Número 468 - Ano 19

Salvador, quarta-feira, 30 de junho de 2021

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«Como vencer o oceano / se é livre a navegação / mas proibido fazer barcos?» (Carlos Drummond de Andrade) *

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Cacaso
Cacaso



Amigas e amigos,

Mineiro de Uberaba, o professor universitário, poeta e letrista Antonio Carlos de Brito (1944-1987), conhecido como Cacaso, tornou-se um dos expoentes da chamada poesia marginal, movimento literário que floresceu nos anos 1970, especialmente no Rio de Janeiro.

Embora tenha vivido pouco (morreu aos 43 anos), Cacaso deixou extensa produção de poemas e letras de canção. Fazendo jus à popularidade de seu trabalho artístico, a Companhia das Letras acaba de lançar o volume Poesia Completa (2021), que reúne sua obra poética publicada, além de uma farta coleção de poemas inéditos e letras de música.

Sempre mantive um ponto de vista a respeito da obra de Cacaso. Vejo na trajetória dele um processo similar ao que aconteceu com Vinicius de Moraes: ambos começaram poetas e, pelas trapaças da sorte, desembarcaram na música popular. A diferença é que Vinicius teve muito mais tempo para trafegar nas duas artes.

Ao ler, agora, essa reunião da poesia cacasiana, reforcei mais ainda esse ponto de vista. Notei, em diferentes momentos, que certas ideias surgidas em poemas do autor reaparecem, depois, em suas letras musicais.

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Mas vamos aos poemas escolhidos para este boletim. Abro a seleção com “O Pássaro Incubado”, texto datado de 1963, quando o autor tinha por volta de 19 anos. Publicado no livro A Palavra Cerzida (1967), o poema, em tom joão-cabralino, discorre sobre a condição do pássaro engaiolado: “Falta a ele: não espaço / nem horizontes nem casas. / Sobra-lhe uma roupa enjeitada / que lhe decepa as asas”.

Vêm a seguir, dois poemas de Grupo Escolar (1974). Aqui o poeta já incorpora o humor e a irreverência que se tornaram verdadeiras marcas registradas de sua poesia e são também emblemas da poesia marginal. Em “Política Literária”, Cacaso apresenta uma paródia ao poema homônimo de Carlos Drummond de Andrade. No texto modernista drummondiano, os personagens são o poeta municipal, o estadual e o federal. Na versão de Cacaso, o embate se dá entre os poetas concreto, processo e abstrato.

Em “Jogos Florais” vem outra paródia inspirada na poesia do primeiro modernismo, em especial no poema-piada: “será mesmo com 2 esses / que se escreve paçarinho?”. Observe-se que até no título do livro, Grupo Escolar, Cacaso busca aproximar-se do humor de Oswald de Andrade, que escreveu o livro Primeiro Caderno do Aluno de Poesia Oswald de Andrade (1927). Nota-se também nos poemas “escolares” de Cacaso a revelação de um trocadilhista impenitente. “Rachados e Perdidos” e “Dever de Caça” são, por exemplo, nomes de duas “lições” nessa escola.

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Avancemos agora para alguns micropoemas de Beijo na Boca (1975). Continuamos no território dos ditos espirituosos. Exemplo: “Vi meu amor chorando duas vezes / Numa nos conhecemos. Noutra nos despedimos”. Em seguida, vêm dois textos de Segunda Classe, também de 1975 e publicado em parceria com Luis Olavo Fontes. No final de 1974, com Fontes e amigas, Cacaso fez uma viagem pelo rio São Francisco, começando em Pirapora-MG e indo até Juazeiro-BA, daí derivando para Salvador.

Essa viagem inspirou Cacaso para escrever os micropoemas “Utopia” e “Notícias”, transcritos ao lado. Esses dois textos, nem preciso lembrar, foram aproveitados depois pelo poeta na letra da canção “Sanha na Mandinga” (“Na beira do São Francisco / Eu quero me deitar, eu quero namorar”), composta e gravada por Edu Lobo no álbum Camaleão (1978). Esse álbum contém mais cinco músicas com letras de Cacaso. Entre elas está “Lero-lero”, em cuja letra Cacaso faz uma profissão de fé de brasileiro e poeta: “Eu sou poeta e não nego a minha raça / Faço versos por pirraça / E também por precisão”. “Lero-lero” é talvez a letra mais conhecida de Cacaso.

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Em poemas de Na Corda Bamba (1978), Cacaso continua a exibir o mesmo espírito irreverente, como se pode ver em “Ecologia”, “O Lugar da Transgressão” e “Rotina”. Em “Obra Aberta”, destaca-se a piada com a ditadura militar e a militância política.

Com o passar do tempo, o poeta Cacaso vai se envolvendo cada vez mais com a música popular. Letras suas fizeram grande sucesso em parcerias como as citadas com Edu Lobo e também com Sueli Costa, autora da melodia de “Face a face”. No cômputo geral, Cacaso escreveu letras para Jards Macalé, João Donato, Djavan, Joyce, Francis Hime e muitos outros compositores. Até fez letra em parceria com João Bosco e Aldir Blanc. Na verdade, ele se envolveu tanto com a música que também chegou a compor músicas e letras sozinho.

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Mar de Mineiro (1982) é a última coletânea de poesia publicada em vida pelo uberabense-carioca. Nesse livro, Cacaso se mostra crescentemente voltado para as letras de música. Leiamos, por exemplo, o poemeto “Manhã Profunda”: “Um passarinho cantou tão triste / tão sozinho / um outro respondeu espere já vou / aí já vou aí já vou aí”. O que se registra neste poema é um verdadeiro esforço musical. O poeta quer traduzir, em palavras, o canto do pássaro.

Em “A Palavra do $enhor” o espírito trocadilhístico ataca, com toda a mordacidade, os vendilhões do templo que transformam as religiões em negócios de riqueza e poder. Ciente das intenções desses falsários, o profeta Cacaso adverte: “No princípio / era / a Verba”.

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Entre os poemas inéditos recolhidos na Poesia Completa, selecionei “O Cantador de Canudos”. Com esse texto, quero mostrar, mais uma vez, a inclinação total de Cacaso para o lado das letras musicais. Aí ele brinca com as palavras e dá rédea solta à criatividade. Uma coisa puxa a outra, seguindo o ritmo: “o burro disse ao cavalo / cavalo disse ao jumento / jumento cantou pro galo / e o galo pro cata-vento / o cata-vento no ato / deu a notícia pro vento”. Trata-se de um procedimento mais de letrista que de poeta.

Esse mesmo método criativo se encontra em letras como “Se Porém Fosse Portanto” (Francis Hime/Cacaso) e mesmo no sucesso “Face a Face” (Sueli Costa/Cacaso), que também transcrevo ao lado. Nesta última letra, Cacaso, falando de amor e paixão, esbanja paralelismos verbais (trapaças/desgraças, graças/traças) e constrói cascatas de rimas inesperadas.

Enfim, acredito que Cacaso é um poeta que, assim como Vinicius de Moraes, começou a navegar na poesia e terminou na música popular. Ao dizer isso, faço questão de repetir: não considero o letrista maior ou menor que o poeta. Simplesmente acredito que estamos falando de duas artes diferentes, embora com muitos pontos em comum. Aliás, depois que a Academia Sueca concedeu o Prêmio Nobel de Literatura ao letrista Bob Dylan, nem seria necessário fazer essa observação.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Trapaças da sorte


• Cacaso


              

Jean-Baptiste-Camille Corot - Madame Legois-1838
Jean-Baptiste-Camille Corot, pintor francês, Madame Legois (1838)


O PÁSSARO INCUBADO

O pássaro preso na gaiola
é um geógrafo quase alheio:
Prefere, do mundo que o cerca,
não as arestas: o meio.

É isso que o diferencia
dos outros pássaros: ser duro.
Habita cada momento
que existe dentro do cubo.

Ao pássaro preso se nega
a condição acabado.
Não é um pássaro que voa:
É um pássaro incubado.

Falta a ele: não espaços
nem horizontes nem casas:
Sobra-lhe uma roupa enjeitada
que lhe decepa as asas.

O pássaro preso é um pássaro
recortado em seu domínio:
Não é dono de onde mora,
nem mora onde é inquilino.

Rio, 1963.

       • De A Palavra Cerzida (1967)



Jean-Baptiste-Camille Corot - Gypsy.girl.with.mandolin-c.1870-75
Camille Corot, Moça cigana com bandolim (c.1870-1875)


POLÍTICA LITERÁRIA

O poeta concreto
discute com o poeta processo
qual deles é capaz de bater
o poeta abstrato.

Enquanto isso o poeta abstrato
tira meleca do nariz.


JOGOS FLORAIS

I

Minha terra tem palmeiras
onde canta o tico-tico.
Enquanto isso o sabiá
vive comendo o meu fubá.

Ficou moderno o Brasil
ficou moderno o milagre:
a água já não vira vinho,
vira direto vinagre.

II

Minha terra tem Palmares
memória cala-te já.
Peço licença poética
Belém capital Pará.

Bem, meus prezados senhores
dado o avançado da hora
errata e efeitos do vinho
o poeta sai de fininho.

(será mesmo com 2 esses
que se escreve paçarinho?)

       • De Grupo Escolar (1974)




Jean-Baptiste-Camille Corot - An italian girl-c.1872
Camille Corot, Moça italiana (c.1872)


SINA

o amor que não dá certo sempre está por
perto



FAZENDO AS CONTAS

Vi meu amor chorando duas vezes
Numa nos conhecemos. Noutra nos despedimos.

       • De Beijo na Boca (1975)



UTOPIA

nas margens do São Francisco quero
sentar para namorar



NOTÍCIAS

não fui ao correio porque não tinha pra quem telegrafar

       • De Segunda Classe (1975), em parceria com Luis Olavo Fontes




Jean-Baptiste-Camille Corot - Agostina-1866
Camille Corot, Agostina (1866)


ECOLOGIA

Num tá fácil, malandro,
A natureza tá ficando desarvorada



OBRA ABERTA

    [para José Joffily Filho]

Quando eu era criancinha
O anjo bom me protegia
Contra os golpes de ar.
Como conviver agora com
Os golpes? Militar?



O LUGAR DA TRANSGRESSÃO

Encontrei um sapo cochilando dentro de
Minha botina. Nunca me meti em botina
De sapo. Que liberdades são essas?



ROTINA

Uma comissão de urubus inspeciona
O pasto desde ontem. Foi cascavel novamente.

       • De Na Corda Bamba (1978)




Jean-Baptiste-Camille Corot - Lady in blue-1874
Camille Corot, Mulher de azul (1874)


MANHÃ PROFUNDA

    [para Maria Alice]

Um passarinho cantou tão triste
tão sozinho
um outro respondeu espere já vou
aí já vou aí já vou aí



POÉTICA

Academia Brasileira de Letras de
Fôrma
Academia Brasileira de Letras de
Câmbio



A PALAVRA DO $ENHOR

No princípio
era
a Verba

       • De Mar de Mineiro (1982)




Jean-Baptiste-Camille Corot -Young.boy.of.the.corot.family-1850.jpg
Camille Corot, Menino da família Corot (1850)


CANTADOR DE CANUDOS

o burro disse ao cavalo
cavalo disse ao jumento
jumento cantou pro galo
e o galo pro cata-vento
o cata-vento no ato
deu a notícia pro vento
o vento soprou o fato
o fato deu argumento
o argumento deu fogo
o fogo passou pra tocha
a tocha passou o fogo
na boca do Glauber Rocha
o Glauber disse ao tuim
o tuim disse ao passante
o passante disse a mim
eu agora passo adiante
pra não virar surubim
pra não virar elefante…

       • De Poemas Inéditos (1977-1987)




Jean-Baptiste-Camille Corot - Autorretrato com paleta
Camille Corot, Autorretrato com paleta (c. 1840)


FACE A FACE

São as trapaças da sorte, são as graças da paixão
Pra se combinar comigo tem que ter opinião
São as desgraças da sorte, são as traças da paixão
Quem quiser casar comigo tem que ter bom coração
Morena, quando repenso o nosso sonho fagueiro
O céu estava tão denso, o inverno tão passageiro
Uma certeza me nasce e abole todo o meu zelo
Quando me vi face a face fitava o meu pesadelo
Estava cego o apelo, estava solto o impasse
Sofrendo nosso desvelo, perdendo no desenlace
No rolo feito novelo, até o fim do degelo
Até que a morte me abrace

São as desgraças da sorte, são as traças da paixão
Quem quiser casar comigo tem que ter bom coração
São as trapaças da sorte, são as graças da paixão
Pra se combinar comigo tem que ter opinião
Morena, quando relembro aquele céu escarlate
Mal começava dezembro, já ia longe o combate
Uma lambada me bole, uma certeza me abate
A dor querendo que eu morra, o amor querendo que eu mate
Estava solta a cachorra que mete o dente e não late
No meio daquela zorra, perdendo no desempate
Girando feito piorra, até que a mágoa escorra
Até que a raiva desate

São as trapaças da sorte, são as graças da paixão
Pra se combinar comigo tem que ter opinião
São as desgraças da sorte, são as traças da paixão
Quem quiser casar comigo tem que ter bom coração.

      • Letra de Cacaso para música de Sueli Costa.
        Canção gravada pela cantora Simone em 1977.




Face a face (Sueli Costa/Cacaso), na interpretação de Simone




poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2021



Cacaso
      in Poesia Completa
      Companhia das Letras, São Paulo, 2021
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* Carlos Drummond de Andrade, "Rola Mundo", in A Rosa do Povo (1945)
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* Imagens: obras de Jean-Baptiste-Camille Corot (1796-1875), pintor francês.