. Foi a primeira vez que a vida da favela era contada
“de dentro para fora”. Conceição Evaristo estabelece o encontro: “Onde estivestes de noite, Carolina? / Macabeando minhas agonias, Clarice”.
Ao longo do poema, novas referências são feitas à vida e à obra das duas. Bitita, vale lembrar, é o nome pelo qual Carolina era conhecida. Tanto que escreveu
alguns apontamentos autobiográficos, publicados após sua morte sob o título Diário de Bitita. No mais, a poeta assume como pano de fundo o enorme abismo
entre as duas escritoras. A fome, por exemplo, figura da intimidade de uma, é totalmente desconhecida da outra.
É interessante lembrar que há, no livro de Conceição Evaristo, outro poema que faz dupla com este. É “Carolina na Hora da Estrela”. O encontro entre as duas escritoras
não só foi real como envolveu o seguinte diálogo, descrito depois por Paulo Mendes Campos
na revista Manchete. Carolina teria elogiado a escrita de Clarice: “Como você escreve elegante”.
Ao que a elogiada teria dito: “E como você escreve verdadeiro”.
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“Da Calma e do Silêncio”, o último texto ao lado, é um poema no qual a autora pede um pouco de paz e silêncio para pensar, ou seja, “versejar / o âmago das coisas”.
Ela pede um pouco de tranquilidade para ficar quieta no seu canto, matutando, e assim mergulhar nos “mundos submersos, / que só o silêncio / da poesia penetra”.
Em certo sentido, este é também um metapoema.
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Maria da Conceição Evaristo de Brito nasceu em 1946 numa favela de Belo Horizonte, no
seio de uma família com nove irmãos. Concluiu o curso normal em 1971.
Mudou-se então para o Rio de Janeiro, onde foi aprovada num concurso público para o magistério e estudou Letras na UFRJ. É mestra em literatura brasileira pela
PUC-Rio e doutora em literatura comparada pela Universidade Federal Fluminense.
Sua estreia literária deu-se em 1990, quando passou a publicar trabalhos na série Cadernos Negros, antologias organizadas pelo coletivo cultural e editora
Quilombhoje.
Conceição Evaristo publicou inicialmente dois romances: Ponciá Vicêncio (2003) e Becos da Memória (2006). Passou em seguida para três livros de
contos: Insubmissas Lágrimas de Mulheres (2011); Olhos d’Água (2014); e Histórias de Leves Enganos e Parecenças (2016).
Poemas da Recordação e Outros Movimentos (2008) é seu único livro de poesia.
Com títulos já publicados em francês, inglês e árabe, a autora vem conquistando prêmios e homenagens. O livro de contos Olhos d’Água foi finalista
do Prêmio Jabuti em 2015 e, em 2018, Conceição Evaristo recebeu o Prêmio de Literatura do Governo de Minas Gerais pelo conjunto de sua obra.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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