Amigas e amigos,
Esta é mais uma edição ancorada num tema. Desta vez, a palavra-chave é cidade, campo vastíssimo para aguçar a inspiração dos poetas. Fiz uma busca no
já volumoso acervo deste quinzenário e selecionei seis poemas que se enquadram nesse tema.
Os autores são José Paulo Paes (1926-1998), Izacyl Guimarães Ferreira (1930-), Vera Lúcia de Oliveira (1958-), Ruy Proença (1957-),
Paulo Ferraz (1974-) e Donizete Galvão (1955-2014).
Vamos aos poemas.
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José Paulo Paes
poesia.net n. 258 (2008)
Paulista de Taquaritinga, José Paulo Paes publicou em 1995 o livro A Meu Esmo, no qual inclui o poema “Revisitação”. No texto, o autor
se sente perseguido por sua cidade natal e as recordações que guarda de lá.
O primeiro verso é emblemático: “Cidade, por que me persegues?”. Aí está a confissão. É importante observar que o autor escreveu este poema poucos
anos antes de morrer. Há nele, portanto, algo como um exercício de passar a vida a limpo. “Não é mais tempo de comprar./ Logo será tempo de viajar/
para não se sabe onde./ Sabe-se apenas que é preciso ir/ de mãos vazias”.
Um texto de profunda reflexão, que eleva o poeta e, com ele, sua nunca esquecida Taquaritinga.
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Izacyl Guimarães Ferreira
poesia.net n. 254 (2008)
Poeta de fôlego, o carioca Izacyl Guimarães Ferreira publicou em 2007 o volume Discurso Urbano, ambicioso poema-livro dividido em
estrofes numeradas, de dez versos decassílabos cada. O intuito do autor é, de certo modo, cobrir todas as cidades do mundo, desde as históricas e míticas da
Antiguidade até as metrópoles atuais. Diz ele, na parte 6: “Constantinopla, Nínive, Cartago./ Granada, Gênova, Berlim, Chicago./ As meras sílabas,
pronunciadas,/ modelam estruturas virtuais”.
Aqui, ao lado, transcrevo apenas três das estrofes do poema. Nelas, o poeta passeia por cidades que vão de Ouro Preto a Havana; de Barcelona
à sua terra natal, o Rio de Janeiro. No bloco 31, ele aproveita para tecer justa louvação a artistas conterrâneos ou cariocas adotados como
Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Tom Jobim, Noel Rosa e Cecília Meireles.
Com ânimo quase épico ao longo de seu Discurso Urbano, Izacyl não abre mão do lirismo, quando se trata de afagar sua própria cidade:
“Rio verbete meu e meu comparsa”.
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Vera Lúcia de Oliveira
poesia.net n. 254 (2003)
Dos centros urbanos espalhados pelo mundo que alicerçam o discurso de Izacyl, passamos a uma cidade íntima, expressa no poema “Rua de Comércio”,
da paulista Vera Lúcia de Oliveira. Essa cidade é magra, “não caminha” — uma “planicidade”.
O sujeito lírico se declara filha desse lugar raso (“que só tem superfície”) e revela a respeito de lá um sentimento dúbio. É parte de toda essa
“magreza”, mas, ao mesmo tempo, a repudia. Não sei se repúdio é a palavra exata, uma vez que aí deve haver uma complexa mistura de emoções.
De todo modo, creio que há, sim, algum repúdio. Afinal, a pessoa se sente “nua e
estreita” como uma rua de comércio na cidade magra. Uma via estreita, e não uma
praça, um parque, um jardim. “Rua de Comércio”, o poema de Vera Lúcia, saiu originalmente no livro Geografie d'Ombra/Geografias de Sombra,
de 1989, publicado na Itália, onde vive a autora.
Ruy Proença
poesia.net n. 343 (2015)
Até aqui, a cidade foi vista como referência histórica e sentimental. Agora, nos três últimos poemas, os habitantes é que dão notícia do centro urbano,
sua (des)organização, seu caos. No poema “Motoboy”, de Ruy Proença, surge um personagem-símbolo dos brasis atuais. Símbolo do desemprego,
das desigualdades sociais e também do cinismo neoliberal, que propaga a ideia de que esses trabalhadores são “livres” — “sem horário e sem patrão”.
O motoboy do poema apresenta-se em primeira pessoa. Vende-se como “jovem”, “prestativo”, “expedito” e outros adjetivos de valor muito positivo.
No caso, “procura// superior/ para lhe/ dar ordens/ ambíguas/ o reprimir/ explorar/ humilhar/ castigar”.
Os trabalhadores de entregas destacam-se hoje em todas as cidades de certo porte no país. Conforme pesquisa do Departamento Intersindical de
Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), no final de 2020 os motoboys seriam mais de 950 mil nos grandes centros brasileiros.
O poema de Ruy Proença está em seu livro Caçambas (2015), no qual o autor,
paulistano, observa muitas outras situações e personagens de sua gigantesca
cidade.
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Paulo Ferraz
poesia.net n. 41 (2003)
No poema “Motorista - Linha 478-P”, o poeta mato-grossense Paulo Ferraz destaca outro profissional urbano, precisamente um condutor
de ônibus da cidade de São Paulo. Trata-se, aí, de uma figura burlesca, um sujeito meio bonachão, torcedor do Corinthians, cheio de empáfia.
Uma pequena divindade do volante. “No mar, capitão com Deus se/ parelha, no ônibus, ele”.
Esse irônico poema de Paulo Ferraz foi publicado aqui numa das primeiras edições do boletim, a n. 41, em 2003.
Depois, o texto foi incluído
no livro Evidências Pedestres (2007).
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Donizete Galvão
poesia.net n. 425 (2019)
Agora, o último poema, “Pássaros Urbanos”, do mineiro Donizete Galvão. Enquanto Ruy Proença e Paulo Ferraz localizaram pessoas ao rés do chão,
Donizete resolveu olhar para cima. E lá no alto enxergou novo ente, hoje muito comum no cotidiano das grandes cidades: a grua (guindaste)
das construções.
Com este significado, a palavra é antiga (datada de 1713, segundo o Dicionário Houaiss) e vem do francês grue, “aparelho para
erguer fardos”. Em outra acepção, agora do reino animal, “grua” é a fêmea do grou, ave da família dos gruídeos.
Os franceses certamente batizaram o guindaste por causa de sua semelhança com a
ave pernalta. Mas foi a criatividade
do poeta Galvão que transformou a grua mecânica em pássaro urbano. Afinal, quem
não conhece a língua francesa dificilmente fará essa associação.
Então a grua, pássaro fêmea, parece multiplicar-se a cada dia nos céus das cidades. E o poeta constata, sobre as gruas do reino mecânico:
“elas próprias/ — aves/ pernaltas —/ erguem/ moradas/ de pedra”. Ele faz ainda outra
constatação. Ao contrário do que se espera, ao construir tantos ninhos de cimento e aço, essas aves não mudam a sorte de outros seres,
aves terrestres, que “habitam/ as junções/ dos viadutos/ entre trapos/ e papelão”.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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