Número 484 - Ano 20

Salvador, quarta-feira, 6 de abril de 2022

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«A poesia está em tudo — tanto nos amores como nos chinelos.» (Manuel Bandeira) *

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Seis Poetas
José Paulo Paes, Izacyl Guimarães Ferreira, Vera Lúcia de Oliveira, Ruy Proença, Paulo Ferraz, Donizete Galvão



Amigas e amigos,

Esta é mais uma edição ancorada num tema. Desta vez, a palavra-chave é cidade, campo vastíssimo para aguçar a inspiração dos poetas. Fiz uma busca no já volumoso acervo deste quinzenário e selecionei seis poemas que se enquadram nesse tema.

Os autores são José Paulo Paes (1926-1998), Izacyl Guimarães Ferreira (1930-), Vera Lúcia de Oliveira (1958-), Ruy Proença (1957-), Paulo Ferraz (1974-) e Donizete Galvão (1955-2014).

Vamos aos poemas.

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José Paulo Paes
poesia.​net n. 258 (2008)

Paulista de Taquaritinga, José Paulo Paes publicou em 1995 o livro A Meu Esmo, no qual inclui o poema “Revisitação”. No texto, o autor se sente perseguido por sua cidade natal e as recordações que guarda de lá.

O primeiro verso é emblemático: “Cidade, por que me persegues?”. Aí está a confissão. É importante observar que o autor escreveu este poema poucos anos antes de morrer. Há nele, portanto, algo como um exercício de passar a vida a limpo. “Não é mais tempo de comprar./ Logo será tempo de viajar/ para não se sabe onde./ Sabe-se apenas que é preciso ir/ de mãos vazias”.

Um texto de profunda reflexão, que eleva o poeta e, com ele, sua nunca esquecida Taquaritinga.

•o•


Izacyl Guimarães Ferreira
poesia.​net n. 254 (2008)

Poeta de fôlego, o carioca Izacyl Guimarães Ferreira publicou em 2007 o volume Discurso Urbano, ambicioso poema-livro dividido em estrofes numeradas, de dez versos decassílabos cada. O intuito do autor é, de certo modo, cobrir todas as cidades do mundo, desde as históricas e míticas da Antiguidade até as metrópoles atuais. Diz ele, na parte 6: “Constantinopla, Nínive, Cartago./ Granada, Gênova, Berlim, Chicago./ As meras sílabas, pronunciadas,/ modelam estruturas virtuais”.

Aqui, ao lado, transcrevo apenas três das estrofes do poema. Nelas, o poeta passeia por cidades que vão de Ouro Preto a Havana; de Barcelona à sua terra natal, o Rio de Janeiro. No bloco 31, ele aproveita para tecer justa louvação a artistas conterrâneos ou cariocas adotados como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Tom Jobim, Noel Rosa e Cecília Meireles.

Com ânimo quase épico ao longo de seu Discurso Urbano, Izacyl não abre mão do lirismo, quando se trata de afagar sua própria cidade: “Rio verbete meu e meu comparsa”.

•o•


Vera Lúcia de Oliveira
poesia.​net n. 254 (2003)

Dos centros urbanos espalhados pelo mundo que alicerçam o discurso de Izacyl, passamos a uma cidade íntima, expressa no poema “Rua de Comércio”, da paulista Vera Lúcia de Oliveira. Essa cidade é magra, “não caminha” — uma “planicidade”.

O sujeito lírico se declara filha desse lugar raso (“que só tem superfície”) e revela a respeito de lá um sentimento dúbio. É parte de toda essa “magreza”, mas, ao mesmo tempo, a repudia. Não sei se repúdio é a palavra exata, uma vez que aí deve haver uma complexa mistura de emoções.

De todo modo, creio que há, sim, algum repúdio. Afinal, a pessoa se sente “nua e estreita” como uma rua de comércio na cidade magra. Uma via estreita, e não uma praça, um parque, um jardim. “Rua de Comércio”, o poema de Vera Lúcia, saiu originalmente no livro Geografie d'Ombra/Geografias de Sombra, de 1989, publicado na Itália, onde vive a autora.


Ruy Proença
poesia.​net n. 343 (2015)

Até aqui, a cidade foi vista como referência histórica e sentimental. Agora, nos três últimos poemas, os habitantes é que dão notícia do centro urbano, sua (des)organização, seu caos. No poema “Motoboy”, de Ruy Proença, surge um personagem-símbolo dos brasis atuais. Símbolo do desemprego, das desigualdades sociais e também do cinismo neoliberal, que propaga a ideia de que esses trabalhadores são “livres” — “sem horário e sem patrão”.

O motoboy do poema apresenta-se em primeira pessoa. Vende-se como “jovem”, “prestativo”, “expedito” e outros adjetivos de valor muito positivo. No caso, “procura// superior/ para lhe/ dar ordens/ ambíguas/ o reprimir/ explorar/ humilhar/ castigar”.

Os trabalhadores de entregas destacam-se hoje em todas as cidades de certo porte no país. Conforme pesquisa do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), no final de 2020 os motoboys seriam mais de 950 mil nos grandes centros brasileiros. O poema de Ruy Proença está em seu livro Caçambas (2015), no qual o autor, paulistano, observa muitas outras situações e personagens de sua gigantesca cidade.

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Paulo Ferraz
poesia.​net n. 41 (2003)

No poema “Motorista - Linha 478-P”, o poeta mato-grossense Paulo Ferraz destaca outro profissional urbano, precisamente um condutor de ônibus da cidade de São Paulo. Trata-se, aí, de uma figura burlesca, um sujeito meio bonachão, torcedor do Corinthians, cheio de empáfia. Uma pequena divindade do volante. “No mar, capitão com Deus se/ parelha, no ônibus, ele”.

Esse irônico poema de Paulo Ferraz foi publicado aqui numa das primeiras edições do boletim, a n. 41, em 2003. Depois, o texto foi incluído no livro Evidências Pedestres (2007).

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Donizete Galvão
poesia.​net n. 425 (2019)

Agora, o último poema, “Pássaros Urbanos”, do mineiro Donizete Galvão. Enquanto Ruy Proença e Paulo Ferraz localizaram pessoas ao rés do chão, Donizete resolveu olhar para cima. E lá no alto enxergou novo ente, hoje muito comum no cotidiano das grandes cidades: a grua (guindaste) das construções.

Com este significado, a palavra é antiga (datada de 1713, segundo o Dicionário Houaiss) e vem do francês grue, “aparelho para erguer fardos”. Em outra acepção, agora do reino animal, “grua” é a fêmea do grou, ave da família dos gruídeos. Os franceses certamente batizaram o guindaste por causa de sua semelhança com a ave pernalta. Mas foi a criatividade do poeta Galvão que transformou a grua mecânica em pássaro urbano. Afinal, quem não conhece a língua francesa dificilmente fará essa associação.

Então a grua, pássaro fêmea, parece multiplicar-se a cada dia nos céus das cidades. E o poeta constata, sobre as gruas do reino mecânico: “elas próprias/ — aves/ pernaltas —/ erguem/ moradas/ de pedra”. Ele faz ainda outra constatação. Ao contrário do que se espera, ao construir tantos ninhos de cimento e aço, essas aves não mudam a sorte de outros seres, aves terrestres, que “habitam/ as junções/ dos viadutos/ entre trapos/ e papelão”.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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O poeta vê a cidade


• José Paulo Paes  • Izacyl Guimarães Ferreira
• Vera Lúcia de Oliveira  • Ruy Proença
• Paulo Ferraz  • Donizete Galvão


              

Jozef Kote- Beyond.the.skyscrapers
Jozef Kote, albanês-estadunidense, Além dos arranha-céus


• José Paulo Paes

REVISITAÇÃO

Cidade, por que me persegues?

Com os dedos sangrando
já não cavei em teu chão
os sete palmos regulamentares
para enterrar meus mortos?
Não ficamos quites desde então?

Por que insistes
em acender toda noite
as luzes de tuas vitrinas
com as mercadorias do sonho
a tão bom preço?

Não é mais tempo de comprar.
Logo será tempo de viajar
para não se sabe onde.
Sabe-se apenas que é preciso ir
de mãos vazias.

Em vão alongas tuas ruas
como nos dias de infância,
com a feérica promessa
de uma aventura a cada esquina.
Já não as tive todas?

Em vão os conhecidos me saúdam
do outro lado do vidro,
desse umbral onde a voz
se detém interdita
entre o que é e o que foi.

Cidade, por que me persegues?
Ainda que eu pegasse
o mesmo velho trem,
ele não me levaria
a ti, que não és mais.

As cidades, sabemos,
são no tempo, não no espaço,
e delas nos perdemos
a cada longo esquecimento
de nós mesmos.

Se já não és e nem eu posso
ser mais em ti, então que ao menos
através do vidro
através do sonho
um menino e sua cidade saibam-se afinal

intemporais, absolutos.


Jozef Kote- Nostalgia
Jozef Kote, Nostalgia


• Izacyl Guimarães Ferreira

DISCURSO URBANO

6

Toda cidade é feita com palavras:
seus nomes, sons que são totalidades.
Ouvi-los ou dizê-los são mensagens
colando-se à lembrança, são cristais
do reconhecimento. Saltam claras
ou sombrias na mente ao evocá-las:
Constantinopla, Nínive, Cartago.
Granada, Gênova, Berlim, Chicago.
As meras sílabas, pronunciadas,
modelam estruturas virtuais.


29

Vi Cartagena, a bela, a ocidental
das índias caribenhas dos piratas,
pensando uma Ouro Preto à beira d'água.
Vi Havana, a marinheira, rasgada
de ferrugem e sal politizados.
E a Barcelona de Gaudí, linguagem
da cor na arquitetura em liberdade.
Em todas elas me senti local,
cativo de seu céu aberto e largo,
um céu que as faz maiores que os traçados.


31

Se tantas vezes foi por mim lembrada,
para a que é minha já me falta a fala,
embora a tenha inteira no sotaque
— aquela entre oceano e Guanabara,
onde do prazo já cumpri metade.
Melhor voltarmos ao Bandeira, ao Carlos,
ao Tom, Noel, Vinicius de Moraes,
ler Cecília na Crônica Trovada,
Rio de um santo e um fundador flechados.
Rio verbete meu e meu comparsa.


Jozef Kote - In thought
Jozef Kote, Pensando


• Vera Lúcia de Oliveira

RUA DE COMÉRCIO

Sou poeta da cidade magra
da cidade que não
caminha
sou dessa planicidade
sou da violência das vidas
poeta da cidade que afunda casas
e pessoas
sou da puta da cidade que só tem
superfície

amanheço todo dia nua e estreita
como uma rua de comércio


Jozef Kote - summer.memories
Jozef Kote, Memórias de verão


• Ruy Proença

MOTOBOY

jovem
saudável
com iniciativa
prestativo
disposto
expedito
bem-humorado
veículo próprio
procura

superior
para lhe
dar ordens
ambíguas
o reprimir
explorar
humilhar
castigar

jovem
e necessitado
(a cidade
não é obstáculo)
pau pra toda obra
faz
tudo

hora extra
trabalho sujo
carrega piano
dá a cara
pra bater


Jozef Kote - Over you
Jozef Kote, Sobre você


• Paulo Ferraz

MOTORISTA - LINHA 478-P

Embora não tenha porte —
nem precisaria, pois quem o
tem? — de autoridade, senta
majestoso no seu trono
de curvim, forrado às vezes
com um capacho de retalhos,
sempre segurando o cetro
decorado com o escudeto
do Corinthians. A senhora
palmeirense entra de joelhos.
No mar, capitão com Deus se
parelha, no ônibus, ele.


Jozef Kote - The ray of light
Jozef Kote, O raio de luz


• Donizete Galvão

PÁSSAROS URBANOS

ave
nenhuma
faz seu
ninho
nas gruas
das construções

elas próprias
— aves
pernaltas —
erguem
moradas
de pedra

as gruas
têm as
plumas
mais
vistosas
da cidade

outras,
incanoras,
habitam
as junções
dos viadutos
entre trapos
e papelão

muitos
pedem
pela extinção
dessa espécie
tão pouco afeita
às gaiolas




poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2022



José Paulo Paes
      • “Revisitação”:
      In Poesia Commpleta
      Companhia das Letras, São Paulo, 2008
Izacyl Guimarães Ferreira
      • “Discurso Urbano”;
      In Discurso Urbano
      Scortecci, São Paulo, 2007
Vera Lúcia de Oliveira
      • “Rua de Comércio”:
      In Geografie d’Ombra/Geografias de Sombra
      Fonèma, Veneza, 1989
Ruy Proença
      • “Motoboy”:
      In Caçambas
      Editora 34, São Paulo, 2015
Paulo Ferraz
      • “Motorista - Linha 478-P”:
      Poema avulso - poesia.​net n. 41 (2003), depois incluído em livro:
      Selo Sebastião Grifo, São Paulo, 2007
Donizete Galvão
      • “Pássaros Urbanos”:
      In O Antipássaro
      Martelo, Goiânia, 2018
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* Manuel Bandeira, in Itinerário de Pasárgada (1957)
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* Imagens: quadros de Jozef Kote (1964-), pintor contemporâneo albanês, residente em Nova York