Número 470 - Ano 19

Salvador, quarta-feira, 28 de julho de 2021

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«Nenhuma presença é mais real que a falta.» (Myriam Fraga) *

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4poetas
Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Vinicius de Moraes, Manuel Bandeira



Amigas e amigos,

A edição n. 299 deste boletim, publicada em dezembro de 2013, teve como título “10 Poemas Que Viraram Canções”. Recorro à mesma ideia no presente número. Mas, curiosamente, a inspiração não me veio daquele boletim de quase oito anos atrás. Surgiu-me num estalo musical.

Vi, recentemente, uma entrevista do ambientalista e escritor mineiro Ailton Krenak, na qual ele falava sobre a devastação de regiões das Minas Gerais. Em dado momento, Krenak citou a Serra do Rola-Moça. Isso me lembrou o poema de Mário de Andrade baseado na lenda que conta a origem do nome dessa serra. Peguei as Poesias Completas do modernista paulistano e reli “A Serra do Rola-Moça”.

Embora não saiba harmonizar nem mesmo duas notas musicais, terminei a leitura com a seguinte exclamação: “Isso dá música!”. Corri então ao YouTube e fiz uma pesquisa. Não deu outra: o cantor e compositor Martinho da Vila já havia feito essa descoberta muito antes. Ele musicou “A Serra do Rola-Moça”, e gravou o resultado num disco de 1987. Estimulado por essa descoberta, decidi organizar nova coletânea de poemas que viraram canções populares.

Juntei, então, a criação de Mário de Andrade e Martinho da Vila com mais quatro poemas e apresento, ao lado, um total de quatro canções. Aqui, fique claro, não há confusão: cinco poemas se transformaram em quatro canções. Nesse caldeirão poético-musical entram, além dos autores já citados, os poetas Oswald de Andrade, com dois poemas, Vinicius de Moraes e Manuel Bandeira; e, no lado das melodias, os compositores Caetano Veloso, João Bosco, Chico Buarque, Gérson Conrad (ex-Secos & Molhados) e Djavan.

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Mário de Andrade
A Serra do Rola-Moça

“A Serra do Rola-Moça” não figura com este título na obra de Mário de Andrade (1893-1945). O poema, sem título, faz parte de uma longa suíte, “Noturno de Belo Horizonte”, datada de 1924 e publicada no livro Clã do Jabuti, de 1927. Numa viagem a Minas em 1924, Mário teria ouvido a lenda popular que conta a origem do nome da Serra do Rola-Moça, que fica próxima à capital mineira.

Martinho da Vila, ao ler o poema de Mário, deve ter experimentado a mesma sensação que eu tive em minha recente leitura. A grande diferença: ele sabe se entender com as notas musicais e criou uma toada que canta muito bem os versos de Mário de Andrade e a trágica história da Serra do Rola-Moça.

Pelo jeito, não há lugar para dúvida: o poema de Mário de Andrade realmente pede música. Descobri, depois de ter iniciado este boletim, outro compositor que casou esse poema com uma melodia. Trata-se do mineiro Sérgio Pererê. Sua versão envolve partes cantadas e trechos de leitura do poema. Ouça-a numa videoanimação aqui: A Serra do Rola-Moça.

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Oswald de Andrade
Escapulário; Relicário

Colega de Mário de Andrade na Semana de Arte Moderna de 1922, Oswald de Andrade (1890-1954) entra neste boletim com dois de seus pequenos poemas, “Escapulário” e “Relicário”, ambos do livro Pau-Brasil (1925). Os dois textos foram reunidos no samba “Pagodespell”, que torna Oswald parceiro, ao mesmo tempo, dos compositores Caetano Veloso, João Bosco e Chico Buarque.

A história dessa parceria é um tanto tortuosa. Sigo aqui o relato feito por João Bosco. Em 1975, no álbum Joia, Caetano Veloso incluiu “Escapulário”, samba feito por ele em cima do poemeto de Oswald de Andrade. João Bosco ouviu a música (curtíssima, de apenas uma estrofe) e sentiu vontade de desenvolvê-la.

Em 1986, Chico e Caetano apresentavam na TV Globo um programa mensal e convidaram João Bosco para participar de uma das edições. João Bosco então contou a Caetano sobre sua ideia de estender o “Escapulário”. Ideia aceita, Bosco fez uma segunda parte para a música e então Caetano e Chico escreveram um pedaço da letra cada um. A estrofe que começa com “Quem rezou, rezou” é de Caetano. A outra (“Joaquim José me chamou prum canjerê”) foi escrita por Chico Buarque. “Escapulário”, a música de Caetano, passou a servir como refrão desse conjunto.

Mas “Pagodespell” não para por aí. João Bosco lançou mão de outro poema oswaldiano, “Relicário”, e compôs com ele uma espécie de coda (seção final) da canção. Trata-se de uma parte que usa um andamento diferente do samba inicial. Um detalhe: o título do conjunto faz uma fusão jocosa de “pagode” (samba, baile popular, divertimento ruidoso) com “gospel” (God spell) — palavra em inglês que significa “evangelho”, “a palavra de Deus” e também indica um tipo de música religiosa negra. “Se o Bispo deixar / Jesus não se ofender / O pessoal vai fazer um pagodespell / E aí vai ser sopa no mel”. Breque: “No Pão de Açúcar”!

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Vinicius de Moraes
A Rosa de Hiroxima

O álbum Secos & Molhados, obra de estreia do conjunto homônimo em 1973, é até hoje um dos discos de música pop mais celebrados no Brasil. Além de musicalmente bem cuidado, o elepê apresentou ao público a voz afinadíssima de Ney Matogrosso e trouxe uma característica inusitada: sete de suas 13 canções baseavam-se em poemas de autores como Vinicius de Moraes, Manuel Bandeira, Cassiano Ricardo e Solano Trindade. Um luxo.

Entre essas canções estava “A Rosa de Hiroxima”, composição de Gérson Conrad (um dos integrantes da banda) a partir do poema de Vinicius de Moraes (1913-1980). Hino pacifista, escrito após os bombardeios atômicos de Hiroxima e Nagasaki, o texto tinha ainda mais impacto durante o período da guerra fria entre os Estados Unidos e a então ativa União Soviética.

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Manuel Bandeira
Cantadores do Nordeste

Manuel Bandeira (1886-1968) certa vez foi convidado para ser juiz numa competição de cantadores nordestinos. Impressionado com a destreza dos participantes, o poeta depois escreveu, em andamento de cordel, o poema “Cantadores do Nordeste”, que foi publicado em seu livro Estrela da Tarde (1960).

O compositor alagoano Djavan leu o poema de Bandeira e trabalhou numa montagem bem diferente do que já foi visto até aqui. Musicou, em padrão de cantoria nordestina, os primeiros onze versos de Bandeira. Daí em diante, escreveu, ele mesmo, o restante da letra e batizou a composição como “Violeiros”.

Transcrevi ao lado o poema de Bandeira e, em seguida, a letra de “Violeiros”. Nos dois textos, introduzi uma linha pontilhada de corte. Os versos iniciais são iguais. A certa altura do poema, Bandeira começa a falar de outros juízes da peleja. Esse relato da experiência do poeta não interessava ao compositor Djavan, que introduziu na história outros cantadores, outros personagens.

Na verdade, o músico até deu nome a um dos repentistas apresentados por Bandeira. O poeta escreve: “Um, a quem faltava um braço, / Tocava cuma só mão”. Não diz, contudo, como se chamava esse violeiro. Djavan faz o próprio cantador declarar seu nome: “Quem me ouvir vai ter lembrança / De Tomás de Um Braço Só”.

Djavan gravou a composição “Violeiros”, em seu álbum Coisa de Acender, de 1992. Aqui, você pode degustá-la ao lado na rica interpretação de Mônica Salmaso & Teco Cardoso, num vídeo publicado em julho deste ano. Mônica mostra sua bela voz e se acompanha ao violão; Teco trabalha com duas flautas.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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5 poemas que viraram canções


• Mário de Andrade  • Oswald de Andrade
• Vinicius de Moraes  • Manuel Bandeira


              




A Serra do Rola-Moça, de Martinho da Vila, poema de Mário de Andrade


• Mário de Andrade
   + Martinho da Vila

A SERRA DO ROLA-MOÇA

A Serra do Rola-Moça
Não tinha esse nome não...

Eles eram do outro lado,
Vieram na vila casar.
E atravessaram a serra,
O noivo com a noiva dele
Cada qual no seu cavalo.

Antes que chegasse a noite
Se lembraram de voltar.
Disseram adeus pra todos
E puseram-se de novo
Pelos atalhos da serra
Cada qual no seu cavalo.

Os dois estavam felizes,
Na altura tudo era paz.
Pelos caminhos estreitos
Ele na frente, ela atrás.
E riam. Como eles riam!
Riam até sem razão.

A Serra do Rola-Moça
Não tinha esse nome não.

As tribos rubras da tarde
Rapidamente fugiam
E apressadas se escondiam
Lá embaixo nos socavões,
Temendo a noite que vinha.

Porém os dois continuavam
Cada qual no seu cavalo,
E riam. Como eles riam!
E os risos também casavam
Com as risadas dos cascalhos
Que pulando levianinhos
Da vereda se soltavam,
Buscando o despenhadeiro.

Ah, Fortuna inviolável!
O casco pisara em falso.
Dão noiva e cavalo um salto
Precipitados no abismo.
Nem o baque se escutou.
Faz um silêncio de morte.
Na altura tudo era paz...
Chicoteado o seu cavalo,
No vão do despenhadeiro
O noivo se despenhou.

E a Serra do Rola-Moça
Rola-Moça se chamou.



Pagodespell: Caetano, João Bosco e Chico, com Oswald de Andrade



• Oswald de Andrade
   + Caetano Veloso, João Bosco & Chico Buarque

PAGODESPELL

No Pão de Açúcar
De Cada Dia
Dai-nos Senhor
A Poesia
De Cada Dia

Quem rezou, rezou
Quem não rezou não reza mais
Há tantos mil Corcovados no cais
Cada um carrega um Cristo
E muitos Carnavais
Luxo, miséria, grandeza, conflito e paz
Diante da pedra são todos iguais

No Pão de Açúcar
De Cada Dia
Dai-nos Senhor
A Poesia
De Cada Dia

Joaquim José
me chamou prum canjerê
Sambalelê nas Escadas da Sé
Se o Bispo deixar
Jesus não se ofender
O pessoal vai fazer um pagodespell
E aí vai ser sopa no mel

No Pão de Açúcar
De Cada Dia
Dai-nos Senhor
A Poesia
De Cada Dia

No baile da Corte
Foi o Conde d’Eu quem disse
Para Dona Benvinda:
Que farinha de Suruí
Pinga de Parati
Fumo de Baependi
É comê bebê pitá e caí

Dá licença, dá licença, meu senhor.




A Rosa de Hiroxima, Secos & Molhados, poema de Vinicius de Moraes


• Vinicius de Moraes
   + Gérson Conrad

A ROSA DE HIROXIMA

Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroxima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A antirrosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada



Violeiros (Djavan/Bandeira), com Mônica Salmaso e Teco Cardoso



• Manuel Bandeira
   + Djavan

CANTADORES DO NORDESTE

Anteontem, minha gente,
Fui juiz numa função
De violeiros do Nordeste.
Cantando em competição,
Vi cantar Dimas Batista
e Otacílio, seu irmão.
Ouvi um tal de Ferreira,
Ouvi um tal de João.
Um, a quem faltava um braço,
Tocava cuma só mão;
Mas, como ele mesmo disse,
----------------------
Cantando com perfeição,
Para cantar afinado,
Para cantar com paixão,
A força não está no braço:
Ela está no coração.
Ou puxando uma sextilha
Ou uma oitava em quadrão,
Quer a rima fosse em inha,
Quer a rima fosse em ão,
Caíam rimas do céu,
Saltavam rimas do chão!
Tudo muito bem medido
No galope do sertão.
A Eneida estava boba;
O Cavalcanti, bobão,
O Lúcio, o Renato Almeida;
Enfim, toda a Comissão.
Saí dali convencido
Que não sou poeta não;
Que poeta é quem inventa
Em boa improvisação,
Como faz Dimas Batista
E Otacílio, seu irmão;
Como faz qualquer violeiro
Bom cantador do sertão,
A todos os quais, humilde,
Mando a minha saudação!

VIOLEIROS (Djavan)

Anteontem, minha gente,
Fui juiz numa função
De violeiros do Nordeste.
Cantando em competição,
Vi cantar Dimas Batista
e Otacílio, seu irmão.
Ouvi um tal de Ferreira,
Ouvi um tal de João.
Um, a quem faltava um braço,
Tocava cuma só mão;
Mas, como ele mesmo disse,
----------------------
Com veia de emoção
Eu canto a desesperança
Vou na alma e dou um nó
Quem me ouvir vai ter lembrança
De Tomás de um Braço Só

Outro por nome de Euclides
Pedia com voz mais rouca
Maior atenção de Eurides
Mas dizem que ela era mouca
Já o Joca de Carminha
Não via a hora chegar
Por onde anda Nezinha
Que não vem me ver cantar?

Aquilo é mulher de lua
Dia tá bem, outro não
Gosta de mim, mas não vê
Futuro na profissão
Mesmo assim jurou que vinha
E me fez ficar contando
Sem saber cadê Nezinha
Joca foi desanimando

Friagem no lajedo
No ar do olhar um tormento
Cantar os males mode apagar
Um amor ardendo

Dentre todos repentistas
Zé Jacinto é o mais menino
Esse nem tava na lista
Mas é neto de Jovino
João Braúna e Pernambuco
Arribaram sem cantar
Um porque tava de luto,
O outro não quis explicar

Cá no desvão do Nordeste
A vida não vale o nome
É gente que nasce e cresce
Pra dividir sede e fome

Mal começou Zé de Tonha
Todos caíram vencidos
Cantando suas vergonhas
Foi ele o mais aplaudido

Friagem no lajedo
No ar do olhar um tormento
Cantar os males mode apagar
Um amor ardendo




poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2021



• Mário de Andrade
      •  Poema “A Serra do Rola-Moça”
      in Poesias Completas
      Círculo do Livro, São Paulo, s/ data
      •  Canção “A Serra do Rola-Moça” (Martinho da Vila/Mário de Andrade)
      Martinho da Vila, álbum Coração de Malandro (1987)
• Oswald de Andrade
      •  Poemas “Escapulário” e “Relicário”
      in Cadernos de Poesia do Aluno Oswald (Poesias Reunidas)
      Círculo do Livro, São Paulo, s/ data
      •  Canção “Pagodespell”
      (Caetano Veloso/João Bosco/Chico Buarque/Oswald de Andrade)
      Programa de TV Chico & Caetano (1986)
      João Bosco incluiu “Pagodespell” em seu disco Dá Licença, Meu Senhor (1995)
• Vinicius de Moraes
      •  Poema “A Rosa de Hiroxima”
      in Poesia Completa & Prosa
      Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1986
      •  Canção “A Rosa de Hiroxima” (Gerson Conrad/Vinicius de Moraes)
      Álbum Secos & Molhados (1973)
• Manuel Bandeira
      •  Poema “Cantadores do Nordeste”
      in Estrela da Vida Inteira
      José Olympio, Rio de Janeiro, 1976
      •  Canção “Violeiros” (Djavan), com início do poema de Bandeira
      Álbum Coisa de Acender (1992)
      Vídeo: Mônica Salmaso & Teco Cardoso
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* Myriam Fraga, "Calendário: Março", in Femina (1996)