Número 483 - Ano 20

Salvador, quarta-feira, 23 de março de 2022

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«Não há nunca testemunhas. Há desatentos. Curiosos, muitos.» (Carlos Drummond de Andrade) *

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Graça Pires
Graça Pires



Amigas e amigos,

A autora em destaque nesta edição já esteve aqui, cerca de dois anos atrás, no boletim n. 447. Trata-se da poeta portuguesa Graça Pires (Figueira da Foz, 1946), que já publicou mais de duas dezenas de títulos, dos quais os mais recentes são Antígona passou por aqui (2022), Jogo sensual no chão do peito (2021) e A solidão é como o vento (2020).

Autora que produz com admirável fertilidade, Graça Pires é licenciada em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Estreou em 1990 com o livro Poemas e já conquistou um bom número de prêmios literários.

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Se for necessário arriscar uma classificação, pode-se afirmar que a poesia de Graça Pires é essencialmente lírica. Com a expressividade de quem vive na intimidade das palavras, a poeta costuma se lançar em projetos ambiciosos. É o caso do volume Fui quase todas as mulheres de Modigliani (2017), apresentado aqui no boletim 447.

Como o título sugere, o livro reúne uma coleção de poemas, cada um criado a partir de um retrato de mulher produzido pelo pintor italiano. Outro exemplo de projeto é Jogo sensual no chão do peito, volume de poemas inspirado na célebre dançarina americana Isadora Duncan (1877-1927). Nos textos, a bailarina fala em primeira pessoa.

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Para esta edição, selecionei seis poemas de cinco coletâneas de Graça Pires, mais um poema inédito em livro, recém-escrito, dedicado ao Brasil e publicado no blog da autora. Vamos aos poemas.

A seleção começa com “Amor”, caracterizado como “uma espera de mágoa e mel”, ao lado de uma bela coleção de metáforas marítimas. Vem a seguir “De muito longe”, outra demonstração de exuberância lírica: “mulheres / vindas de muito longe com punhais de luz / por dentro do olhar”.

Em “Um homem morreu sem ver o mar”, a veia lírica tende para o surrealismo, com imagens como “os barcos sobrevoam as casas”. Já no poema “Procurou alguém que gostasse de animais”, encontra-se a história de uma pessoa idosa que se recolhe a um asilo e teve de doar o cão, que não lhe permitiam levar consigo.

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O texto “E dancei descalça por todos os lugares” corresponde à voz da bailarina Isadora Duncan recriada por Graça Pires. Mulher de espírito livre e anticonvencional, a artista americana de fato costumava bailar descalça.

Sobre o poema “As mãos das mulheres”, é interessante dizer que ele aparece aqui no formato publicado pela própria autora em seu blog. No livro Antígona passou por aqui, ele apresenta duas diferenças. Primeiro, é apresentado em forma de prosa. Depois, corresponde a apenas uma parte do poema que está à página 35.

Deixei para o final o poema “Impiedosamente”, de fatura muito recente (fevereiro, 2022) e dedicado aos “amigos do Brasil”. Inspirado na tragédia das inundações e desabamentos em Petrópolis-RJ, o poema expressa espanto e solidariedade. Decidi incluí-lo neste boletim ao constatar que similares ocorrências trágicas ocorreram novamente, um mês depois, em Petrópolis.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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A dançarina descalça


• Graça Pires


              

Itzchak Tarkay- Cafe company-2005
Itzchak Tarkay, sérvio-isralense, Cafe company (2005)


AMOR

Quando te procurei
em rotas de seda e ouro,
eu não sabia que o amor
é uma espera de mágoa e mel.
Nem suspeitava
que há nos corpos nus
a enchente das marés
que altera a tempestade.
E desconhecia que é preciso
empunhar o leme
para que as mágoas inundem
desesperadamente as margens.

      De Caderno de significados (2013)



DE MUITO LONGE

Conta-se que há laranjais que rebentam
ao pé dos poços deixando um aroma de pétalas
branquíssimas no bordo dos cântaros.
Todos os dias chegam ali mulheres
vindas de muito longe com punhais de luz
por dentro do olhar e um ramo de oliveira
entrelaçado nos dedos.

      De Uma vara de medir o sol (2018)



Itzchak Tarkay- Content at home - 2009
Itzchak Tarkay, Satisfeita em casa (2009)


UM HOMEM MORREU SEM VER O MAR

Um homem morreu sem ver o mar.
Agora na sua aldeia
os barcos sobrevoam as casas.
Os meninos vestem-se de marinheiros
à espera que qualquer barco
encalhe à sua porta.

      De A solidão é como o vento (2020)



PROCUROU ALGUÉM QUE GOSTASSE DE ANIMAIS

Procurou alguém que gostasse de animais
para lhe cuidar do cão.
O lugar que escolhera para viver o tempo
que lhe sobrava era só para pessoas.
Uma espécie de abandono aferrou-se-lhe na pele.
Porém, os pássaros começaram a demorar-se
no parapeito da janela do seu quarto.
Estremecidamente, começou a deixar-lhes sementes.
E eles vinham. E chilreavam.
E sobrevoavam a réstia de alegria que ganhara.
Mas também às aves era interdito que ali pousassem.
Sujavam tudo, lhe disseram.
“Quem me dera voltar para a minha casa”,
chorou baixinho.

      De A solidão é como o vento (2020)



Itzchak Tarkay - Sisters
Itzchak Tarkay, Irmãs


E DANCEI DESCALÇA POR TODOS OS LUGARES

E dancei descalça por todos os lugares,
imitando os rituais aos deuses
das límpidas manhãs,
ou aos anjos das trevas,
na euforia do enlevo.

Cúmplice fui de bacantes e de bichos.
De árvores e de chuvas fui irmã.

Concebi-me a usar a máscara das tragédias
gregas até escutar vozes divinas.

Bailarina imperfeita e persistente
fiz do meu perfil a promessa inequívoca
de um cerimonial dos sentidos,
um salto mortal do meu próprio começo.

      De Jogo sensual no chão do peito (2020)



AS MÃOS DAS MULHERES

Tão atarefadas sempre, as mãos das mulheres
ficam por vezes vazias de afagos,
quase ausentes e indecisas
no esboço de desejos sem retorno.
É então que aprendem a atear o fogo
com a benevolência debaixo da língua
e inventam um alfabeto transparente
para descreverem com detalhe
as madrugadas silenciosas.
Aquelas que colocam no olhar
um estremecimento sagrado
e permitem adivinhar a perfeita simetria de aves
a rasarem a silhueta das casas.
Por isso esperam, ansiosas, de olhos colados na janela,
o regresso dos bandos de estorninhos no fim do verão.

      De Antígona passou por aqui (2021)



Itzchak Tarkay - Barbara and Clare-2007
Itzchak Tarkay, Barbara e Clare (2007)


IMPIEDOSAMENTE

    A minha solidariedade para com os habitantes de Petrópolis.
    O meu abraço para todos os meus Amigos do Brasil

Impiedosamente, um rio de lama desceu o morro.
Arrastou casas, carros, pessoas em aflição e dor,
na vertigem de uma morte inesperada.
Eram mulheres, homens, crianças.
Todos amavam a vida.
Mas o rio de lama que desceu o morro
despenhou-os impiedosamente.
Os que ficaram choram agora a família,
os amigos e tudo o que o rio de lama
lhes roubou. Impiedosamente.

      Graça Pires, fevereiro, 2022





poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2022



Graça Pires
      • “Amor”:
      in Caderno de significados
      Lua de Marfim, Póvoa de Santa Iria, 2013
      • “De Muito Longe”:
      in Uma vara de medir o sol
      Coisas de Ler, Póvoa de Santa Iria, 2018
      • “Um homem morreu sem ver o mar”;
      “Procurou alguém que gostasse de animais”
      in A solidão é como o vento
      Poética, Braga, 2020
      • “E dancei descalça por todos os lugares”:
      in Jogo sensual no chão do peito
      Labirinto, Fafe, 2020
      • “As mãos das mulheres”:
      in Antígona passou por aqui
      Poética, Lisboa, 2021
      • “Impiedosamente”:
      no blog da autora, Ortografia do Olhar
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* Carlos Drummond de Andrade, "Tarde de Maio", in Claro Enigma (1951)
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* Imagens: quadros do pintor sérvio-israelense Itzchak Tarkay (1935-2012)