Amigas e amigos,
Mineiro de Uberaba, o professor universitário, poeta e letrista Antonio Carlos de Brito (1944-1987), conhecido como Cacaso, tornou-se um dos
expoentes da chamada poesia marginal, movimento literário que floresceu nos anos 1970, especialmente no Rio de Janeiro.
Embora tenha vivido pouco (morreu aos 43 anos), Cacaso deixou extensa produção de poemas e letras de canção. Fazendo jus à popularidade de seu trabalho artístico, a Companhia das Letras acaba de lançar o volume Poesia Completa (2021), que reúne sua obra poética publicada, além de uma farta coleção de poemas inéditos e letras de música.
Sempre mantive um ponto de vista a respeito da obra de Cacaso. Vejo na trajetória dele um processo similar ao que aconteceu com Vinicius de Moraes: ambos começaram poetas e, pelas trapaças da sorte, desembarcaram na música popular. A diferença é que Vinicius teve muito mais tempo para trafegar nas duas artes.
Ao ler, agora, essa reunião da poesia cacasiana, reforcei mais ainda esse ponto de vista. Notei, em diferentes momentos, que certas ideias
surgidas em poemas do autor reaparecem, depois, em suas letras musicais.
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Mas vamos aos poemas escolhidos para este boletim. Abro a seleção com “O Pássaro Incubado”, texto datado de 1963, quando o autor tinha por volta de 19 anos. Publicado no livro A Palavra Cerzida (1967), o poema, em tom joão-cabralino, discorre sobre a condição do pássaro engaiolado: “Falta a ele: não espaço / nem horizontes nem casas. / Sobra-lhe uma roupa enjeitada / que lhe decepa as asas”.
Vêm a seguir, dois poemas de Grupo Escolar (1974). Aqui o poeta já incorpora o humor e a irreverência que se tornaram verdadeiras marcas
registradas de sua poesia e são também emblemas da poesia marginal. Em “Política Literária”, Cacaso apresenta uma paródia ao poema homônimo de Carlos Drummond de Andrade. No texto modernista drummondiano, os personagens são o poeta municipal, o estadual e o federal. Na versão de Cacaso, o embate se dá entre os poetas concreto, processo e abstrato.
Em “Jogos Florais” vem outra paródia inspirada na poesia do primeiro modernismo, em especial no poema-piada: “será mesmo com 2 esses / que se escreve paçarinho?”. Observe-se que até no título do livro, Grupo Escolar, Cacaso busca aproximar-se do humor de Oswald de Andrade, que escreveu o livro Primeiro Caderno do Aluno de Poesia Oswald de Andrade (1927). Nota-se também nos poemas “escolares” de Cacaso a revelação de um trocadilhista impenitente. “Rachados e Perdidos” e “Dever de Caça” são, por exemplo, nomes de duas “lições” nessa escola.
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Avancemos agora para alguns micropoemas de Beijo na Boca (1975). Continuamos no território dos ditos espirituosos. Exemplo: “Vi meu amor chorando duas vezes / Numa nos conhecemos. Noutra nos despedimos”. Em seguida,
vêm dois textos de Segunda Classe, também de 1975 e publicado em parceria com Luis Olavo Fontes. No final de 1974, com Fontes e amigas, Cacaso fez uma viagem pelo rio São Francisco, começando em Pirapora-MG e indo até Juazeiro-BA, daí derivando para Salvador.
Essa viagem inspirou Cacaso para escrever os micropoemas “Utopia” e “Notícias”, transcritos ao lado. Esses dois textos, nem preciso lembrar, foram aproveitados depois pelo poeta na letra da canção “Sanha na Mandinga” (“Na beira do São Francisco / Eu quero me deitar, eu quero namorar”), composta e gravada por Edu Lobo no álbum Camaleão (1978). Esse álbum contém
mais cinco músicas com letras de Cacaso. Entre elas está “Lero-lero”, em cuja letra Cacaso faz uma profissão de fé de brasileiro e poeta: “Eu sou poeta e não nego a minha raça / Faço versos por pirraça / E também por precisão”. “Lero-lero” é talvez a letra mais conhecida de Cacaso.
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Em poemas de Na Corda Bamba (1978), Cacaso continua a exibir o mesmo espírito irreverente, como se pode ver em “Ecologia”, “O Lugar da Transgressão” e “Rotina”. Em “Obra Aberta”, destaca-se a piada com a ditadura militar e a militância política.
Com o passar do tempo, o poeta Cacaso vai se envolvendo cada vez mais com a música popular. Letras suas fizeram grande sucesso em parcerias como as citadas com Edu Lobo e também com Sueli Costa,
autora da melodia de “Face a face”. No cômputo geral, Cacaso escreveu letras para Jards Macalé, João Donato, Djavan, Joyce, Francis Hime e muitos outros compositores. Até fez letra em parceria com João Bosco e Aldir Blanc. Na verdade, ele se envolveu tanto com a música que também chegou a compor músicas e letras sozinho.
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Mar de Mineiro (1982) é a última coletânea de poesia publicada em vida pelo uberabense-carioca. Nesse livro, Cacaso se mostra crescentemente voltado para as letras de música. Leiamos, por exemplo, o poemeto “Manhã Profunda”: “Um passarinho cantou tão triste / tão sozinho / um outro respondeu espere já vou / aí já vou aí já vou aí”. O que se registra
neste poema é um verdadeiro esforço musical. O poeta quer traduzir, em palavras, o canto do pássaro.
Em “A Palavra do $enhor” o espírito trocadilhístico ataca, com toda a mordacidade, os vendilhões do templo que transformam as religiões em negócios de riqueza e poder.
Ciente das intenções desses falsários, o profeta Cacaso adverte: “No princípio / era / a Verba”.
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Entre os poemas inéditos recolhidos na Poesia Completa, selecionei “O Cantador de Canudos”. Com esse texto, quero mostrar, mais uma vez, a inclinação total de Cacaso para o lado das letras musicais. Aí ele brinca com as palavras e dá rédea solta à criatividade. Uma coisa puxa a outra, seguindo o ritmo: “o burro disse ao cavalo / cavalo disse ao jumento / jumento cantou pro galo / e o galo pro cata-vento / o cata-vento no ato / deu a notícia pro vento”.
Trata-se de um procedimento mais de letrista que de poeta.
Esse mesmo método criativo se encontra em letras como “Se Porém Fosse Portanto” (Francis Hime/Cacaso) e mesmo no sucesso “Face a Face” (Sueli Costa/Cacaso), que também transcrevo ao lado. Nesta última letra, Cacaso, falando de amor e paixão, esbanja paralelismos verbais (trapaças/desgraças, graças/traças) e constrói cascatas de rimas inesperadas.
Enfim, acredito que Cacaso é um poeta que, assim como Vinicius de Moraes, começou a navegar na poesia e
terminou na música popular. Ao dizer isso, faço questão de repetir: não considero o letrista maior ou menor que o poeta. Simplesmente acredito que estamos falando de duas artes diferentes, embora com muitos pontos em comum. Aliás, depois que a Academia Sueca concedeu o Prêmio Nobel de Literatura ao letrista Bob Dylan, nem seria necessário fazer essa observação.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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