Número 461 - Ano 19

Salvador, quarta-feira, 10 de março de 2021

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«A vida é uma coisa torta / escrita com linhas certas.» (Myriam Fraga) *

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Iara Maria Carvalho
Iara Maria Carvalho



Amigas e amigos,

A poeta em foco nesta edição é a potiguar Iara Maria Carvalho, que já nos deu a alegria de ler seus versos, aqui, nas edições n. 371, de 2017, e n. 349, de 2016. Agora, a autora retorna a esta página graças ao recente lançamento de sua nova coletânea de poemas, Meia Porção de Sol (Offset Editora, Natal, 2021).

Em seu novo livro, Iara Maria Carvalho continua a explorar algumas das principais linhas de força de sua poesia, entre as quais se destaca a apreciação lírica de suas próprias vivências, sempre permeada pela intervenção de pessoas, bichos e coisas de sua região. Iara nasceu e vive em Currais Novos-RN, na região do Seridó, que engloba municípios do Rio Grande do Norte e da Paraíba.

Antes de apresentar os poemas selecionados para a miniantologia desta edição, devo dizer que se trata de textos que eu já conhecia antes de ter o livro nas mãos. A autora distinguiu os poetas Adriane Garcia, Alberto Bresciani e também a mim para participar desse livro. Adriane e Alberto escreveram as orelhas e eu o prefácio. Portanto, recebemos porções de sol do Seridó desde o ano passado.

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Vamos aos poemas. Meia Porção de Sol, de Iara Maria Carvalho, é também um livro de memórias. Quase todos os primeiros poemas da coletânea fazem referências a personagens e histórias extraídas de recordações pessoais da autora. É o caso de “Antes do Riso”, o primeiro poema da seleta ao lado. Nele, aparecem o avô em sua oficina invadida pelos netos. Nessa oficina, afirma o texto, “tudo tinha um aroma / de sol nascendo”.

O próximo poema, “Na Filizola”, segue no mesmo tom. Agora o ambiente é a mercearia do pai, que vendia “fichas de orelhão, / chiclete Ploc, cajuína /— memórias embrulhadas / em papel de pão”. Aqui, um envolvente passe de mágica: numa lista de mercadorias, substantivos concretos de comércio, surgem de repente as memórias. Truque semelhante vem no final: a balança Filizola da mercearia, identificada com os ombros do sujeito lírico, mede o peso dos “nascidos para chorar”.

As memórias continuam. Em “No Batente”, destaca-se agora uma vizinha, Dona Júlia, uma idosa já falecida, mas que a voz narradora do poema jura que a viu em espírito. Lembranças. O melhor de tudo é que nós, leitores, também nos convencemos de que Dona Júlia está ali, viva e ativa, pitando seu cigarro, sentada no batente.

O texto registra ainda que a lembrança da vizinha vem toda vez que surge no ar um cheiro de cigarro. Conforme assinala Adriane Garcia na primeira orelha de Meia Porção de Sol, a poeta “escolhe a poesia para dizer dos sentidos: a memória é visual, auditiva, olfativa, gustativa, tátil, mas a poesia ainda conta com os sentidos inominados”.

As recordações passeiam ainda no seio da família. No poema “Minha Mãe”, a genitora trabalha com uma máquina de costura Singer “e põe na caixa de botões / os sentimentos extraviados”.

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Os dois últimos poemas ao lado aparecem na segunda parte do livro, na qual os textos não apresentam registros de memória. O poema “Reamar”, por exemplo, constitui uma bela reflexão existencial sobre o “começar de novo” após o tropeço numa pedra do caminho.

Por fim, em “Segredos”, as sempre atarefadas operárias (que são, duplamente, mulheres e formigas) se deslocam nas ruas e retornam ao lar, para a estranha convivência com seus companheiros. “O que as operárias / guardam no fundo / do formigueiro / ninguém sabe”.

“Ao terminar-se a leitura do livro, permanece a emoção, o deleite do ganho, o bom que se extrai da surpresa e da identificação. A poesia de Iara Maria Carvalho, definitivamente, tem o ‘aroma de sol nascendo’ ” — garante Alberto Bresciani, na segunda orelha do livro.

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Nascida em 1980 na cidade de Currais Novos-RN, Iara Maria Carvalho é graduada em letras e mestra em estudos da linguagem pela UFRN. Ativista cultural, foi uma das fundadoras do grupo Casarão de Poesia em sua cidade e hoje faz parte do coletivo Novos Potiguares.

Como poeta, Iara participou de várias antologias coletivas. Sua estreia em livro solo deu-se em 2011 com a coletânea Milagreira. Seguiram-se as coletâneas Saraivada (2015) e Meia Porção de Sol (2021), esta última apresentada neste boletim.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Meia porção de sol


• Iara Maria Carvalho


              

Cornelia Hernes - Elisa-2007
Cornelia Hernes, norueguesa, Elisa (2007)


ANTES DO RISO

Era silenciosa a oficina
do meu avô.
Curtir o couro entre
as correias e suas aparas
abissais, era coisa
pra mil séculos
de esperas.
Tudo tinha um aroma
de sol nascendo.
Ainda mais no tempo da festa,
quando os netos ruidosos
com rastro de lavanda
invadiam a oficina
depois do café da manhã.
Os olhinhos brilhando
diante da destreza do avô,
do silêncio do avô,
da carne dura do seu sorriso.



Cornelia Hernes - The Entertainer-2015
Cornelia Hernes, Comediante (2015)


NA FILIZOLA

A mercearia de papai
era a mais sortida do bairro.

Não faltavam aviamentos,
fichas de orelhão,
chiclete Ploc, cajuína
— memórias embrulhadas
em papel de pão.

Os fiados da caderneta
não davam conta
do vasto mundo diluído
nos olhos do meu pai.

Na Filizola dos ombros,
o peso silencioso dos nascidos
pra chorar.



Cornelia Hernes - Amorous Reflections-2012
Cornelia Hernes, Reflexões amorosas (2012)


NO BATENTE

Dona Júlia estava sentada à porta
da cozinha. Foi a primeira vez
que vi um espírito.
Ela era bem miúda e me pareceu
que a morte a diminuiu mais.
Os cabelos brancos num coque,
o pigarro, tinha um olhar
enlameado por uma finíssima
carne branca (filha do tempo).
Quando viva, já doente,
via os dedinhos opacos
do último neto que conheceu,
e pensava sempre que não
o estavam alimentando bem:
“o menino vai sumir”
“o menino vai morrer”.
Mas não. Eram só os olhos
de Dona Júlia cortinados por
silêncio e medo.
Vi seu espírito na porta da
cozinha lá de casa, sentada no
batente onde minha mãe
jogava as piúbas de cigarro
— onde minha mãe e Dona Júlia
fumavam entre cafés e
conversas meia-boca.
Mamãe ainda fuma e já faz
muito tempo que Dona Júlia
morreu. Morei em quase trinta
casas depois da casa da minha
infância e faz mais de trinta anos
que vi um espírito pela primeira vez.
Mas sempre que sinto cheiro
de cigarro e estou só,
penso que Dona Júlia acabou
de lavar roupa e toma
um café com cigarro ruim
do meu lado.



Cornelia Hernes - Portrait of Liz-2018
Cornelia Hernes, Retrato de Liz (2018)


MINHA MÃE

Minha mãe costura
na Singer
todo fim de
tarde,
elegante e
sagaz
na missão de
consertar o mundo.

Como toda mãe,
sabe botar brilho
nos olhos dos filhos,
e põe na caixa de botões
os sentimentos extraviados.

Seus olhos
— de tardezinha —
são dois botões nublados.



Cornelia Hernes - Varvara-2020
Cornelia Hernes, Varvara (2020)


REAMAR

Uma espécie em extinção,
o amor? Andar sem
olhar pra trás e tirar sempre
que pode a poeira que
repousa sobre a caixa onde
guarda a coleção dos fracassos.
Não, não está extinto.
De longe, ouvem-se os risos
dos namorados diante
da praia, a doçura do vento
embaraçando os cabelos
e os dedos. Há um jeito novo
antigo de ir embora
quando o amor não tem
mais sal, quando o amor não
dá mais onda, quando o amor
bate nas pedras e se quebra.
No entanto, dos sargaços
o amor se move, fica sob a areia
só até o dia em que a maré
baixa, deixando um rastro
de desejos e espuma,
saliva e sonho,
suor entre as conchas.
Remar, reamar.
Viver.



Cornelia Hernes - Self-portrait age 38-2017
Cornelia Hernes, Autorretrato aos 38 anos (2017)


SEGREDOS

As operárias
atravessam a rua
com seus cabelos vermelhos.

Disfarçam
planos incendiários
silêncios estratégicos
sonhos verdejantes.

Quando voltam pra casa,
os companheiros
permitem toda ausência
e pudor.

O que as operárias
guardam no fundo
do formigueiro
ninguém sabe,

mas é coisa muito grande:

um esqueleto,
uma flor.



poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2021



Iara Maria Carvalho
      •  Todos os poemas:
      in Meia Porção de Sol
      Offset Editora, Natal, 2021
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* Myriam Fraga, "Cabala", in As Purificações (1981)
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* Imagens: quadros da pintora norueguesa Cornelia Hernes (1979-)