Número 475 - Ano 19

Salvador, quarta-feira, 13 de outubro de 2021

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«Ilumino-me / de imenso.» (Giuseppe Ungaretti) *

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Mariana Ianelli
Mariana Ianelli


Amigas e amigos,

Nesta edição, o poesia.​net revisita o trabalho da poeta paulistana Mariana Ianelli, desta vez com uma seleção de textos de Manuscrito do Fogo (2019), antologia que contém poemas de oito livros da autora. Curiosamente, selecionei para este boletim cinco poemas que fazem parte do volume Tempo de Voltar (2016), o último publicado antes da antologia.

Poeta de produção regular, Mariana Ianelli escreve uma poesia que se destaca pelo tom reflexivo. Nos poemas de Tempo de Voltar, a autora empreende uma viagem de retorno (real ou virtual, não importa) a lugares, pessoas e situações de profunda referência simbólica, seja para o indivíduo, seja para a humanidade.

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No primeiro poema da microsseleta ao lado, “Dos Anos de 1940”, surge a figura de Eva Heyman (1931-1944), menina judia húngara que, assim como sua contemporânea alemã Anne Frank, também escreveu um diário sobre a perseguição nazista aos judeus. Eva e seus avós foram mortos em Auschwitz em 1944. No poema de Mariana Ianelli, a garota escreve: “Querido diário, tenho tanto medo”.

O texto seguinte, “Interior”, traz uma atmosfera mais amena. O ambiente é bem fluido, subjetivo. Visita-se uma casa marcada pela antiga presença de pessoas e histórias. Alguns objetos são nomeados — mesa e espelhos —, mas não há referência direta a personagens, exceto a declaração inicial: “Alguém esteve aqui / já não está”. No final, sabe-se também que “um coração / parou de bater”. Tem-se, portanto, uma série de pistas e sugestões num quadro traçado com pincéis impregnados de melancolia.

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A viagem “de volta” dirige-se agora para a “Costa Normanda”, título do próximo poema. O olhar se volta para a paisagem marítima com postura idêntica à de quem visita a casa no poema anterior. As falésias parecem meras ruínas, lugares sem importância. Mas ali há sinais discretos da violência do mar esculpindo a pedra com o cinzel chamado tempo. Em certo sentido, o tempo é a chave de todas essas peregrinações de retorno.

O próximo poema é “Julho”, um texto marcado pela sazonalidade aparentemente europeia. Há um esparramar de “coisas ocorridas” num verão do hemisfério norte, coisas que envolvem cores, luzes e perfumes. O ambiente é meio indefinido: é algo para se observar e absorver, com todos os sentidos.

Chega, por fim, o poema “Lugares”. Mais uma vez, o retorno a sítios que já não existem. Lembrar. Voltar a tempos/lugares difusos, indefinidos — “camas de casa, mercados de Damasco / cidade dourada, templo de Palmira” —, nos quais se deve deixar corpo e alma envolvidos no exercício da memória. Memória que é também imaginação e ebulição dos sentidos.

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Mariana Ianelli (São Paulo, 1979) é jornalista, poeta, contista e ensaísta. Estreou na poesia em 1999, com o livro Trajetória de Antes. Publicou em seguida mais oito coletâneas, entre as quais Duas Chagas (2001); Almádena (2007); Tempo de Voltar (2016); e Canções Meninas (2019). Sua antologia Manuscrito do Fogo (2019) contém poemas de oito títulos anteriores.

A poeta Mariana Ianelli já esteve aqui neste boletim nas edições n. 449 (2020), n. 289 (2013) e n. 282 (2007).


Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado


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Com todos os sentidos


• Mariana Ianelli


              



Sarah Sedwick - Green tea with lemons
Sarah Sedwick, pintora estadunidense, Chá verde com limões


DOS ANOS DE 1940

Como se há muito passada a guerra
num retrato de Eva Heyman
sorri uma menina de tranças.
Nada segreda um sonho impróprio
para uma criança da sua idade.
Mal desata a correr no nada,
um guarda a fisga pelo tornozelo.
Na nuca a boca fria da pistola, Eva acorda:
— “Querido diário, tenho tanto medo”.




Sarah Sedwick - Four tulips
Sarah Sedwick, Quatro tulipas


INTERIOR

Alguém esteve aqui
já não está
mas este calor na pele
das coisas, ainda
um momento aflora
e não transcorre
(uma auréola amarela
sobre a página Mundo
sobre a mesa)
ainda uma casa se pensando
em seus espelhos —
o tremor de uma nota
e outra nota
depois que um coração
para de bater.




Sarah Sedwick - Anchor
Sarah Sedwick, Âncora


COSTA NORMANDA

    Para Marize Castro

Parecem ruínas,
têm feição de ruína
mas repara:
elas transmudam-se
seduzem
estão vivas
monumentais
vencíveis
(são falésias)
flor do assédio de um mar
que abre flancos
com violência lenta
indo e vindo
esculpindo
com somente tempo
e espuma
a pedra fêmea
de alabastro
a costela clara do mar
onde os barcos
encontram sombra.




Sarah Sedwick -green shadows
Sarah Sedwick, Sombras verdes


JULHO

Aqui os trabalhos não têm fim,
há sempre novas formas de juntar
cacos de coisas ocorridas no caminho,
há um deserto de senhas, sinais, indícios
mas hoje, hoje a lua é um acontecimento,
há um perfume de casa nos teus cabelos,
há uma flor de maio que rebenta em julho
e um cacho de uvas vermelhas lavadas
brilhando num prato que é pura concupiscência.




Sarah Sedwick - Hoya
Sarah Sedwick, Hoya


LUGARES

Onde fizemos memória
são lugares que já não existem,
camas de casa, mercados de Damasco
cidade dourada, templo de Palmira —
tudo transmigrado, repatriado em fábula
e entre as palavras muitos cigarros votivos,
muitas noites de intervalo musical
sem morada, sem registro, muitos dias.





poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2021



Mariana Ianelli
•   in Manuscrito do Fogo – Antologia Poética
     Edições Ardotempo, Porto Alegre, 2019
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* Giuseppe Ungaretti, “Manhã” (1917)
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* Imagens: obras de Sarah Sedwick (1979-), pintora norte-americana