Número 467 - Ano 19
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Salvador, quarta-feira, 9 de junho de 2021
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«Tuas palavras antigas / deixei-as todas, deixei-as, / junto com as minhas cantigas, / desenhadas nas areias.» ( Cecília Meireles) *
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Aleilton Fonseca
Amigas e amigos,
Creio que nenhum de nós alimenta a menor dúvida de que o atual período de pandemia deverá inspirar bibliotecas inteiras de novos livros
de ficção, reportagens, memórias, além dos estudos em ciências médicas e sociais. E a poesia, claro, não ficará de fora, diante de um fenômeno tão arrasador, causa de
enorme sofrimento, horror e morte.
Uma prova concreta disso já chegou às livrarias. Trata-se do livro A Terra em Pandemia, publicado no final de 2020 pelo poeta, ficcionista e ensaísta
baiano Aleilton Fonseca (Firmino Alves, 1959). De concepção ambiciosa, esse volume contém um longo poema épico, escrito, conforme o autor, no
período de 26/05/2020 a 30/09/2020 — portanto, durante cinco dos primeiros e cruciais meses da pandemia.
Se fosse possível descrever o processo de criação de A Terra em Pandemia, poderíamos dizer que Aleilton Fonseca combinou magistralmente registros
noticiosos sobre o avanço devastador do coronavírus pelos quatro cantos do mundo com um rico arsenal de citações literárias, históricas e mitológicas.
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Dividido em cinco cantos (“I. O Enterro dos Mortos”; “II. Um Jogo de Cartas”; “III. A Terra em Pandemia”; “IV. O Desfile das Infâmias”; e “V. Canto Final”),
o poema vai costurando notícias e alusões literárias. Apesar da miríade de citações, a principal inspiração para esse livro é o poema
The Waste Land, publicado em 1922 pelo americano-inglês T.S. Eliot, Prêmio Nobel de Literatura de 1948.
Tomar The Waste Land ("A Terra Desolada", na tradução de Ivan Junqueira, ou "A Terra Devastada", para outros) como ponto de apoio faz todo o
sentido para A Terra em Pandemia. A razão fundamental para isso está em que a obra de Eliot é também um poema escrito sob o impacto de uma pandemia, a da
gripe espanhola, cem anos atrás.
Eliot e a esposa contraíram a gripe espanhola em dezembro de 1918 e ele escreveu boa parte de "A Terra Desolada" durante a recuperação da doença. O texto foi
produzido sob o impacto destrutivo da Primeira Guerra Mundial e da horrível epidemia de influenza, que entre 1918 e 1920 ceifou a vida de 100 milhões de
pessoas mundo afora. No Brasil, há estimativas de até 300 mil óbitos. A rigor, os malefícios da pandemia foram maiores que os da guerra,
uma vez que a gripe chegou até mesmo a lugares onde não se disparou um único tiro.
O peso da pandemia sobre o poema de Eliot é tão grande que ele inicia o texto com uma parte chamada “O Enterro dos Mortos”. Isso inclusive fornece a
pista para que se entenda a primeira frase do poema, a celebérrima “Abril é o mês mais cruel”. Não se tente buscar o sentido dessa afirmação em
algo associado às condições climáticas do mês de abril.
No hemisfério norte, onde Eliot sempre viveu, abril é, ao contrário do que diz o verso, um mês primaveril — portanto, de fecundidade, florescimento
e esperança. Como um mês assim pode ser o mais cruel? A resposta está na pandemia de gripe que assolava o planeta, após mais de cinco anos de guerra.
Sabe-se, aliás, que o movimento de tropas pelo mundo ajudou a disseminar o vírus da influenza.
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Mas voltemos a A Terra em Pandemia. Na seleção de trechos ao lado, reuni oito estrofes, nas quais estão representados todos os cinco cantos
do poema. Um traço a ser destacado é que o texto, à maneira dos artigos acadêmicos, inclui 62 notas de rodapé.
Não por acaso, como para apresentar sua carteira de identidade genética, o livro de Aleilton Fonseca tem como primeira parte um bloco chamado
“O Enterro dos Mortos”. E, para não deixar dúvidas sobre o parentesco, seu verso inicial é (veja ao lado) “Abril e maio foram os mais cruéis dos meses”.
Na linha seguinte, os “malmequeres pisoteados nos cemitérios” também remetem aos “lilases da terra morta” na abertura de The Waste Land.
Atento à sugestão atmosférica, o poeta baiano lembra que “Agora caem as lágrimas das chuvas de outono”. Aproveita, então, nossa estação de mudança
atmosférica (chuvas, prenúncio de frio) e combina-a com a mortandade da epidemia. Observe-se que, em português, os malmequeres também se chamam
bem-me-queres, mas o poeta, atento e coerente, preferiu as flores do “mal”.
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No canto “I”, começa a pandemia. No “II. Um Jogo de Cartas”, uma vidente do bairro, anuncia: “eis aqui as cartas, / O destino, as revelações: a
vida e a morte entrelaçadas”. A despeito da promessa, a cartomante não prevê a hecatombe. No canto “III”, a peste se alastra. “Em fins de fevereiro,
já te encontras em terras brasileiras”, diz o texto, falando diretamente ao vírus. “De vizinho a vizinho, és o sopro da morte, de pulmão a pulmão: /
É aquela corrente pra frente, parece que todo o Brasil deu a mão”.
Note-se que, neste último verso, há uma nota de rodapé para explicar aos mais jovens e não brasileiros a referência à marcha ufanista “Pra Frente,
Brasil”, de 1970, que estimulava a seleção brasileira de futebol e também servia de propaganda governista no período mais repressivo da ditadura militar.
Ainda no canto “III”, a pandemia se dissemina pelo mundo, mas principalmente no Brasil: “Confinados e finados, enfermos e moribundos, clínicos e
pacientes. / (...) Vitória, cidade vencida. Porto Alegre, sem porto. Florianópolis, triste. / Curitiba em pasmo, parada. Um país rendido, a terra arrasada”.
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O bloco “IV. O Desfile das Infâmias” descreve a ação dos negacionistas brasileiros, aqueles que, sob a influência do negacionista-mor, jogam no time do
vírus, alinham-se nas fileiras da morte. “A turba invadia as ruas, qual ratos aos magotes, / Em dias aprazados, com mesquinhez e aleivosia”. (...) “Portavam
estandartes verde-amarelos, cores sequestradas à razão”. (...). “Profanavam o ar, com gritos e esgares, palavras de desordem / Exumadas do lixo, dos
ataúdes infernais”.
A parte final, “V”, apesar da exaustão de assistir a tantos horrores, é um canto à vida, com a esperança de que “os sábios, guardadores do fogo” (...)
“manterão acesa a chama que iluminará os pósteros”. Viva a vida!
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A obra de Aleilton Fonseca é muito mais numerosa nas áreas da ficção (contos, romances) e ensaios do que na poesia. O autor já esteve aqui no
poesia.net, 14 anos atrás, na edição n. 208. Para aquele
boletim, os poemas foram extraído do livro As Formas do Barro & Outros Poemas (EPP Publicações, Salvador, 2006). Fonseca é professor da
Universidade Estadual de Feira de Santana e membro da Academia de Letras da Bahia.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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Casey Baugh, pintor americano, Nocturnus 0146
Abril e maio foram os mais cruéis dos meses.
Malmequeres pisoteados nos cemitérios,
Canteiros de corpos infectos em covas rasas.
Tristes dias, noites hediondas, ao pôr do sol
Contavam-se os cadáveres empilhados nos corredores.
O beijo da morte, terno e eterno, a todos iguala?
Desespero e pranto, pena e raiva. Améns.
O verão dera sinais; e fomos vis, cegos e surdos.
Agora caem as lágrimas das chuvas de outono,
E nada nos salvará da travessia no pântano.
Da parte “I. O Enterro dos Mortos”
Casey Baugh, Chapéu preto
Uma amável senhora, nossa vizinha, famosa vidente do bairro,
Não previu a má sorte, embora estivesse com receio dos fatos.
Era conhecida por ser a mulher mais esperta do condomínio.
Seria discípula de Tirésias, se alcançasse o sentido do mito.
O cego clarividente, guardião do devir, adivinho por dom,
Ungido por Zeus para ver além dos segredos do Olimpo.
A vizinha amava suas carcomidas peças de tarô. Em dezembro,
Jogara as cartas. Não anteviu a crise, nem a falta de respiradores.
Desejava desvelar um ano de alegrias. Ela disse: eis aqui as cartas,
O destino, as revelações: a vida e a morte entrelaçadas.
Da parte “II. Um Jogo de Cartas”
Casey Baugh, Indiferente
Em fins de fevereiro, já te encontras em terras brasileiras.
Os tristes trópicos te apetecem? E tu vens por imenso mal.
Eis a Terra Brasilis 16 — já tão invadida! — tal pasto de pantomimas.
E tu vais aqui te alastrar. E brecar o samba, e matar a bola,
E parar a dança, e ocupar os campos e ruas e avenidas para nos matar.
Dos condomínios para as favelas; das mansões para os barracos,
Das madames às domésticas, dos patrões aos empregados,
Dos clientes aos funcionários, dos filhos aos pais, dos netos aos avós,
De vizinho a vizinho, és o sopro da morte, de pulmão a pulmão:
É aquela corrente pra frente, parece que todo o Brasil deu a mão.17
Casey Baugh, Nocturnus 0148
A Arábia Saudita fechou a sagrada Meca, o santuário de Ka’Bah.
Na Basílica do Vaticano, um Papa, triste e só, ora e pede clemência.
Nos terreiros de candomblé, os atabaques ressoam o silêncio.
Tu, oh inexato ser, não ouves preces, e tampouco litanias.
Em março sacodes o Brasil em crises e convulsões.
Aqui te crias pela insensatez, pela negação, pela inércia.
E então governas de norte a sul, com teus parceiros ineptos.
Já palmilhaste a Terra inteira. E do México ao Canadá,
teu rastilho se espalha pelas Américas Central e do Sul.
De Peru a Brasil, de Chile a Colômbia, vais aos extremos.
(...)
Brasil, Brazil — Que país é este? 36 Julho, um ciclo devastador.
Sob o poder de Tânatos, o mês mais mortal ceifou 33 mil vidas.
Recordes de mortes, e multidões de zumbis à própria sorte.
Mais de dois milhões e meio de pessoas infectadas nas ruas.
Último dia do mês, uma sexta-feira: perdas, ruína e dúvidas.
Mais de 92 mil óbitos, na subida de um Monte Calvário.
Terra de Vera Cruz. Terra de Santa Cruz. Terra Brasilis.
Terra arrasada. Estado enfermo. Terra resignada.
Sem lágrimas. Governo errático. Que lástima!
Estado sem tino. Elos perdidos. Terra sem destino?
Oh ardiloso colonizador, dia a dia desmantelas as fronteiras,
Ocupas mapas e corpos, sitias o campo, bloqueias as estradas,
Conquistas as cidades, anexando ruas, praças e os nossos lares.
Somos prisioneiros, teus reféns. Somos teus míseros troféus?
Confinados e finados, enfermos e moribundos, clínicos e pacientes.
Manaus, Belém e Palmas, nada a aplaudir, só a lamentar;
Salvador, Recife e São Luís, em luta. Fortaleza não desiste.
São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte: nada de bom a mirar.
Vitória, cidade vencida. Porto Alegre, sem porto. Florianópolis, triste.
Curitiba em pasmo, parada. Um país rendido, a terra arrasada.
Da parte “III. A Terra em Pandemia”
Casey Baugh, Nocturnus 0144 (detalhe)
A infâmia é privilégio dos vivos. Os mortos são de paz.
A turba invadia as ruas, qual ratos aos magotes,
Em dias aprazados, com mesquinhez e aleivosia.
O barulho trazia pavor, sinais de conflito e destruição.
Olhos injetados de ódio a toda condição humana.
Portavam estandartes verde-amarelos, cores sequestradas à razão.
Vestiam-se com uniformes, ora desviados do seu mister.
Profanavam o ar, com gritos e esgares, palavras de desordem
Exumadas do lixo, dos ataúdes infernais.
Vertiam veneno, ácido e fel nos gestos.
Da parte “IV. O Desfile das Infâmias”
Casey Baugh, Brooklin Noturno
Salvem-se os sábios, guardadores do fogo,
Em abrigos seguros, no fundo das consciências.
Eles manterão acesa a chama que iluminará os pósteros.
Há sinais nas praças, nos becos, nos lares, nos corações,
E todos serão aquecidos sob sua luz,
Sem receio de ser, sem medo de amar. Em verdade,
Em verdade vos digo: tudo a seu tempo se cumpre,
Por uma lógica que lhe é própria e imanente,
A vida fluindo conforme os quatro elementos:
Salve, Gaia, oh Mãe Natureza! Ad plenam vitam.62
Da parte “V. Canto Final”
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16 O mapa com o título “Terra Brasilis”, de autoria do cartógrafo português Lopo Homem, foi feito no ano de 1519.
In: CORTESÃO, Armando. Cartografia e cartógrafos portugueses dos séculos XV e XVI. Lisboa: Seara Nova, 1935.
17 Frase da marcha “Pra frente, Brasil”, de Miguel Gustavo (1922-1972), de teor nacionalista ufanista, usada como estímulo
à vitória na Copa do Mundo de 1970, no auge do autoritarismo no Brasil.
36 Título de um livro de poemas de Affonso Romano de Sant’Anna (1937-).
62 A expressão latina ad plenam vitam significa para a vida plena.
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poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2021
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Aleilton Fonseca
in Terra em Pandemia
Mondrongo, Itabuna-BA, 2020
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Cecília Meireles, "Modinha", in Vaga Música (1942)
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* Imagens:
obras de
Casey Baugh (1984-),
pintor americano.
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