Número 471 - Ano 19

Salvador, quarta-feira, 18 de agosto de 2021

poesia.net header

«A Dor humana busca os amplos horizontes,/ E tem marés, de fel, como um sinistro mar!» (Cesário Verde) *

Compartilhe pelo WhatsApp

facebook 
Luís Aranha
Luís Aranha, em 1928


Amigas e amigos,

Nesta edição, o poesia.​net destaca o paulistano Luís Aranha (1901-1987), poeta que participou da Semana de Arte Moderna de 1922 e logo em seguida abandonou a poesia, sem publicar nenhum livro.

Apresentado a Mário de Andrade em 1920, Aranha passou a frequentar reuniões na casa do escritor, das quais também participavam a fina flor do modernismo, gente como Oswald de Andrade, Di Cavalcanti, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral e Ronald de Carvalho.

O próprio Aranha leu alguns de seus poemas na segunda noite da Semana de 1922. Quatro de seus poemas foram publicados na revista modernista Klaxon e, posteriormente, mais um, na Revista do Brasil. Depois disso, o poeta desapareceu.

Aranha formou-se em direito em 1926, mudou-se para o Rio de Janeiro e abraçou a carreira diplomática. Sua obra poética (26 poemas) foi publicada somente em 1984, no volume Cocktails, organizado pelo poeta Nelson Ascher e pelo crítico literário Rui Moreira Leite. O título e os poemas desse livro fundamentam-se nos originais entregues pelo autor a Mário de Andrade, ainda nos anos 1920.

•o•

No período mais agitado do modernismo paulista, Luís Aranha conquistou certa notoriedade, graças à publicação de três poemas longos: “Drogaria de éter e de sombra”, “Poema Pitágoras” e “Poema giratório”. Pelas soluções poéticas adotadas e até mesmo por declarações inseridas nos poemas, percebe-se que o autor lia bastante os modernistas estrangeiros, especialmente os franceses.

A seleção de textos ao lado começa com quatro fragmentos de “Drogaria de éter e de sombra”, um poema que ocupa 17 páginas no livro. A origem desse texto é conhecida. Em 1919, o poeta trabalhara por algum tempo como balconista na Drogaria Bráulio, no centro de São Paulo.

•o•

O fragmento “Drogaria Sociedade Anônima” abre o poema. Conforme o próprio texto indica, lê-se ali uma tabuleta no estilo daquelas que as lojas comerciais exibiam à sua entrada. A placa lista os produtos oferecidos pela farmácia. Indica também que o estabelecimento opera no atacado e no varejo e que — detalhe importante — as contas de vendas a crédito devem ser liquidadas no fim de cada mês.

Além de produtos farmacêuticos, também se oferecem publicações, como o Livro de Ouro do Veterinário, o Manual do Farmacêutico e o Formulário de Chernoviz. Este último, Pedro Luiz Napoleão Chernoviz (1812-1881), foi um médico polonês que veio para o Rio de Janeiro em meados do século XIX. Seu Formulário, publicado entre 1841 e 1920, era um guia médico, com a descrição dos medicamentos, suas propriedades e doses aplicáveis para cada doença.

Uma pequena gota de veneno modernista aparece no último livro oferecido na drogaria: Tratado de Versificação. Praticante convicto do verso livre, o autor cutuca, com humor, os poetas preocupados com a metrificação. Nos versos seguintes, revela-se o projeto: o sujeito lírico se apresenta como um poeta que, seduzido pela instigante placa comercial, decidiu tabalhar como balconista de uma drogaria.

•o•

É interessante notar que os poemas longos de Luís Aranha compõem suítes complexas, nas quais o autor aborda diferentes temas. O “Poema elétrico”, por exemplo, vem com esse título dentro da “Drogaria de éter e de sombra”. Nele o poeta se põe a falar de sensações amorosas usando conceitos da eletricidade: “Meu corpo é o polo positivo que pede / Teu corpo é o polo negativo que recusa...”.

“Drogaria”, o terceiro texto ao lado, é também um fragmento, com esse título, do poema inspirado na farmácia. Se no anterior a fonte de informações era a eletricidade, aqui o ambiente é a indústria: “Grande fábrica de produtos químicos sobre o rio Tietê / Grandes conduções de água com reservatórios e tanques especiais”.

No trecho “[Amo-te]” (neste caso o título foi introduzido por mim, apenas como referência), o autor volta a combinar o sentimento amoroso, cerejeiras e “o aroma verde dos matos” com produtos farmacológicos: “Nitrato/ Sulfato/ Clorato” etc. “E o poder colossal de um sindicato / de drogas!...”.

•o•

No poema “Minha Amada”, o sujeito lírico empreende novas misturas. Vai da música (jazz band, valsa) às experiências pictóricas (“Teu rosto era a palheta de um pintor”) e envereda por imagens surrealistas. Vista pela última vez, a amada era uma espécie de Eva “numa folha de parra”, enquanto ele come um pedaço de polo (terrestre). Mais adiante, a amada se converte numa hélice e num ventilador. O fascínio pelas tecnologias então novas é evidente. Mas, que pena, após tantas peripécias titânicas, o amor acaba e a única saída encontrada pelo ex-amante é incluir o poema num livro chamado Cocktails.

Nos dois textos finais desta seleção, “O Trem” e “O Túnel”, fica explícito, mais uma vez, o deslumbramento do poeta modernista em relação às novidades que significam mudança, progresso, velocidade. Futurismo. E no túnel “o trem penetra / como um punhal de luz no coração da treva”.

Naturalmente, lidos cem anos depois, os poemas de Luís Aranha revelam, aqui e ali, algumas fragilidades. Mas sem dúvida o jovem poeta incorporava muito bem o espírito modernista dos anos 1920. Não por acaso, seus textos receberam o reconhecimento de nomes como Manuel Bandeira, Cassiano Ricardo, Mário da Silva Brito, José Lino Grünewald e Antonio Risério.


Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado


•o•

Curta o poesia.​net no Facebook:

facebook


•o•



Compartilhe o poesia.​net

facebook

Compartilhe o boletim nas redes Facebook, Twitter e WhatsApp. Basta clicar nos botões logo acima da foto do poeta.


Drogaria de éter e de sombra


• Luís Aranha


              



Laura Knight - Lubov Tchernicheva-1921
Laura Knight, pintora inglesa, Lubov Tchernicheva (1921)


DROGARIA
SOCIEDADE ANÔNIMA

Produtos Químicos e Farmacêuticos
Especialidades em artigos para toilette
Perfumarias Finas
Aparelhos e objetos de cirurgia
Importação direta
Atacado e Varejo
Preços módicos
Informações gratuitas
As contas são liquidáveis invariavelmente
no fim de cada mês
Vende-se
Livro de Ouro do Veterinário
Manual do Farmacêutico
Formulário de Chernoviz
Tratado de Versificação

Eu era poeta...
Mas o prestígio burguês dessa tabuleta
Explodiu na minha alma como uma granada.
Resolvi um dia,
Incômodo mensal das musas,
Ir trabalhar numa drogaria
E executei meu projeto.

     (trecho inicial do poema “Drogaria de éter e de sombra”)



Laura Knight - The rehearsal-1923
Laura Knight, O ensaio - Quadro flamenco (1923)


POEMA ELÉTRICO

Querida
Quando estamos juntos
Vem do teu corpo para o meu um jato de desejo
Que o corre como eletricidade...

Meu corpo é o polo positivo que pede
Teu corpo é o polo negativo que recusa...

Se um dia eles se unissem
A corrente se estabeleceria
E nas fagulhas desprendidas
Eu queimaria todo o prazer do homem que espera...

     (trecho do poema “Drogaria de éter e de sombra”)



Laura Knight - A dressing room at Drury Lane-1951
Laura Knight, Vestiário no teatro Drury Lane (1951)


DROGARIA

Injeções hipodérmicas contra a estética atrasada
Vacina contra a nova...
Laboratório químico
Cadinhos retortas balões vidros copos termômetros tubos
Vasos e alambiques
Grande fábrica de produtos químicos sobre o rio Tietê
Grandes conduções de água com reservatórios e tanques especiais
Pontes que se fecham e se abrem
Elevadores e chaminés
Volantes roldanas caldeiras carretilhas
Vagonetes turbinas canos máquinas e aparelhos elétricos
Chave especial de uma estrada de ferro
Trens internos para uso exclusivo da indústria
Os fios telefônicos e elétricos são uma rede sobre a fábrica...

O mundo é estreito para minha instalação industrial!...

     (trecho do poema “Drogaria de éter e de sombra”)



Laura Knight - Ethell Bartlett-1926
Laura Knight, Ethel Bartlett (1926)


[AMO-TE]

Amo-te como amo a primavera
As cerejeiras de rosa e de neve
O espelho corrente do regato
A flor do cacto
O aroma verde dos matos
Carbonato
Fosfato
Citrato
Azotato
Acetato
Nitrato
Sulfato
Clorato
Tartrato
Silicato
E o poder colossal de um sindicato
de drogas!...

     (trecho do poema “Drogaria de éter e de sombra”)



Laura Knight - the.three.clowns-1930
Laura Knight, Os três palhaços (1930)


MINHA AMADA

Há muito tempo que não penso em ti
A última vez que vi dançavas tango
O Jazz-Band se contorce
Passos de valsa Boston
Olhos castanhos
Gotas de mel cheias de luz
Tuas pupilas iam e vinham

Como gotas de ar em nível de álcool
Muitas cores
Teu rosto era a palheta de um pintor
Teu cabelo um amontoado de pincéis
Prismatizante
Todas as luzes convergem sobre ti
Havia um cristal de interferência
Um disco gira
Teu rosto é um disco de gramofone que se repete cem
     vezes mil vezes e que acaba por aborrecer
Cores primitivas
Compostas
Todas as cores se misturam
Tudo é branco
Teu rosto é um disco de Newton
E tu te confundes no tom geral

A última vez que te vi
Numa folha de parra
Eu comia um pedaço de polo
Teu coração
Ele se degelava em minha mão
Eu era uma bússola
Teu rosto um quadrante
Uma roda
Uma hélice
Um ventilador
Fui um discóbolo
Meu disco!
Agora tu és a lua
De tempo em tempo desapareces
Sumiste
Não estás aqui
Nem em parte alguma
E como não te amo mais
Vou incluir este poema no meu livro COCKTAILS



Laura Knight - Miss Patricia Thompson-1932
Laura Knight, Patricia Thompson (1932)


O TREM

Na tarde cor de ouro e brasa,
Em desfilada
Passa um comboio na cavalgada
Entre renques de casas.

Nada o detém,
Na fúria imensa pelo espaço além.

Nos silvos de vapor,
Em sibilos de raiva e mugidos de dor,
Golfando fumo para o céu sonoro
O trem
Flamínio meteoro
Lançando gotas de sangue ardente
Vara o espaço — além.

A toda brida,
Por onde passa o chão trepida.

Sacudindo a terra,
É um batalhão em marcha para a guerra,
A guerra insana da riqueza
E batalhas de audácia e de esperteza.

Fumo que sobes em bulcões
Dos pulmões
Ardentes e ferozes da locomotiva,
O teu furor sacode-me o torpor
E a correnteza do meu sangue ativa.
Trem, tu que corres nos trilhos,
Imensos braços de aço
Sobre o leito com brilhos
De calhaus e vidrilhos,
Tu és mais livre que meu pensamento
Entorpecido e lento.

Oh trem!
Nada no espaço te detém!
Se vejo a tua corrida brava
Meu pensamento
Tem um surto violento
Para seguir teu ímpeto de guerra
Até os confins da terra.



Laura Knight - romany.belles- 1938.jpg
Laura Knight, Beldades ciganas (1938)


O TÚNEL

    To think the thought of death
    merged in thought of materials.

      Walt Whitman - Leaves of Grass

O luar cai de leve pelo chão,
Pela estrada e nos flancos da montanha
Como algodão...

Sobre os dormentes do seu leito
A linha férrea vai ao infinito...
O trem que ulula e gesticula
Passa iluminado,
Agitando no ar a sua bandeira de fumaça...

Rola na sua fuga pelo espaço
Bufando
Berrando
Silvando
Roncando
Rápido
Rangente
Como a bramir a sua loucura...

Assemelha um cometa
Com o núcleo da máquina incendida
E a cauda luminosa dos wagons...

Além se avista a sombra
Do túnel encravado na montanha
Garganta que assombra como a morte:
Treva entre duas vidas luminosas...

Túnel!...
Em ti o trem se precipita e corre
Inflamado de lâmpadas vermelhas
Como um jato de sangue que escorre,
E tu semelhas
Na negridão das trevas latejantes
A uma veia
Túrgida e cheia...

Eu, que admiro tudo
Que vejo pela terra e pelos céus
Amo tua face tétrica e parada
Em que o trem penetra
Como um punhal de luz no coração da treva...

Amo também o que tu simbolizas.
A sombra hiante da morte.
Túnel de minha vida...




poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2021



Luís Aranha
•   in Cocktails
     Organização, apresentação, pesquisa e notas: Nelson Ascher
     Pesquisa: Rui Moreira Leite
     Brasiliense, São Paulo, 1984
_____________
* Cesário Verde, “O Sentimento dum Ocidental”
______________
* Imagens: obras de Laura Knight (1877-1970), pintora inglesa