Número 455 - Ano 18

Salvador, quarta-feira, 28 de outubro de 2020

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«O relógio de parede numa velha fotografia — está parado?» (Mario Quintana) *

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Carlos Drummond de Andrade
Carlos Drummond de Andrade



Amigas e amigos,

No próximo sábado, 31 de outubro, celebra-se o já consagrado Dia D — a data de nascimento do poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). Publicado por um site que suspeitamente se chama Alguma Poesia, este boletim também reverencia a data. Esta, portanto, é uma edição centrada no poeta Drummond. Desta vez o que se coloca em primeiro plano é a visão ecológica do autor de A Rosa do Povo.

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Em 1982, às vésperas de completar 80 anos, Carlos Drummond de Andrade expressa sua inconformidade com a destruição do Salto de Sete Quedas, um patrimônio natural do Brasil e da humanidade. Localizadas no rio Paraná, na fronteira com o Paraguai, as cataratas (conhecidas como Saltos del Guairá, no lado paraguaio) abrigavam as maiores cachoeiras do mundo em volume d’água, com uma vazão de 13,3 mil metros cúbicos por segundo — o dobro do que se registra nas Cataratas do Niágara, na fronteira entre o Canadá e os Estados Unidos.

Na edição do Jornal do Brasil de 9 de setembro, quando afinal se anunciava o fechamento das comportas para a criação do lago da hidrelétrica de Itaipu, Drummond publicou este poema, “Adeus a Sete Quedas”. Em letras grandes, os versos ocupavam uma página inteira do jornal, a capa do Caderno B.

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O sentimento ecológico do poeta reverberou em todo o país. Um mês depois, ele voltaria à carga, com a crônica "Sete Quedas poderia ser salva" (Jornal do Brasil, 07/10/1982). Nesse texto, Drummond transcreve uma carta do engenheiro Octavio Marcondes Ferraz — o projetista da hidrelétrica de Paulo Afonso. A carta fora enviada ao poeta exatamente a propósito do poema “Adeus a Sete Quedas”.

Ferraz revela que em 1963 apresentara um projeto intitulado “Aproveitamento do Potencial do Salto de Sete Quedas”. A ideia do engenheiro era preservacionista. “Em Paulo Afonso”, diz ele, “projetei a usina preservando a catarata que Deus nos deu”.

“Aproveitamento, em vez de imolação”, destaca Drummond. O argumento do governo militar para a destruição é que seria necessário considerar uma “solução simétrica” em relação ao Paraguai.

No final, diz Drummond, os paraguaios não ficaram tão satisfeitos e Sete Quedas vai passar às novas gerações apenas como uma pálida notícia, um cartão postal de longínquo passado. “Sete quedas por nós passaram, / e não soubemos, ah, não soubemos amá-las”, lamenta o poeta.

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Talvez a maioria dos jovens de hoje realmente não guarde nenhuma referência das Sete Quedas. Por isso vale a pena lembrar alguns detalhes de sua grandiosidade. O som das cataratas podia ser ouvido a 30 km de distância e seu canal principal tinha 4 km de comprimento. As cataratas eram constituídas por 19 saltos, que podiam ser reunidos em sete grupos, daí a denominação de Sete Quedas. Graças a essa imbatível atração turística, a cidade paranaense de Guaíra, nas proximidades do Salto, chegou a ser o local mais visitado do Brasil.

Evidentemente, a morte das Sete Quedas não se resumiu ao desaparecimento das cataratas em si. Houve ainda todo o extraordinário impacto ambiental sobre o relevo, a fauna, a flora e o clima da região. Basta dizer que a instalação da usina hidrelétrica de Itaipu provocou a criação de um lago artificial de 1.350 km² — 770 km² no Brasil e 580 km² no lado paraguaio.

E toda essa destruição se fez “por ingrata intervenção de tecnocratas”, como diz Drummond no poema. Triste constatação: esses tecnocratas, associados à ditaduta militar, eram figuras “de um país que vai deixando de ser humano / para tornar-se empresa gélida, mais nada”.

Se aqui ainda estivesse, o poeta veria com desalento que, quase quarenta anos depois da imolação das Sete Quedas, toda essa ameaça de desumanização está de novo no horizonte do país, como um terrível pesadelo.


Viva o Dia Drummond.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Águas assassinadas


• Carlos Drummond de Andrade


              



Renata Brzozowska - Flamenco84-2008
Renata Brzozowska, polonesa, Flamenco 84 (2008)


Adeus a Sete Quedas

    Sete damas por mim passaram,
    E todas sete me beijaram.

      Alphonsus de Guimaraens

    Aqui outrora retumbaram hinos.
      Raimundo Correia


Sete quedas por mim passaram,
e todas sete se esvaíram.
Cessa o estrondo das cachoeiras, e com ele
a memória dos índios, pulverizada,
já não desperta o mínimo arrepio.
Aos mortos espanhóis, aos mortos bandeirantes,
aos apagados fogos
de Ciudad Real de Guairá vão juntar-se
os sete fantasmas das águas assassinadas
por mão do homem, dono do planeta.

Aqui outrora retumbaram vozes
da natureza imaginosa, fértil
em teatrais encenações de sonhos
aos homens ofertadas sem contrato.
Uma beleza-em-si, fantástico desenho
corporizado em cachões e bulcões de aéreo contorno
mostrava-se, despia-se, doava-se
em livre coito à humana vista extasiada.
Toda a arquitetura, toda a engenharia
de remotos egípcios e assírios
em vão ousaria criar tal monumento.

E desfaz-se
por ingrata intervenção de tecnocratas.
Aqui sete visões, sete esculturas
de líquido perfil
dissolvem-se entre cálculos computadorizados
de um país que vai deixando de ser humano
para tornar-se empresa gélida, mais nada.

Faz-se do movimento uma represa,
da agitação faz-se um silêncio
empresarial, de hidrelétrico projeto.
Vamos oferecer todo o conforto
que luz e força tarifadas geram
à custa de outro bem que não tem preço
nem resgate, empobrecendo a vida
na feroz ilusão de enriquecê-la.
Sete boiadas de água, sete touros brancos,
de bilhões de touros brancos integrados,
afundam-se em lagoa, e no vazio
que forma alguma ocupará, que resta
senão da natureza a dor sem gesto,
a calada censura
e a maldição que o tempo irá trazendo?

Vinde povos estranhos, vinde irmãos
brasileiros de todos os semblantes,
vinde ver e guardar
não mais a obra de arte natural
hoje cartão-postal a cores, melancólico,
mas seu espectro ainda rorejante
de irisadas pérolas de espuma e raiva,
passando, circunvoando,
entre pontes pênseis destruídas
e o inútil pranto das coisas,
sem acordar nenhum remorso,
nenhuma culpa ardente e confessada.
(“Assumimos a responsabilidade!
Estamos construindo o Brasil grande!”)
E patati patati patatá...

Sete quedas por nós passaram,
e não soubemos, ah, não soubemos amá-las,
e todas sete foram mortas,
e todas sete somem no ar,
sete fantasmas, sete crimes
dos vivos golpeando a vida
que nunca mais renascerá.



Renata Brzozowska -Retrato 42-2008
Renata Brzozowska, Retrato 42 (2008)




Renata Brzozowska -Retrato 180-2006
Renata Brzozowska, Retrato 180 (2006)





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www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2020



Carlos Drummond de Andrade
      •  "Adeus a Sete Quedas"
      in Jornal do Brasil
      Rio de Janeiro, 09/09/1982
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* Mario Quintana, "O Relógio" in Caderno H (1973)
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* Imagens: quadros da pintora polonesa Renata Brzozowska (1977-)