Número 479 - Ano 19

Salvador, quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

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«As leis não bastam. Os lírios não nascem / da lei.» (Carlos Drummond de Andrade) *

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Quatro Poetas
Alphonsus de Guimaraens, Manuel Bandeira, Adélia Prado, Iracema Macedo


Amigas e amigos,

Esta edição marca o aniversário do poesia.​net, que completa 19 anos em 12 de dezembro de 2021. Num contexto de quase dois anos de pandemia e após a perda de quase 620 mil vidas brasileiras, não é hora de comemorações. Fica o registro do aniversário.

Esta é a última edição de conteúdo poético do ano. O poesia.​net entra em recesso. Espero retornar com mais poesia em fevereiro de 2022. Neste mês ainda circula a retrospectiva do ano. Desejo um bom fim de ano a todos, leitoras e leitores.

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Confesso a vocês que sempre me entusiasmei com os personagens, citados pelo nome, que aparecem nos poemas e canções populares. É claro que as figuras humanas dos romances são muito mais completas. A gente convive com elas durante dias, muitas peripécias e centenas de páginas. Os personagens de poemas e canções não têm esse tempo todo. São apenas dois, três minutos de audição ou leitura — e eles ou nos conquistam ou são esquecidos de imediato.

Mas aqui desejo falar daqueles personagens que ficam plantados para sempre em nossa cabeça. Cito alguns da música popular. No Brasil, figuras de Caymmi, como João Valentão, o brigão; e uma graciosa lista de mulheres, a exemplo de Dora, Doralice, Marina e Rosa Morena. Outra mulher: Etelvina, a esposa do samba “Acertei no Milhar”, de Wilson Batista. E ainda o trágico triângulo amoroso em J (José, João e Juliana), de “Domingo no Parque”, invenção genial de Gilberto Gil.

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Há muitas outras figuras que se destacam, como Pedro Pedreiro, Carolina, Januária, Geni e Lily Braun, de Chico Buarque; ou, ainda, Irene, de Caetano Veloso, dona de inesquecível risada; e Clarice, de José Carlos Capinan em parceria com Caetano. A lista poderia seguir indefinidamente. Lembro-me, por exemplo, da emblemática Mama África, a mãe negra e proletária, da canção de Chico César. Vêm ainda figuras engraçadas como Arnesto, de Adoniran Barbosa, e a comadre Sebastiana, de Rosil Cavalcanti, na voz de Jackson do Pandeiro.

Na música pop internacional, também é possível pinçar figuras como o Sargento Pimenta (Sgt. Pepper), líder de uma banda retrô; Eleanor Rigby, aquela mulher que cata o arroz na igreja depois dos casamentos; e até a moça que tinha por nome Magill, mas chamava a si mesma Lil, embora todo mundo a conhecesse como Nancy. Todos esses personagens vêm do baú dos Beatles.

E na poesia, quais são os personagens inesquecíveis?

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No Brasil, o maior criador de figuras humanas talvez seja Manuel Bandeira. Gente inventada ou retratos de pessoas reais, seus personagens incluem Misael, que se casou com Maria Elvira, em “Tragédia Brasileira”; e João Gostoso, aquele do “Poema Tirado de uma Notícia de Jornal”. Há também pessoas impressionantes como “Jandira”, de Murilo Mendes; “José”, alter ego de Drummond, ou a moça Luísa Porto, procurada desesperadamente pela velha mãe no poema “Desaparecimento de Luísa Porto”, também de Drummond. Ainda do poeta itabirano, não há como esquecer os “dançarinos” do poema “Quadrilha”: João, Teresa, Raimundo, Lili etc. Ou, ainda, o migrante pernambucano Severino, de João Cabral de Melo Neto, citado aqui recentemente no boletim n. 472.

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Nesta edição, fiz uma seleção de poemas baseados em personagens. Fiquei com apenas quatro deles. Primeiro, “Ismália”, de Alphonsus de Guimaraens; depois, “Poema Tirado de uma Notícia de Jornal”, de Manuel Bandeira; a seguir, “Os Tiranos”, de Adélia Prado; e, por fim, “Invenção de Eurídice”, da poeta potiguar Iracema Macedo.

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Alphonsus de Guimaraens
• Ismália

Publicado originalmente no livro póstumo Pastoral aos Crentes do Amor e da Morte (1923), o poema “Ismália” é talvez o mais popular do simbolista mineiro Alphonsus de Guimaraens (1870-1921). Baseado numa tragédia — o suicídio da personagem —, o texto compõe-se de cinco quadras em redondilhas maiores, todas com versos rimados em “eu” e “ar”.

O primeiro quarteto de “Ismália” já apareceu aqui no boletim n. 424 como um exemplo de “início arrebatador”. Com quase 100 anos em circulação, o poema tem servido de base para numerosas canções. Uma delas foi composta pelo pernambucano Capiba (Lourenço da Fonseca Barbosa, 1904-1997). Outra, mais recente, tem música de Gastão Villeroy, que a interpreta ao lado de Milton Nascimento. Confira aqui.

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Manuel Bandeira
• Poema Tirado de Uma Notícia de Jornal

João Gostoso, protagonista destes versos bandeirianos, realmente existiu e foi notícia de vários jornais em dezembro de 1925. Mas, conforme descoberta do poeta e professor Heitor Ferraz, a notícia a que Bandeira se refere no título saiu no Beira-Mar, semanário de bairro carioca, em 25/12/1925.

No auge de sua criatividade modernista, Bandeira extraiu dessa publicação quase todas as palavras do texto. “Poema Tirado de Uma Notícia de Jornal” foi publicado em livro pela primeira vez no volume Libertinagem (1930).

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Adélia Prado
• Os Tiranos

O poema “Os Tiranos” é um de meus preferidos de Adélia Prado. Nele a poeta de Divinópolis-MG traça o perfil de um grupo de irmãs solteiras (Alvina, Rosa, Marta e Aurora) que vivem juntas numa casa do interior. Sua vida, marcada por pequenas intrigas domésticas, é regida pela autoridade de uma figura ausente, o pai Joaquim, há muito já falecido.

Um dos pontos fortes da poesia de Adélia Prado é exatamente trazer para o mundo lírico essas criaturas de vidas opacas, com suas histórias em voz baixa, às quais os poetas não costumam prestar muita atenção.

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Iracema Macedo
• Invenção de Eurídice

Este poema dá título ao livro Invenção de Eurídice, da poeta e professora potiguar Iracema Macedo. Publicada em 2004, essa coletânea reúne uma rica coleção de personagens femininas, ficcionais ou históricas, que se movem entre dores e as sofridas delícias de um mundo que se pauta pela régua do patriarcado.

A figura de Eurídice, criada por Iracema, contém rebeldia na própria raiz. Observe-se que Invenção de Eurídice é a contraparte feminina do épico Invenção de Orfeu, do alagoano Jorge de Lima. No poema, sente-se um vaivém de onda marítima que envolve ao mesmo tempo conflito e sedução. “Havia os cabelos de Eurídice incendiando a praia / E os homens com suas redes esperando”. E ela, a protagonista, busca apenas “alcançar uma alegria, um êxtase, / Uma dor que fosse”.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado

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poesia.​net, 19 anos

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Gente de carne, osso e poesia


• Alphonsus de Guimaraens
• Manuel Bandeira   • Adélia Prado
• Iracema Macedo


              



Itzchak Tarkay - At the salon
Itzchak Tarkay, pintor sérvio-israelense, No salão


• Alphonsus de Guimaraens

ISMÁLIA

Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...

E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...




Itzchak Tarkay - A serene momenr-2005
Itzchak Tarkay, Momento sereno (2005)


• Manuel Bandeira

POEMA TIRADO DE UMA NOTÍCIA DE JORNAL

João Gostoso era carregador de feira livre e morava no
   [ morro da Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.



Itzchak Tarkay - Chit chat-2010
Itzchak Tarkay, Bate-papo (2010)


• Adélia Prado

OS TIRANOS

Joaquim meu tio foi imperturbável ditador.
Só uma de minhas primas se atreveu a casar-se.
As outras ficaram pra lhe honrar a memória
com azedumes e pequenos delírios.
Produzem croché e hilaridade contando-se anedotas,
virtude e paciência que desperdiçam
por equivocado orgulho, irado catolicismo.
Em bordados e haveres gastam a amargura recíproca:
o galinheiro é de Alvina,
o canteiro é de Rosa,
o guaraná é de Marta
na geladeira de Aurora.
Não pisaram na Igreja no casamento da irmã.
Tia Zilá dá sinais de cansaço,
breve estará na Glória.
Não tendo a quem mais servir,
as primas vão brigar empunhando
rosários, agulhas, maçanetas.
Mas se baterem à porta, servirão biscoitos
e a anedota do rato equilibrista, que solicito sempre:
‘Um dia papai estava dormindo no quartinho da sala,
acordou com um barulhinho tin-tin, tin-tin-tão...’
Me comovem as primas, os tios emoldurados na parede,
os ratos na batalha campal daquela casa
caçando pra roer os restos
do que, apesar de tudo, foi amor.



Itzchak Tarkay - Holiday eve-2001
Itzchak Tarkay, Véspera de feriado (2001)


• Iracema Macedo

INVENÇÃO DE EURÍDICE

Havia os cabelos de Eurídice incendiando a praia
E os homens com suas redes esperando

Orfandades arrastadas sobre a areia
era assim que vinham os peixes
era assim que as palavras vinham,
sem ar,
com olhos vitrificados

Havia os cabelos de Eurídice soltos
como velames
cortando os ventos
semeando bichos que se alastravam

Eram quase mãos, os cabelos de Eurídice,
Tentando agarrar alguma coisa
Buscando alcançar uma alegria, um êxtase,
Uma dor que fosse
qualquer coisa quebrada,
algum resto, um destroço

algas e conchas dentro das ondas




poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2021



• Alphonsus de Guimaraens
      “Ismália”
      in Os Melhores Poemas de Alphonsus de Guimaraens
      (publicação original: Pastoral aos Crentes do Amor e da Morte, 1923)
      Global, São Paulo, 1985
• Manuel Bandeira
      “Poema tirado de uma notícia de jornal”
      in Estrela da Vida Inteira
      (publicação original: Libertinagem, 1930))
      José Olympio, Rio de Janeiro, 1976
• Adélia Prado
      “Os Tiranos”
      in Poesia Reunida
      (publicação original: Terra de Santa Cruz, 1981)
      Siciliano, São Paulo, 2001
• Iracema Macedo
      “Invenção de Eurídice”
      in Invenção de Eurídice
      Editora da Palavra, Rio de Janeiro, 2004
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* Carlos Drummond de Andrade, "Nosso Tempo" in A Rosa do Povo (1945)
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* Imagens: quadros do pintor sérvio-israelense Itzchak Tarkay (1935-2012)