Número 457 - Ano 18

Salvador, quarta-feira, 25 de novembro de 2020

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«De repente a mentira / põe os seus ovos de ouro em nossa algibeira.» (Francisco Carvalho) *

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Fernando Pessoa
Fernando Pessoa



Amigas e amigos,

Todos sabemos que o baú poético do lisboeta Fernando Pessoa (1888-1935) rende pano para infinitas mangas. Por isso, retornamos a ele, mais uma vez — a sexta. Mas não se preocupem: cada Pessoa é outra pessoa.

De fato, em 2003, na edição n. 22, destacam-se apenas os “outros” Pessoas: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Na edição n. 145, dois anos depois, a referência são os 70 anos da morte de Fernando Pessoa, ele mesmo. No terceiro boletim dedicado ao poeta (ou aos poetas?), a edição n. 250, o título é “Tenho mais almas que uma”, verso que permite antever o conteúdo.

A seguir, em sua quarta visita, na edição n. 329, de 2015, o destaque vai para alguns poemas do engenheiro Álvaro de Campos, a figura mais inquieta das muitas que habitam o cérebro de Fernando Pessoa. Por fim, a quinta aparição dele por aqui, na edição n. 433, de 2019, volta-se para o ajudante de guarda-livros Bernardo Soares, autor do Livro do Desassossego, uma espécie de diário íntimo escrito em prosa.

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E o que será agora?

Desta vez, pesquei sete poemas do próprio Pessoa nas seções “Poesias Coligidas - Inéditas 1919-1935” e “Novas Poesias Inéditas”, da Obra Poética publicada pela Nova Aguilar. Os textos em ambas as seções são datados pelo autor. Contudo, somente na primeira os organizadores da obra atribuíram um número de identificação. O poema que abre a coluna ao lado, por exemplo, é o número “[555]”.

Nesta página, quando havia o número, usei-o como título do poema. Quando não, o primeiro verso ficou sendo o título. Faço questão de que o poema tenha título. Fica mais fácil fazer referência a ele, chamando-o por um nome. Caso contrário, é necessário fazer rodeios do tipo “o poema que começa com a frase X...” ou “o terceiro texto da série”.

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Vamos aos poemas. O primeiro é “[555]”. Aí temos um perfeito exemplo dos textos pessoanos. Primeiro, ele tece uma série de considerações sobre os deuses. Tais entidades, afirma, “são felizes” e não sofrem reveses da parte do destino. O único problema dos deuses está no último verso do poema.

O texto seguinte é o “[599]”. Nele o sujeito lírico faz mais um dos inúmeros exercícios de divisão de personalidades que se encontram na poesia de Pessoa. “Brincava a criança / Com um carro de bois. / Sentiu-se brincando / E disse, eu sou dois!”.

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O poema “[636]” situa-se em registro mais lírico-filosófico. Indaga: “Quem vende a verdade, e a que esquina? / Quem dá a hortelã com que temperá-la?”. Que gosto terá a verdade temperada com hortelã? — pergunto eu. Não sei. Mas tenho certeza de que, poeticamente, é uma imagem deliciosa, assim como delicioso é todo este poema.

Fiquei curioso com a referência à “filarmônica de um Barreiro”. Tinha certeza de que se tratava de algo do passado português. Recorri à poeta lusa Graça Pires, apresentada aqui na edição n. 447. Ela gentilmente informa: “O Barreiro é uma vila que fica do outro lado do rio Tejo, que nessa altura só podia ser atravessado por barco porque não tinha sido ainda construída a ponte sobre o rio. Daí a referência ao barco e às gentes, que eram muitas as que faziam esse percurso”. Mas a poeta, cautelosa, adverte: “Quanto ao significado que Fernando Pessoa quer dar às palavras que escreveu, já não é da minha lavra…”

O próximo poema, “[Se alguém bater à tua porta]”, é mais uma daquelas criações pessoanas que, como se diz, dão nó em pingo d’água. Basta citar os três primeiros versos: “Se alguém bater um dia à tua porta, / Dizendo que é um emissário meu, / Não acredites, nem que seja eu”. Somente esta introdução já vale um poema. Deixo aos leitores o restante da trama.

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Vem a seguir o texto “[Tudo, menos o tédio, me faz tédio]”, outra criação estonteante. O contexto, no entanto, é de um amor não correspondido. O sexto poema, “[Bem sei que todas as mágoas]”, é apenas uma canção triste. Mas uma canção com o timbre de Fernando Pessoa: “Bem sei que todas as mágoas / São como as mágoas que são / Parecidas com as águas / Que continuamente vão...”.

Chega, enfim, o último poema: “[Sim, está tudo certo]”. Aqui, mais uma vez, o poeta cria situações atordoantes. Basta ler o início: “Sim, está tudo certo. / Está tudo perfeitamente certo. / O pior é que está tudo errado”.

Neste poema, há um sinal de interrogação [?] correspondente a uma palavra ou expressão a ser preenchida. Trata-se de um texto inacabado. Mesmo assim é Fernando Pessoa, não há dúvida, cutucando as incoerências do mundo. E, como diz, “excepto estar errado, é assim mesmo, está certo”.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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18 ANOS

Conforme indica o cabeçalho desta edição, o poesia.​net está próximo a entrar em seu 19° ano de circulação. De fato, em 12 de dezembro, o boletim completa sua maioridade.


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Verdade com hortelã


• Fernando Pessoa


              



Caravaggio - Baco c. 1595
Caravaggio, italiano, Baco (c. 1595)


[555]

Os deuses são felizes.
Vivem a vida calma das raízes.
Seus desejos o Fado não oprime.
Ou, oprimindo, redime
Com a vida imortal.
Não há
Sombras ou outros que os contristem.
E, além disto, não existem...

10-07-1920



caravaggio-david.with.the.head.of.goliath-1610
Caravaggio, Davi com a cabeça de Golias (1610)


[599]

Brincava a criança
Com um carro de bois.
Sentiu-se brincando
E disse, eu sou dois!

Há um a brincar
E há outro a saber,
Um vê-me a brincar
E outro vê-me a ver.

Estou por trás de mim
Mas se volto a cabeça
Não era o que eu qu’ria
A volta só é essa...

O outro menino
Não tem pés nem mãos
Nem é pequenino
Não tem mãe ou irmãos.

E havia comigo
Por trás de onde eu estou,
Mas se volto a cabeça
Já não sei o que sou.

E o tal que eu cá tenho
E sente comigo,
Nem pai, nem padrinho,
Nem corpo ou amigo,

Tem alma cá dentro
’Stá a ver-me sem ver,
E o carro de bois
Começa a parecer.

05-12-1927



caravaggio-fanciullo.con.canestro.di.frutta-c1593
Caravaggio, Jovem com cesto de frutas (c. 1593)


[636]

Quem vende a verdade, e a que esquina?
Quem dá a hortelã com que temperá-la?
Quem traz para casa a menina
E arruma as jarras da sala?

Quem interroga os baluartes
E conhece o nome dos navios?
Dividi o meu estudo inteiro em partes
E os títulos dos capítulos são vazios...

Meu pobre conhecimento ligeiro,
Andas buscando o estandarte eloquente
Da filarmônica de um Barreiro
Para que não há barco nem gente.

Tapeçarias de parte nenhuma
Quadros virados contra a parede...
Ninguém conhece, ninguém arruma
Ninguém dá nem pede.

Ó coração epitélico e macio,
Colcha de croché do anseio morto,
Grande prolixidade do navio
Que existe só para nunca chegar ao porto.

28-03-1930



caravaggio-narcissus-1594-96
Caravaggio, Narciso (1594-96)


[SE ALGUÉM BATER UM DIA À TUA PORTA]

Se alguém bater um dia à tua porta,
Dizendo que é um emissário meu,
Não acredites, nem que seja eu;
Que o meu vaidoso orgulho não comporta
Bater sequer à porta irreal do céu.

Mas se, naturalmente, e sem ouvir
Alguém bater, fores a porta abrir
E encontrares alguém como que à espera
De ousar bater, medita um pouco. Esse era
Meu emissário e eu e o que comporta
O meu orgulho do que desespera.
Abre a quem não bater à tua porta!

05-09-1934



caravaggio-the_fortune_teller-1596-97
Caravaggio, A adivinha (1596-97)


[TUDO, MENOS O TÉDIO, ME FAZ TÉDIO]

Tudo, menos o tédio, me faz tédio.
Quero, sem ter sossego, sossegar.
Tomar a vida todos os dias
Como um remédio,
Desses remédios que há para tomar.

Tanto aspirei, tanto sonhei, que tanto
De tantos tantos me fez nada em mim.
Minhas mãos ficaram frias
Só de aguardar o encanto
Daquele amor que as aquecesse enfim.

Frias, vazias,
Assim.

06-09-1934



caravaggio-salome_with_the_head_of_john_the_baptist-1610
Caravaggio, Salomé com a cabeça de João Batista (1610)


[BEM SEI QUE TODAS AS MÁGOAS]

Bem sei que todas as mágoas
São como as mágoas que são
Parecidas com as águas
Que continuamente vão...

Quero, pois, ter guardada
Uma tristeza de mim
Que não possa ser levada
Por essas águas sem fim.

Quero uma tristeza minha
Uma mágoa que me seja
Uma espécie de rainha
Cujo trono se não veja.

09-10-1934



caravaggio-tocador.de.alaude-1594
Caravaggio, Tocador de alaúde (1594)


[SIM, ESTÁ TUDO CERTO]

Sim, está tudo certo.
Está tudo perfeitamente certo.
O pior é que está tudo errado.
Bem sei que esta casa é pintada de cinzento
Bem sei qual é o nome desta casa —
Não sei, mas poderei saber, como está avaliada.
Nessas oficinas de impostos que existem, que [?]
Bem sei, bem sei.
Mas o pior é que há almas aí dentro
E a Tesouraria das Finanças não conseguiu livrar
A vizinha do lado de lhe morrer o filho.
A Repartição de não sei quê não pôde evitar
Que o marido da vizinha do andar mais acima lhe fugisse
                  [ com a cunhada...
Mas, está claro, está tudo certo...
E, excepto estar errado, é assim mesmo, está certo.

05-03-1935




poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2020



Fernando Pessoa
      •  Todos os poemas:
      in Obra Poética - Volume único
      Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1977
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* Francisco Carvalho, “Estudo”, in Os Mortos Azuis (1971)
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* Imagens: quadros do pintor italiano Michelangelo Merisi, conhecido como Caravaggio (1571-1610)