Número 485 - Ano 20

Salvador, quarta-feira, 20 de abril de 2022

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«Vamos, todos, brincar de cacto / na areia da nossa tristeza.» (Cassiano Ricardo) *

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Astrid Cabral
Astrid Cabral



Amigas e amigos,

A poeta amazonense Astrid Cabral (Manaus, 1936) apareceu nesta página pela primeira vez na edição n. 477, em 2021. Naquela oportunidade, a autora foi destacada em razão do lançamento da coletânea Coração à Solta (Kade, 2021).

Procurei em seguida outros livros da poeta e encontrei De Déu em Déu - Poemas Reunidos (1979-1994) (7 Letras, 1998), volume no qual se baseia a presente edição. A obra reúne os textos de cinco livros da autora: Ponto de Cruz (1979), Torna-Viagem (1981), Visgo da Terra (1986), Lição de Alice 1986) e Rês Desgarrada (1994).

Após selecionar uma série de textos nessa reunião de livros, acabei ficando com uma amostra de seis poemas, todos extraídos de dois dos títulos listados acima: Visgo da Terra e Lição de Alice.

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Comecemos com a leitura de “Busca”, poema no qual a autora se põe a recordar a infância. “Minha infância é hoje/ aquele peixe de prata/ que me escorregou da mão”. O texto seguinte, “Fim da Guerra”, também é feito de rememorações. Agora, são lembranças de meados dos anos 1940, quando um tio retorna da Segunda Grande Guerra, na Europa.

Em “Metamorfose”, uma pequena reflexão sobre personagens que dão nomes às ruas de Manaus. “Onde estais agora/ ilustres senhores?/ Um dia vosso sapato/ pisou este planeta./ Hoje sois rua, nome de/ rua, placa, tabuleta”. Os três poemas citados até aqui foram extraídos de Visgo da Terra, o terceiro livro de Astrid Cabral. Os três outros, a seguir, foram publicados originalmente em Lição de Alice.

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“Ritual”, um poema bem curto, compara o cultivo de plantas domésticas com o exercício de escrever poesia. Esta, na visão da autora, corresponde a plantar “palavras de pedra/ regadas de pranto”. Em “Máscara”, um texto ainda mais breve que o anterior, aparece a velha contradição entre essência e aparência: “Rasgar a máscara/ escancarar a cara/ apesar da escara”. Na máscara, no rosto e na cicatriz, o mesmo eco: cara, cara, cara.

No bem-humorado poema “Filosofia de Bolso”, as palavras brincam com as dificuldades da vida, lançando mão de expressões jocosas como “dar com os burros n’água” e “tirar leite das pedras”. E depois de tanto, tudo acaba na inglória tarefa de “comer capim pela raiz”.

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Astrid Cabral - Nascida em Manaus (1936-), transferiu-se ainda adolescente para o Rio de Janeiro, onde fez o curso de Línguas Neolatinas na UFRJ. Como parte da primeira turma de docentes, Astrid lecionou língua e literatura na Universidade de Brasília (UnB, fundada em 1962), da qual foi afastada em 1965, em consequência do golpe militar. Em 1968, ingressou por concurso no Itamaraty. Aí, serviu como oficial de chancelaria em Brasília, Beirute, Rio e Chicago. Após a anistia, em 1988 Astrid foi reintegrada à UnB.

Astrid Cabral estreou na literatura com o livro de contos Alameda (1963) e daí enfileirou, ao longo dos anos, cerca de vinte títulos, os quais reúnem obras em prosa, poesia e textos para o público infantil. A autora é viúva do poeta goiano Afonso Felix de Sousa, apresentado aqui no boletim n. 337.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Aquele peixe de prata


• Astrid Cabral


              

Lita Cabellut- Coco 43-2011
Lita Cabellut, pintora espanhola, Coco 43 (2011)


BUSCA

Minha infância é hoje
aquele peixe de prata
que me escorregou da mão
como se fosse sabão.
   Mergulho no antigo rio
   atrás do peixe vadio
   — Quem viu? Quem viu?
Minha infância é hoje
aquele papagaio fujão
No ar, sua muda canção.
   Subo nos galhos da goiabeira
   atrás do falaz papagaio
   — Me segura, me segura
   senão eu caio.

      De Visgo da terra (1986)



FIM DA GUERRA

Quando o tio chegou da guerra, nossa!
foi aquela alegria! No cais um povão
esperando o navio de volta da Itália.
Vovó preparou a festança com fervor
ansiedade e muitíssima antecedência.
Teve leitão, peru, dúzias de frango
aluá, cerveja, guaraná, champanha,
músicos de gravata, danças até madrugada.
Vovô estava orgulhoso com a bravura
do filho, o exemplo do dever cumprido
com a pátria amada idolatrada salva!
Gente veio de longe querendo ouvir
o herói contar proezas. (Enfim a verdade
que as cartas censuradas omitiam!)
Mas ele pediu pra não tocar no assunto
e só rompeu o silêncio em meio ao choro
nas rubras trincheiras de seus pesadelos.

      De Visgo da terra (1986)



Lita Cabellut- Impulse 5-2015
Lita Cabellut, Impulso 5 (2015)


METAMORFOSE

Eduardo Ribeiro
José Paranaguá
Monsenhor Coutinho
Costa Azevedo
Lauro Cavalcanti
Major Gabriel
Onde estais agora
ilustres senhores?
Um dia vosso sapato
pisou este planeta.
Hoje sois rua, nome de
rua, placa, tabuleta.

      De Visgo da terra (1986)



RITUAL

Todas as tardes
rego as plantas da casa.
Peço perdão às arvores
pelo papel em que planto
palavras de pedra
regadas de pranto.

      De Lição de Alice (1986)



Lita Cabellut- Color of dew 21
Lita Cabellut, Cor de Orvalho 21


MÁSCARA

Rasgar a máscara
escancarar a cara
apesar da escara.

      De Lição de Alice (1986)



FILOSOFIA DE BOLSO

O mistério é grande
mas a gente vai
e quebra a cabeça.
A água é funda
mas a gente dá
com os burros n’água.
A vida é dura
mas a gente dá murro
em ponta de faca.
A fome é feia
mas a gente tira
leite das pedras.
Tudo pra num triz
num piscar de olhos
vestir pijama de madeira
e ir comer capim pela raiz.

      De Lição de Alice (1986)





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www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2022



Astrid Cabral
      • Todos os poemas:
      in De Déu em Déu - Poemas Reunidos (1979-1994)
      Sete Letras, Rio de Janeiro, 1998
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* Cassiano Ricardo, "O Cacto", in João Torto e a Fábula (1954)
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* Imagens: quadros da pintora espanhola Lita Cabellut (1961-)