Amigas e amigos,
A poeta oitocentista Emily Dickinson (1830-1886) é um dos escritores mais reverenciados em seu país, os Estados Unidos, e pelo mundo afora. Curiosamente,
esse encantamento com os poemas de Miss Dickinson só parece crescer com o passar do tempo.
Nascida em Amherst, Massachusetts, onde viveu durante toda a vida, a poeta, conhecida como “a bela de Amherst”, publicou somente uns poucos poemas em vida.
A partir dos 30 anos, manteve-se completamente reclusa na casa de sua família (um clã de destaque na cidade), dedicando-se a trabalhos domésticos, ao jardim,
à observação da natureza — e, claro, à poesia. Após sua morte, os familiares encontraram papéis com quase 1800 poemas.
Na internet, é fácil encontrar numerosíssimas referências à poeta, em sites norte-americanos, mas também em portais de variados lugares e idiomas. Pululam
os estudos sobre a criação poética de Emily e também as tentativas de traduzi-la. Aqui mesmo, neste boletim, Emily Dickinson já apareceu três vezes:
poesia.net n. 430 (2019),
n. 306 (2014) e
n. 67 (2004).
Cada uma dessas edições apresentava um ou mais tradutores. Na edição mais antiga, Emily Dickinson nos visita em português trazida pelas palavras
de Aíla de Oliveira Gomes, Augusto de Campos e Paulo Henriques Britto. Na segunda, os tradutores são, novamente, Aíla de Oliveira Gomes e
Augusto de Campos, mais Isa Mara Lando. Estes três lançaram livros com traduções de poemas da autora americana. Por fim, na terceira visita da
poeta de Amherst, seus poemas foram vertidos pelo tradutor Ivo Bender, que lançou em 2017 o livro Poemas Escolhidos, parte da Coleção Folha
Mulheres da Literatura,
da Folha de S. Paulo.
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Agora, surge nova tradução dos poemas de Emily Dickinson, assinada pelo poeta e professor da UFF Adalberto Müller e publicada pela Editora Universidade
de Brasília (UnB). Trata-se do volume Poesia Completa – Volume I: Os Fascículos, lançado no final de 2020. Publicação bilíngue, esse livro
requer alguma explicação, a partir do título. O que são esses “fascículos”? Nos manuscritos que deixou, a poeta passava os textos a limpo em folhas
de papel-carta e costurava de quatro a seis dessas folhas, formando folhetos que um estudioso, Ralph W. Franklin, chamou de fascículos. Outros
poemas ficaram em folhas soltas.
Outro detalhe: Emily não criava títulos para seus poemas. Assim, os primeiros organizadores de sua obra passaram a identificar os textos com números
sequenciais. São exatos 1775 poemas, que podem ser lidos neste site:
American Poems – Emily Dickinson: Complete Poems. (A propósito: uma
edição completa, publicada em 1999 pelo mesmo Ralph W. Frankin amplia o total de textos para 1789). Uma das críticas
que se fazem à numeração dos poemas está no fato de que, nesse processo, muitos poemas pertencentes a fascículos — que, portanto, tinham para a autora
algum “parentesco” temático, temporal ou de aspiração editorial — foram destacados e publicados numa ordem arbitrária.
A tradução de Adalberto Müller não usa essa numeração. Segue a edição Emily Dickinson: Poems as She Preserved Them (Harvard Press, 2016,
Cambridge-MA), coordenada pela acadêmica americana Cristanne Miller, uma autoridade em Dickinson. Nesse livro, os poemas são apresentados em dois volumes.
O primeiro enfeixa os fascículos em ordem cronológica. E o segundo (ainda não publicado) reúne as folhas soltas, poemas trascritos por terceiros etc.
Na versão brasileira, o primeiro volume forma um livro de peso, com 888 páginas. Nele, além dos poemas no original e as traduções, dispostos lado a lado,
o leitor encontra um prefácio da editora americana Cristanne Miller, mais notas introdutórias e um posfácio do tradutor.
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Para esta edição, selecionei alguns poemas, mas introduzi uma pequena modificação. Uso como título de cada poema o número que o identifica em outras
publicações da obra de Dickinson. Ao mesmo tempo, cito no rodapé, abaixo da tradução e do texto original, as indicações do volume. Por exemplo:
“Fascículo 2, Folha 2, c. início de 1859”. Aí estão, portanto, a origem do poema nos papéis da autora e a época aproximada em que foi escrito.
O primeiro poema é o número “56”, com data de 1859. Trata-se de um dos numerosos textos em que Emily Dickinson elege a morte como tema. Na verdade,
esse motivo vem combinando com uma flor, outro de seus assuntos prediletos. Diz ela, na primeira quadra: “Se eu não mais trouxer a Rosa / Em uma festiva data, /
Será porque ao além da Rosa / Terei sido chamada —”. Mais adiante, não resta mais dúvida acerca desse além grifado.
No poema seguinte, de número “97”, o arco-íris entra em cena como um ser dotado de sabedoria. E detalhe: um ser feminino, como mostra o pronome she
no texto original. Não funciona como uma espécie de boletim meteorológico, capaz de indicar se vai chover ou ventar, mas, na avaliação da poeta, parece
alguém “mais convincente / que qualquer Filosofia”.
Na segunda quadra, a atenção se volta para as flores. Estas “fogem do fórum”, ou seja, assim como o arco-íris, não têm o dom da fala. Contudo, exibem um
tipo de eloquência que suplanta os recursos de Catão, o Jovem, senador da Roma Antiga, exímio orador e, portanto, um ás do fórum. Só que as flores, ao
brotar, fazem declarações mais sutis: provam que por ali passaram pássaros, favorecendo a polinização. Esta é Emily Dickinson. Diz tudo isso em apenas
oito versos com ares despretensiosos.
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No poema seguinte, o “111”, a autora permanece na observação da natureza. Abelhas, borboletas, brisa, neblina, verão. No texto n. “285”, a festa continua,
com pássaros, flores, e estações do ano. Atenção para a ousadia, no original, do advérbio de modo New Englandly (Nova-Inglaterramente),
No convívio com os seres de seu quintal e de sua região, a Nova Inglaterra, a autora declara que enxerga tudo conforme seu ponto de vista local. Irônica,
acredita que mesmo a soberana (da Velha Inglaterra, claro, na época a Rainha Vitória) também aprecia as coisas conforme seu ponto de vista, que é também
dependente de lugar, e portanto “provinciano”.
A próxima criatura dos bosques de Emily Dickinson é uma “coisa com plumas”, a Esperança, mas também tratada como Passarinha. Ela insiste em permanecer
conosco e, mesmo nas situações mais duras, não se curva a pedir migalhas.
No poema “255”, escrito no início de 1862, traz uma breve reflexão sobre a morte. Segundo este poema, a morte é algo rápido e “dizem que nem dói”: mais
uma vez, a ironia. Mas de fato a desmemória é que se impõe: “Logo esqueceremos de tudo — / Com os raios do sol —”.
A morte é também o tema do último texto, n. “533”. Duas borboletas saem valsando na tarde e se extinguem ao sol. Sabe-se apenas que foram, mas não para
onde, nem há notícia de que tenham chegado a qualquer lugar. Os pássaros não sabem, nem os navios. Ninguém jamais viu as borboletas desaparecidas.
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Vale destacar a imensa coragem do tradutor Adalberto Müller ao enfrentar a dificílima tarefa de pôr em português toda a poesia de Emily Dickinson. Para que
se tenha ideia do tamanho dessa proeza, transcrevo, do livro, um trecho do prefácio da editora americana Cristanne Miller:
“Dickinson se distingue de muitos poetas por seu modo raro de usar metáforas e pela linguagem a um só tempo ritmicamente poderosa e elipticamente concisa
o bastante para fazer perguntas ou introduzir questões sobre as quais podemos tanto ter uma compreensão clara quanto ficar em dúvida a vida toda”.
Assim, pode-se concluir que essas dúvidas e obscuridades também se apresentam — em escala bem mais assustadora — ao tradutor. O leitor pode se dar ao luxo
de deixar um poema de lado, se não o entende, ou se não consegue traçar para si mesmo o significado de uma metáfora. O tradutor, não: a própria natureza
de sua tarefa o obriga a construir hipóteses e optar por uma delas. Caso contrário, não há tradução.
Não é à toa que são poucos os casos de alguém sentar-se e verter para outro idioma a obra completa de um poeta. O próprio Adalberto Müller destaca no prefácio
que sua tradução é a primeira em português a cobrir a totalidade da poesia de Emily Dickinson, embora reconheça ser ela uma das autoras mais traduzidas
para nosso idioma.
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Saí desta Poesia Completa de Emily Dickinson com uma pequena dúvida editorial. Em vários poemas do livro, surgem palavras destacadas em itálico, desde
o original. É o caso do poema n. “56”, que abre a seleção ao lado. Aí, os destaques estão em beyond (além) e Death’s (da Morte). De onde vêm
essas marcações? Estavam indicadas nos manuscritos de Dickinson ou resultaram de decisões de algum estudioso da obra? Posso estar enganado — obviamente
não sou especialista na autora —, mas nunca observei isso em outras publicações. Fica a dúvida.
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Executei uma busca aqui em minha estante e levantei os seguintes livros com traduções de poemas de Emily Dickinson, além do volume em foco neste boletim:
• Emily Dickinson: Uma Centena de Poemas
Tradutora: Aíla de Oliveira Gomes
T.A. Queiroz/Edusp, São Paulo, 1984
• Emily Dickinson: Não Sou Ninguém
Tradutor: Augusto de Campos
Editora da Unicamp, Campinas, 2008
• Emily Dickinson: Loucas Noites Wild Nights
Tradutora: Isa Mara Lando
Disal Editora, Barueri-SP, 2010
• Emily Dickinson: A Branca Voz da Solidão
Tradutor: José Lira
Iluminuras, São Paulo, 2011
• Emily Dickinson: Poemas Escolhidos
Tradutor: Ivo Bendler
Coleção Folha Mulheres na Literatura, São Paulo, 2017
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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