Amigas e amigos,
A edição n. 299 deste boletim, publicada em dezembro de 2013, teve
como título “10 Poemas Que Viraram Canções”. Recorro à mesma ideia no presente número. Mas, curiosamente, a inspiração não me veio daquele boletim de
quase oito anos atrás. Surgiu-me num estalo musical.
Vi, recentemente, uma entrevista do ambientalista e escritor mineiro Ailton Krenak, na qual ele falava sobre a devastação de regiões das Minas Gerais.
Em dado momento, Krenak citou a Serra do Rola-Moça. Isso me lembrou o poema de Mário de Andrade baseado na lenda que conta a origem do nome dessa serra.
Peguei as Poesias Completas do modernista paulistano e reli “A Serra do Rola-Moça”.
Embora não saiba
harmonizar nem mesmo duas notas musicais, terminei a leitura com a seguinte exclamação: “Isso dá música!”. Corri então ao YouTube e fiz uma pesquisa.
Não deu outra: o cantor e compositor Martinho da Vila já havia feito essa descoberta muito antes. Ele musicou “A Serra do Rola-Moça”, e gravou
o resultado num disco de 1987. Estimulado por essa descoberta, decidi organizar nova coletânea de poemas que viraram canções populares.
Juntei, então, a criação de Mário de Andrade e Martinho da Vila com mais quatro poemas e apresento, ao lado, um total de quatro canções. Aqui, fique claro,
não há confusão: cinco poemas se transformaram em quatro canções. Nesse caldeirão poético-musical entram, além dos autores já citados, os poetas Oswald
de Andrade, com dois poemas, Vinicius de Moraes e Manuel Bandeira; e, no lado das melodias, os compositores Caetano Veloso, João Bosco, Chico Buarque,
Gérson Conrad (ex-Secos & Molhados) e Djavan.
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Mário de Andrade
A Serra do Rola-Moça
“A Serra do Rola-Moça” não figura com este título na obra de Mário de Andrade
(1893-1945). O poema, sem título, faz parte de uma longa suíte, “Noturno de Belo Horizonte”, datada de 1924 e publicada no livro Clã do Jabuti, de 1927.
Numa viagem a Minas em 1924, Mário teria ouvido a lenda popular que conta a origem do nome
da Serra do Rola-Moça, que fica próxima à capital mineira.
Martinho da Vila, ao ler o poema de Mário, deve ter experimentado a mesma sensação que eu tive em minha recente leitura. A grande diferença: ele sabe
se entender com as notas musicais e criou uma toada que canta muito bem os versos de Mário de Andrade e a trágica história da Serra do Rola-Moça.
Pelo jeito, não há lugar para dúvida: o poema de Mário de Andrade realmente pede música. Descobri, depois de ter iniciado este boletim, outro
compositor que casou esse poema com uma melodia. Trata-se do mineiro Sérgio Pererê. Sua versão envolve partes cantadas e trechos de leitura do poema.
Ouça-a numa videoanimação aqui: A Serra do Rola-Moça.
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Oswald de Andrade
Escapulário; Relicário
Colega de Mário de Andrade na Semana de Arte Moderna de 1922,
Oswald de Andrade (1890-1954) entra neste boletim com dois de
seus pequenos poemas, “Escapulário” e “Relicário”, ambos do livro Pau-Brasil (1925). Os dois textos foram reunidos no samba “Pagodespell”,
que torna Oswald parceiro, ao mesmo tempo, dos compositores Caetano Veloso, João Bosco e Chico Buarque.
A história dessa parceria é um tanto tortuosa. Sigo aqui o relato feito por João
Bosco. Em 1975, no álbum Joia, Caetano Veloso incluiu “Escapulário”, samba feito por ele em cima do poemeto de Oswald de Andrade. João Bosco
ouviu a música (curtíssima, de apenas uma estrofe) e
sentiu vontade de desenvolvê-la.
Em 1986, Chico e Caetano apresentavam na TV Globo um programa mensal e convidaram João Bosco para participar de uma das edições. João Bosco então contou
a Caetano sobre sua ideia de estender o “Escapulário”. Ideia aceita, Bosco fez uma segunda parte para a música e então Caetano e Chico escreveram um
pedaço da letra cada um. A estrofe que começa com “Quem rezou, rezou” é de Caetano. A outra (“Joaquim José me chamou prum canjerê”) foi escrita por
Chico Buarque. “Escapulário”, a música de Caetano, passou a servir como refrão desse conjunto.
Mas “Pagodespell” não para por aí. João Bosco lançou mão de outro poema oswaldiano, “Relicário”, e compôs com ele uma espécie de coda (seção final) da canção.
Trata-se de uma parte que usa um andamento diferente do samba inicial. Um detalhe: o título do conjunto faz uma fusão jocosa de “pagode” (samba, baile popular,
divertimento ruidoso) com “gospel” (God spell) — palavra em inglês que significa “evangelho”, “a palavra de Deus” e também indica um tipo de música
religiosa negra. “Se o Bispo deixar / Jesus não se ofender / O pessoal vai fazer um pagodespell / E aí vai ser sopa no mel”.
Breque: “No Pão de Açúcar”!
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Vinicius de Moraes
A Rosa de Hiroxima
O álbum Secos & Molhados, obra de estreia do conjunto homônimo em 1973, é até hoje um dos discos de música pop mais celebrados no Brasil. Além de
musicalmente bem cuidado, o elepê apresentou ao público a voz afinadíssima de Ney Matogrosso e trouxe uma característica inusitada: sete de suas 13 canções
baseavam-se em poemas de autores como Vinicius de Moraes, Manuel Bandeira, Cassiano Ricardo e Solano Trindade. Um luxo.
Entre essas canções estava “A Rosa de Hiroxima”, composição de Gérson Conrad (um dos integrantes da banda) a partir do poema de
Vinicius de Moraes (1913-1980). Hino pacifista, escrito após os
bombardeios atômicos de Hiroxima e Nagasaki, o texto tinha ainda mais impacto durante o período da guerra fria entre os Estados Unidos e a então
ativa União Soviética.
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Manuel Bandeira
Cantadores do Nordeste
Manuel Bandeira (1886-1968) certa vez foi convidado para ser juiz numa
competição de cantadores nordestinos. Impressionado com a destreza dos participantes, o poeta depois escreveu, em andamento de cordel, o poema “Cantadores
do Nordeste”, que foi publicado em seu livro Estrela da Tarde (1960).
O compositor alagoano Djavan leu o poema de Bandeira e trabalhou numa montagem bem diferente do que já foi visto até aqui. Musicou, em padrão de cantoria
nordestina, os primeiros onze versos de Bandeira. Daí em diante, escreveu, ele mesmo, o restante da letra e batizou a composição como “Violeiros”.
Transcrevi ao lado o poema de Bandeira e, em seguida, a letra de “Violeiros”. Nos dois textos, introduzi uma linha pontilhada de corte. Os versos iniciais
são iguais. A certa altura do poema, Bandeira começa a falar de outros juízes da peleja. Esse relato da experiência do poeta não interessava ao compositor
Djavan, que introduziu na história outros cantadores, outros personagens.
Na verdade, o músico até deu nome a um dos repentistas apresentados por Bandeira. O poeta escreve: “Um, a quem faltava um braço, / Tocava cuma só mão”.
Não diz, contudo, como se chamava esse violeiro. Djavan faz o próprio cantador declarar seu nome: “Quem me ouvir vai ter lembrança / De Tomás de Um Braço Só”.
Djavan gravou a composição “Violeiros”, em seu álbum Coisa de Acender, de 1992. Aqui, você pode degustá-la ao lado na rica interpretação de Mônica
Salmaso & Teco Cardoso, num vídeo publicado em julho deste ano. Mônica mostra sua bela voz e se acompanha ao violão; Teco trabalha com duas flautas.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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