Número 476 - Ano 19

Salvador, quarta-feira, 27 de outubro de 2021

poesia.net header

«O relógio de parede numa velha fotografia — está parado?» (Mario Quintana) *

Compartilhe pelo WhatsApp

facebook 
Carlos Drummond de Andrade
Carlos Drummond de Andrade



Amigas e amigos,

No próximo domingo, 31/10/2021, celebra-se o já consagrado Dia D — a data de nascimento do poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). Publicado por um site que suspeitamente se chama Alguma Poesia, este boletim também reverencia a data. Esta, portanto, é uma edição centrada no poeta Drummond. Só que de um jeito diferente, conforme se verá. Aqui se faz uma discreta associação entre o escritor itabirano e dois dos maiores ícones da música pop internacional do século XX: as bandas britânicas The Beatles e The Rolling Stones.

•o•

Em março de 1969, a extinta revista Realidade publicou excertos de uma biografia dos Beatles, então no auge da fama, produzida pelo escritor Hunter Davies. Para ilustrar o trabalho dos biografados, a revista pediu a Drummond que traduzisse algumas letras das canções de seu disco na época mais recente, The Beatles — o Álbum Branco, duplo, de 1968.

Em 2002, em duas edições da série de boletins chamada Drummond: 100 anos, publiquei e comentei aquelas versões drummondianas para versos de John Lennon, Paul McCartney e George Harrison. Entre elas estão as letras de canções clássicas como “Blackbird”, “Ob-la-di, ob-la-da” e “Happiness Is a Warm Gun”. Se você tiver curiosidade, veja-as aqui:

Drummond traduz Beatles (I)

Drummond traduz Beatles (II)

•o•

“Meu nome é tumulto”. De quem é este verso? Os mais antenados vão dizer: Drummond. E se eu disser que é dos Rolling Stones?

•o•

A história das traduções de letras dos Beatles levou-me a outra lembrança, também ligada a Drummond, mas desta vez associada a outra banda-símbolo dos anos 1960, The Rolling Stones. Leitor do poeta e ouvinte do grupo de roqueiros, notei uma interessante coincidência de ideias: um verso de Carlos Drummond de Andrade aparece numa letra dos Stones.

Meu nome é tumulto, e escreve-se na pedra”, diz Drummond no poema “Nosso Tempo”, publicado no livro A Rosa do Povo (1945). “Hey, my name is called Disturbance”, escrevem Mick Jagger e Keith Richards, dos Rolling Stones, na canção “Street Fighting Man” (Lutador de Rua), de 1968. O eixo do verso drummondiano (“Meu nome é tumulto”) seria uma tradução perfeita para esse trecho dos Stones. Além disso, o complemento (“e escreve-se na pedra”) ainda faz referência ao mineral que dá nome à banda inglesa, as pedras rolantes.

Portanto, Drummond e os Rolling Stones escreveram versos bastante similares. Vinte e três anos separam os lançamentos das obras que contêm esses versos. O poema de Drummond, como vimos, é de 1945. A música de Jagger & Richards saiu pela primeira vez em agosto de 1968, num compacto simples, e depois como a primeira faixa do lado B do álbum Beggars Banquet (Banquete dos Mendigos), que chegou às lojas inglesas e americanas em dezembro do mesmo ano.

•o•

O verso drummondiano integra o poema “Nosso Tempo”, texto longo dividido em oito partes, no qual o poeta traça um retrato do mundo conflagrado na Segunda Guerra Mundial, enquanto os brasileiros também enfrentavam a ditadura do Estado Novo. As duas primeiras linhas do texto são sintomáticas: “Este é tempo de partido, / tempo de homens partidos”.

Conforme a professora Marlene de Castro Correia, da UFRJ, estudiosa da obra de Drummond, esses dois versos definem a ideia central do poema. O texto, analisa ela, constata a fragmentação dos seres humanos naquele momento histórico-cultural, mas não admite a abstenção: “exige que se faça uma opção ideológica, que se assuma uma posição política, que se tome partido, enfim”, escreve a professora.

Para ela, na estrofe que começa com a frase “Em vão percorremos volumes”, transcrita ao lado, o poeta identifica-se ideologicamente. Sua posição torna-se ainda mais clara na última parte do poema, a VIII, na qual a persona do poeta promete solenemente “ajudar a destruir” o mundo capitalista “como um verme”. Com efeito, versos desse naipe só poderiam surgir num momento histórico como aquele, tão exigente.

•o•

Passemos, agora, para a letra de “Street Fighting Man”, dos Stones, também transcrita ao lado. As pedras rolantes usam uma linguagem agressiva, de quem parece disposto a dissolver o sistema. É óbvio que toda essa bravata "revolucionária" e meio anarquista só poderia ser veiculada numa democracia como a Inglaterra. Seria impensável alguém no Brasil cantar algo assim, em 1969, nos tenebrosos tempos do AI-5, do general Garrastazu Médici e do torturador Brilhante Ustra.

Um detalhe interessante: a expressão palace revolution (que traduzi aí ao lado como “golpe palaciano”) significa um golpe de estado tramado por pessoas que já ocupam posições nas esferas do poder. Isso mostra que a letra não apresenta nenhuma proposta “revolucionária” — é pura empolgação dos Stones, refletindo o clima geral de rebeldia do ano que (aqui) não terminou. Pode-se também supor que Jagger & Richards, com essa expressão, queriam sugerir a ideia de tomar o palácio de assalto — ou seja, atacar o centro do poder.

Mas eles sabiam que isso não era possível. Ademais, não sejamos ingênuos: no mundo capitalista o verdadeiro centro do poder não está exatamente no palácio real. Está nas mãos da alta burguesia financeira, dos donos de grandes negócios internacionais — gente de quem muitas vezes não se sabe o nome nem o rosto.

•o•

Enfim, essa proposta “revolucionária” é meio bravata. Tanto que, na verdade, a letra lamenta que o jogo praticado na Grã-Bretanha é “solução de compromisso”. Diante disso, a letra se desvia para outro lado: então a única coisa que um rapaz pobre pode fazer é “cantar numa banda de rock’n’roll”. Mas a época concentrava muitos acontecimentos conflituosos, incluindo a guerra do Vietnã. Portanto, a palavra “revolução” estava no ar.

Também os Beatles, em seu Álbum Branco (1968), gravaram uma canção chamada “Revolution”. E, pouco depois, em 1971, John Lennon lançaria a canção “Power to the People”, cujo refrão clama: Power to the people right on! (“Poder para o povo, já!”).

•o•

Os ânimos de 68 estavam mesmo exaltados. Se “Street Fighting Man” abria o lado B do elepê dos Stones, a primeira faixa do lado A também não era pouco escandalosa: “Sympathy for the Devil” (Simpatia pelo Diabo), canção na qual o Demo fala em primeira pessoa. Apresenta-se como Lúcifer, homem rico e de bom gosto, gaba-se de ter feito e acontecido durante toda a História, e ainda exige ser tratado com simpatia. Mas Mr. Lúcifer também sugere, em certo trecho da letra, que todas as atrocidades que ele cometeu foram na verdade obras do ser humano: "eu e você". Os Rolling Stones talvez não soubessem exatamente o que estavam fazendo, mas com certeza se integraram muito bem ao espírito contestador da época.

Quanto aos dois versos que geraram toda essa discussão (“Meu nome é tumulto” e “My name is called Disturbance”), eles de fato são muito parecidos. Aliás, em inglês, um dos sinônimos de disturbance é tumult, palavra que vem da mesma raiz latina (tumultus) de nosso “tumulto”.

Viva o Dia Drummond.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


•o•


Curta o poesia.​net no Facebook:

facebook


•o•


Compartilhe o poesia.​net no Facebook, no Twitter e no WhatsApp

facebook

Compartilhe o boletimnas redes Facebook, Twitter e WhatsApp. Basta clicar nos botões logo acima da foto do poeta.



Meu nome é tumulto


• Carlos Drummond de Andrade


              



Renata Brzozowska - Flamenco84-2008
Renata Brzozowska, polonesa, Flamenco 84 (2008)


• Carlos Drummond de Andrade

NOSSO TEMPO

      (dois trechos)


I

Esse é tempo de partido,
tempo de homens partidos.

Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se
na pedra.

Visito os fatos, não te encontro.
Onde te ocultas, precária síntese,
penhor de meu sono, luz
dormindo acesa na varanda?
Miúdas certezas de empréstimos, nenhum beijo
sobe ao ombro para contar-me
a cidade dos homens completos.

Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!
Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir.




VIII

O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
promete ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta
um verme.



• The Rolling Stones

Rolling Stones
The Rolling Stones: Street Fighting Man, ao vivo em 1969


STREET FIGHTING MAN
LUTADOR DE RUA

Everywhere I hear the sound of marching, charging feet, boy,
’Cause summer's here and the time is right for fighting in the street, boy


Well, what can a poor boy do,
’Cept to sing for a rock & roll band?
’Cause in sleepy London Town
there's just no place for a street fighting man, no


Em toda parte escuto o som de pés marchando, rapaz
Pois o verão chegou e é a hora certa de lutar nas ruas, rapaz

Então o que pode fazer um rapaz pobre,
senão cantar numa banda de rock?
Porque nessa Londres sonolenta
não há lugar para um lutador de rua, não



Hey! Think the time is right for a palace revolution,
Cause where I live the game to play is compromise solution


Well, what can a poor boy do,
’Cept to sing for a rock & roll band?
’Cause in sleepy London Town
there's just no place for a street fighting man, no


Ei, acho que é a hora certa para um golpe palaciano,
pois onde moro o jogo que se joga é solução de compromisso

Então o que pode fazer um rapaz pobre,
senão cantar numa banda de rock?
Porque nessa Londres sonolenta
não há lugar para um lutador de rua, não



Hey, my name is called Disturbance;
I’ll shout and scream, I’ll kill the King, I’ll rail at all his servants


Well, what can a poor boy do,
’Cept to sing for a rock & roll band?
’Cause in sleepy London Town
there's just no place for a street fighting man, no


Ei, meu nome é Tumulto;
Vou gritar e berrar, vou matar o Rei e ralhar com todos os seus servos

Então o que pode fazer um rapaz pobre,
senão cantar numa banda de rock?
Porque nessa Londres sonolenta
não há lugar para um lutador de rua, não



Renata Brzozowska -Retrato 42-2008
Renata Brzozowska, Retrato 42 (2008)




Renata Brzozowska -Retrato 59-2009
Renata Brzozowska, Retrato 59 (2009)




Renata Brzozowska -Retrato 180-2006
Renata Brzozowska, Retrato 180 (2006)





poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2021



Carlos Drummond de Andrade
      •  "Nosso Tempo", de A Rosa do Povo (1945)
      in Poesia Completa
      Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 2003
The Rolling Stones
      •  "Street Fighting Man":
      in álbum The Beggars Banquet (1969)
_____________
* Mario Quintana, "O Relógio" in Caderno H (1973)
______________
* Imagens: quadros da pintora polonesa Renata Brzozowska (1977-)