Amigas e amigos,
No próximo domingo, 31/10/2021, celebra-se o já consagrado Dia D — a data de nascimento do poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987).
Publicado por um site que suspeitamente se chama Alguma Poesia, este boletim também reverencia a data. Esta, portanto, é uma edição centrada
no poeta Drummond. Só que de um jeito diferente, conforme se verá. Aqui se faz uma discreta associação entre o escritor itabirano e dois dos maiores ícones
da música pop internacional do século XX: as bandas britânicas The Beatles e The Rolling Stones.
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Em março de 1969, a extinta revista Realidade publicou excertos de uma biografia dos Beatles, então no auge da fama, produzida pelo escritor Hunter Davies. Para ilustrar
o trabalho dos biografados, a revista pediu a Drummond que traduzisse algumas letras das canções de seu disco
na época mais recente,
The Beatles — o Álbum Branco, duplo, de 1968.
Em 2002, em duas edições da série de boletins chamada Drummond: 100 anos, publiquei e comentei aquelas
versões drummondianas para versos de John Lennon, Paul McCartney e George Harrison. Entre elas estão as letras de canções clássicas como “Blackbird”, “Ob-la-di, ob-la-da”
e “Happiness Is a Warm Gun”. Se você tiver curiosidade, veja-as aqui:
• Drummond traduz Beatles (I)
• Drummond traduz Beatles (II)
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“Meu nome é tumulto”. De quem é este verso? Os mais antenados vão dizer: Drummond. E se eu disser que é dos Rolling Stones?
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A história das traduções de letras dos Beatles levou-me a outra lembrança, também ligada a Drummond, mas desta vez associada a outra banda-símbolo dos anos 1960,
The Rolling Stones. Leitor do poeta e ouvinte do grupo de roqueiros, notei uma interessante coincidência de ideias: um verso de Carlos Drummond de Andrade aparece
numa letra dos Stones.
“Meu nome é tumulto, e escreve-se na pedra”, diz Drummond no poema “Nosso Tempo”, publicado no livro A Rosa do Povo (1945). “Hey,
my name is called Disturbance”,
escrevem Mick Jagger e Keith Richards, dos Rolling Stones, na canção “Street Fighting Man” (Lutador de Rua), de 1968. O eixo do verso drummondiano (“Meu nome é tumulto”)
seria uma tradução perfeita para esse trecho dos Stones. Além disso, o complemento (“e escreve-se na pedra”) ainda faz referência ao mineral que dá nome à banda inglesa,
as pedras rolantes.
Portanto, Drummond e os Rolling Stones escreveram versos bastante similares. Vinte e três anos separam os lançamentos das obras que contêm
esses versos. O poema de Drummond, como vimos, é de 1945. A música de Jagger & Richards saiu pela primeira vez em agosto de 1968, num compacto simples,
e depois como a primeira faixa do lado B do álbum Beggars Banquet (Banquete dos Mendigos), que chegou às lojas inglesas e americanas em dezembro do mesmo ano.
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O verso drummondiano integra o poema “Nosso Tempo”, texto longo dividido em oito partes, no qual o poeta traça um retrato do mundo conflagrado na Segunda Guerra Mundial,
enquanto os brasileiros também enfrentavam a ditadura do Estado Novo. As duas primeiras linhas do texto são sintomáticas: “Este é tempo de partido, / tempo de homens partidos”.
Conforme a professora Marlene de Castro Correia, da UFRJ, estudiosa da obra de Drummond, esses dois versos definem a ideia central do poema. O texto, analisa
ela, constata a fragmentação dos seres
humanos naquele momento histórico-cultural, mas não admite a abstenção: “exige que se faça uma opção ideológica, que se assuma uma posição política, que se tome partido, enfim”,
escreve a professora.
Para ela, na estrofe que começa com a frase “Em vão percorremos volumes”, transcrita ao lado, o poeta identifica-se ideologicamente.
Sua posição torna-se ainda mais clara na última parte do poema, a VIII, na qual a persona do poeta promete solenemente “ajudar a destruir”
o mundo capitalista “como um verme”. Com efeito, versos desse naipe só poderiam surgir num momento histórico como aquele, tão exigente.
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Passemos, agora, para a letra de “Street Fighting Man”, dos Stones, também transcrita ao lado. As pedras rolantes usam uma linguagem agressiva, de quem parece
disposto a dissolver o sistema. É óbvio que toda essa bravata "revolucionária" e meio anarquista só poderia ser veiculada numa democracia como a Inglaterra.
Seria impensável alguém no Brasil cantar algo assim, em 1969, nos tenebrosos tempos do AI-5, do general Garrastazu Médici e do torturador Brilhante Ustra.
Um detalhe interessante: a expressão palace revolution (que traduzi aí ao lado como “golpe palaciano”) significa um golpe de estado tramado por pessoas que já
ocupam posições nas esferas do poder. Isso mostra que a letra não apresenta nenhuma proposta “revolucionária” — é pura empolgação dos Stones, refletindo o clima geral de rebeldia
do ano que (aqui) não terminou. Pode-se também supor que Jagger & Richards, com essa expressão, queriam sugerir a ideia de tomar o palácio de assalto — ou seja,
atacar o centro do poder.
Mas eles sabiam que isso não era possível. Ademais, não sejamos ingênuos: no mundo capitalista o verdadeiro centro do poder não está exatamente
no palácio real. Está nas mãos da alta burguesia financeira, dos donos de grandes negócios internacionais — gente de quem muitas vezes não se sabe o nome nem o rosto.
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Enfim, essa proposta “revolucionária” é meio bravata. Tanto que, na verdade, a letra lamenta que o jogo praticado na Grã-Bretanha é “solução de compromisso”.
Diante disso, a letra se desvia para outro lado: então a única coisa que um rapaz pobre pode fazer é “cantar
numa banda de rock’n’roll”. Mas a época concentrava muitos acontecimentos conflituosos, incluindo a guerra do Vietnã. Portanto, a palavra “revolução” estava no ar.
Também os Beatles, em seu Álbum Branco (1968), gravaram uma canção chamada “Revolution”. E, pouco depois, em 1971, John Lennon lançaria a canção
“Power to the People”, cujo refrão clama: Power to the people right on! (“Poder para o povo, já!”).
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Os ânimos de 68 estavam mesmo exaltados. Se “Street Fighting Man” abria o lado B do elepê
dos Stones, a primeira faixa do lado A também não era pouco escandalosa:
“Sympathy for the Devil” (Simpatia pelo Diabo), canção na qual o Demo fala em primeira pessoa. Apresenta-se como Lúcifer, homem rico e de bom gosto, gaba-se
de ter feito e acontecido durante toda a História, e ainda exige ser tratado com simpatia. Mas Mr. Lúcifer também sugere, em certo trecho da letra, que todas
as atrocidades que ele cometeu foram na verdade obras do ser humano: "eu e você". Os Rolling Stones talvez não soubessem exatamente o que estavam fazendo, mas
com certeza se integraram muito bem ao espírito contestador da época.
Quanto aos dois versos que geraram toda essa discussão (“Meu nome é tumulto” e “My name is called Disturbance”), eles de fato são muito parecidos. Aliás,
em inglês, um dos sinônimos de disturbance é tumult, palavra que vem da mesma raiz latina (tumultus) de nosso “tumulto”.
Viva o Dia Drummond.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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