Número 450 - Ano 18

Salvador, quarta-feira, 26 de agosto de 2020

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«As palavras têm rosto: ou de silêncio ou de sangue.» (António Ramos Rosa) *

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Conceição Evaristo
Conceição Evaristo



Amigas e amigos,

Mais conhecida como ficcionista, a mineira Conceição Evaristo (Belo Horizonte, 1946) é uma das escritoras que conquistaram maior visibilidade nos últimos anos. Também poeta e ensaísta, ela se destaca ainda pelo seu ativismo nos movimentos de valorização da cultura negra.

Neste boletim de número redondo, 450, apresento uma seleção de textos extraídos do livro Poemas da Recordação e Outros Movimentos, publicado originalmente em 2008 (Ed. Nandyala) e agora já na 3a. edição (2017, Editora Malê). Nesse livro Conceição Evaristo reúne textos nos quais combina poeticamente uma visão histórica da comunidade negra, experiências pessoais e flashes da vida cotidiana.

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O primeiro poema da microantologia ao lado é “Certidão de Óbito”, que põe em versos uma das mais tétricas manifestações do racismo estrutural no Brasil: o genocídio de negros, especialmente jovens, nas periferias das grandes cidades. “Os ossos de nossos antepassados / colhem as nossas perenes lágrimas / pelos mortos de hoje”, diz o poema. Não são apenas palavras.

Conforme um relatório do Senado Federal publicado em 2016, todo ano, 23,1 mil jovens negros, de 15 a 29 anos, são assassinados no Brasil. São 63 por dia. Um a cada 23 minutos. Uma hecatombe, mais ampla do que ocorre em guerras. Nos últimos anos, com o escancaramento de todos os preconceitos, talvez esses números sejam até piores. A pandemia apenas torna tudo mais cruel. E, conclui o poema, a certidão de óbito “veio lavrada desde os negreiros”. O clima é idêntico no poema seguinte, “Favela”, lugar onde “balas de sangue / derretem corpos / no ar”.

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Para escrever “Clarice no Quarto de Despejo”, Conceição Evaristo tomou como ponto de partida o encontro real que ocorreu em 1960 entre as escritoras Clarice Lispector (1920-1977) e Carolina Maria de Jesus (1914-1977). Naquele ano, a já celebrada Clarice lançou, em julho, seu livro de contos Laços de Família. Carolina, mineira negra e favelada, catadora de lixo, foi alçada à fama na mesma época, graças ao diário em que retratava a vida na favela, publicado em livro com o título Quarto de Despejo.

As duas obras saíram pela mesma editora, a Livraria Francisco Alves, o que facilitou o encontro das autoras. Quarto de Despejo teve 600 exemplares vendidos só no lançamento. Na terceira edição, apenas um mês depois, a tiragem foi de 50 mil exemplares. Foi a primeira vez que a vida da favela era contada “de dentro para fora”. Conceição Evaristo estabelece o encontro: “Onde estivestes de noite, Carolina? / Macabeando minhas agonias, Clarice”.

Ao longo do poema, novas referências são feitas à vida e à obra das duas. Bitita, vale lembrar, é o nome pelo qual Carolina era conhecida. Tanto que escreveu alguns apontamentos autobiográficos, publicados após sua morte sob o título Diário de Bitita. No mais, a poeta assume como pano de fundo o enorme abismo entre as duas escritoras. A fome, por exemplo, figura da intimidade de uma, é totalmente desconhecida da outra.

É interessante lembrar que há, no livro de Conceição Evaristo, outro poema que faz dupla com este. É “Carolina na Hora da Estrela”. O encontro entre as duas escritoras não só foi real como envolveu o seguinte diálogo, descrito depois por Paulo Mendes Campos na revista Manchete. Carolina teria elogiado a escrita de Clarice: “Como você escreve elegante”. Ao que a elogiada teria dito: “E como você escreve verdadeiro”.

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“Da Calma e do Silêncio”, o último texto ao lado, é um poema no qual a autora pede um pouco de paz e silêncio para pensar, ou seja, “versejar / o âmago das coisas”. Ela pede um pouco de tranquilidade para ficar quieta no seu canto, matutando, e assim mergulhar nos “mundos submersos, / que só o silêncio / da poesia penetra”. Em certo sentido, este é também um metapoema.

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Maria da Conceição Evaristo de Brito nasceu em 1946 numa favela de Belo Horizonte, no seio de uma família com nove irmãos. Concluiu o curso normal em 1971. Mudou-se então para o Rio de Janeiro, onde foi aprovada num concurso público para o magistério e estudou Letras na UFRJ. É mestra em literatura brasileira pela PUC-Rio e doutora em literatura comparada pela Universidade Federal Fluminense.

Sua estreia literária deu-se em 1990, quando passou a publicar trabalhos na série Cadernos Negros, antologias organizadas pelo coletivo cultural e editora Quilombhoje.

Conceição Evaristo publicou inicialmente dois romances: Ponciá Vicêncio (2003) e Becos da Memória (2006). Passou em seguida para três livros de contos: Insubmissas Lágrimas de Mulheres (2011); Olhos d’Água (2014); e Histórias de Leves Enganos e Parecenças (2016). Poemas da Recordação e Outros Movimentos (2008) é seu único livro de poesia.

Com títulos já publicados em francês, inglês e árabe, a autora vem conquistando prêmios e homenagens. O livro de contos Olhos d’Água foi finalista do Prêmio Jabuti em 2015 e, em 2018, Conceição Evaristo recebeu o Prêmio de Literatura do Governo de Minas Gerais pelo conjunto de sua obra.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Entre Clarice e Carolina


• Conceição Evaristo


              



Matisse - Jovem ruiva com vestido de noite-1918
Henri Matisse, francês, Meditação - Retrato de Laurette (1916-17)


CERTIDÃO DE ÓBITO

Os ossos de nossos antepassados
colhem as nossas perenes lágrimas
pelos mortos de hoje.

Os olhos de nossos antepassados,
negras estrelas tingidas de sangue,
elevam-se das profundezas do tempo
cuidando de nossa dolorida memória.

A terra está coberta de valas
e a qualquer descuido da vida
a morte é certa.
A bala não erra o alvo, no escuro
um corpo negro bambeia e dança.
A certidão de óbito, os antigos sabem,
veio lavrada desde os negreiros.



Matisse - As três irmãs-1917
Matisse, As três irmãs (1917)


FAVELA

Barracos
montam sentinela
na noite.
Balas de sangue
derretem corpos
no ar.
Becos bêbados
sinuosos labirínticos
velam o tempo escasso
de viver.



Matisse - Tete de femme penchée-1917
Matisse, Mulher com a cabeça inclinada - Laurette (1916-17)


CLARICE NO QUARTO DE DESPEJO

No meio do dia
Clarice entreabre o quarto de despejo
pela fresta percebe uma mulher.
Onde estivestes de noite, Carolina?
Macabeando minhas agonias, Clarice.
Um amargor pra além da fome e do frio,
da bica e da boca em sua secura.
De mim, escrevo não só a penúria do pão,
cravo no lixo da vida, o desespero,
uma gastura de não caber no peito,
e nem no papel.
Mas ninguém me lê, Clarice,
para além do resto.
Ninguém decifra em mim
a única escassez da qual não padeço,
— a solidão.

E ajustando seu par de luvas claríssimas
Clarice futuca um imaginário lixo
— e pensa para Carolina:
“a casa poderia ser ao menos de alvenaria”.
E anseia ser Bitita inventando um diário.
Páginas de jejum e de saciedade sobejam.
A fome nem em pedaços
alimenta a escrita clariceana.

Clarice no quarto de despejo
lê a outra, lê Carolina,
a que na cópia das palavras,
faz de si a própria inventiva.
Clarice lê:
“despejo e desejos”.



Matisse - Mulher com chapéu florido-1919
Matisse, Mulher com chapéu florido - Antoinette (1919)


DA CALMA E DO SILÊNCIO

Quando eu morder
a palavra,
por favor,
não me apressem,
quero mascar,
rasgar entre os dentes,
a pele, os ossos, o tutano
do verbo,
para assim versejar
o âmago das coisas.

Quando meu olhar
se perder no nada,
por favor,
não me despertem,
quero reter,
no adentro da íris,
a menor sombra,
do ínfimo movimento.

Quando meus pés
abrandarem na marcha,
por favor,
não me forcem.
Caminhar para quê?
Deixem-me quedar,
deixem-me quieta,
na aparente inércia.
Nem todo viandante
anda estradas,
há mundos submersos,
que só o silêncio
da poesia penetra.




poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2020



Conceição Evaristo
      •  Todos os poemas:
      in Poemas da Recordação e Outros Movimentos
      Malê, 3a. ed., Rio de Janeiro, 2017
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* António Ramos Rosa, in Animal Olhar (2005)
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* Imagens: quadros do pintor francês Henri Matisse (1869-1954)