Número 488 - Ano 20

Salvador, quarta-feira, 8 de junho de 2022

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«Poesia é sempre assim: / Uma alquimia de fetos, / Um lento porejar / De venenos sob a pele.» (Myriam Fraga) *

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Quatro Letristas
Caetano Veloso, Gilberto Gil, Paulinho da Viola, Milton Nascimento, Nara Leão



Amigas e amigos,

Ao longo dos quase vinte anos deste boletim, já houve duas edições com poemas publicados em livro e depois transformados em canções populares: n. 299 e n. 470. Em relação à música popular, em concordância com gente do ramo, sempre afirmei o entendimento de que o poema pertence a uma arte e a letra de canção a outra, diferente, embora essas duas formas de expressão tenham óbvios traços comuns.

Para essa diferença, o ponto axial está no fato de que o poema conta apenas com suas palavras. Já a canção é formada por duas partes: música (que envolve melodia, arranjo, interpretação vocal) e letra, com a primeira sendo a parte mais importante.

Tanto é assim que se pode tranquilamente gostar de uma canção sem entender uma única palavra de sua letra. Não fosse isso, o artista que canta num idioma só seria capaz de agradar quem domina esse idioma. Mas, na canção — como diria Gilberto Gil em outro contexto —, “quem manda é a deusa Música”. As palavras, por mais poéticas que sejam, não passam de meras coadjuvantes.

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Pois bem, até aqui eu nunca havia organizado uma edição apenas com letras de canções populares. Chegou a hora. Neste número, estão reunidos quatro dos mais destacados compositores da música popular brasileira: Gilberto Gil, Caetano Veloso, Milton Nascimento e Paulinho da Viola. O quarteto tem um ponto em comum: todos nasceram no ano da graça de 1942 e, portanto, estão agora completando 80 anos. Esta edição é, portanto, uma homenagem à turma de 1942 na MPB.

A ordem de entrada deles corresponde à sequência dos aniversários: Gil, 26/06; Caetano, 07/08; Milton Nascimento, 26/10; e Paulinho da Viola, 12/11. Para não deixar a edição como um perfeito clube do Bolinha, a homenagem estende-se a Nara Leão, igualmente nascida em 1942 (19/01). Nara também foi compositora, mas aqui ela aparece como intérprete de uma canção dos dois baianos do grupo, Caetano Veloso e Gilberto Gil. De todos, Nara infelizmente se foi muito cedo, em 1989.

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Embora os textos ao lado não sejam poemas — são letras musicais, e nesta afirmação sigo figuras como o letrista Fernando Brant (1946-2015); o compositor Edu Lobo (1943-); e os poetas Manuel Bandeira (1886-1967) e Antonio Cicero (1945-) —, não resta a menor dúvida de que são construções cheias de expressividade e de inventividade poética.

Passemos, então, às canções. Coerentemente, em cada caso, acima de cada letra incluí a chamada para um clipe de video da canção. Assim, o leitor poderá (re)avaliar as palavras no devido contexto, que reúne letra e música.

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A primeira canção, na seleta de joias da MPB ao lado, é “Domingo no Parque”, de Gilberto Gil. A obra conquistou em 1967 o segundo lugar no III Festival da MPB, da TV Record, competindo com pesos-pesados como “Ponteio”, de Edu Lobo/José Carlos Capinan, primeiro lugar; “Roda Viva”, de Chico Buarque, terceiro lugar; e “Alegria Alegria”, de Caetano Veloso, quarto lugar.

“Domingo no Parque” e a canção de Caetano Veloso são as primeiras manifestações da Tropicália, movimento artístico liderado pelos dois baianos. A letra conta uma história trágica, que se passa em Salvador, envolvendo o feirante José, o operário e capoeirista João e a moça Juliana, que mexe com o coração dos dois.

Em meu ponto de vista, esta é uma das canções que conquistam os mais altos níveis de combinação entre o andamento da história, na letra, e a melodia. Uma pequena e vibrante ópera. É antológico, por exemplo, o crescendo de sentimentos desencontrados que tomam conta de José ao surpreender Juliana na roda-gigante ao lado de seu amigo João. Observe-se, especialmente, o papel cênico da rosa e do sorvete nas mãos de Juliana.

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O foco, agora, passa para a palavra e a voz de Caetano Veloso. Da extensa obra do compositor, pincei a canção “Terra”, lançada originalmente no álbum Muito, de 1978. A inspiração inicial da letra está explícita nos primeiros versos. Preso pela ditadura militar, após a decretação do AI-5 em dezembro de 1968, Caetano, dentro de uma cela, viu fotos de nosso planeta tiradas de um foguete espacial.

A partir dessa lembrança, o compositor tece uma declaração de amor a todos os significados da palavra “terra”. Em primeiro lugar, a Terra, o planeta exibido nas fotografias. Depois, o solo, o chão: “Terra para o pé, firmeza / Terra para a mão, carícia”. Por fim, o lugar de origem — a terra natal.

No andamento da melodia, todas essas terras se somam e se confundem no coração do autor, que revive a tristeza e a emoção de ver, como um prisioneiro da ditadura, o rosto da Mãe Terra, “coberta de nuvens” e fotografada do espaço.

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A próxima canção, “Morro Velho”, gravada em 1967, vem de Minas Gerais e representa uma das poucas composições nas quais Milton Nascimento assina letra e música. (Outra, da mesma época, é “Canção do Sal”.) O texto conta a história de dois meninos do interior, um branco e um preto, que brincam juntos numa fazenda. Pequenos amigos, correm atrás de passarinho, atravessam a plantação, nadam no riacho.

Mas a infância um dia termina. O menino branco, filho dos donos da fazenda, vai para a cidade estudar. O preto, filho de peão, permanece na terra e vai fazer os mesmos trabalhos que seu pai. O tempo passa, o moço branco retorna já adulto e passa a ser o novo patrão. “E seu velho camarada já não brinca, mas trabalha”.

“Morro Velho” apresenta um retrato sensível, verdadeiro, pungente do Brasil patriarcal e ainda ancorado nos padrões escravistas. Uma letra magnífica. Milton, no entanto, desde o início da carreira escolheu dedicar-se apenas à criação de melodias, transferindo a parceiros o encargo de vesti-las com palavras.

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A canção de Paulinho da Viola, “Dança da Solidão”, completa agora exato meio século de gravada. Saiu pela primeira vez no álbum homônimo, A Dança da Solidão (1972). Trata-se de um samba composto com precioso lirismo e muita tristeza.

A solidão, como diz o letrista, essa “palavra cavada no coração”, “é lava que cobre tudo” — e todos dançamos “no compasso da desilusão”. As histórias de várias personagens (Camélia, Joana, Maria), todas desiludidas, são desfiadas na letra como para comprovar essa desolação.

O único consolo, segundo a letra, é buscar uma mítica “fonte de água pura”, cujo líquido prodigioso é capaz de eliminar todas as tristezas. Qual será essa água? Talvez ela esteja nas canções de Paulinho da Viola e de seus companheiros e companheiras da MPB.

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Vem agora, por fim, “Lindoneia”, a canção de Caetano Veloso e Gilberto Gil interpretada por Nara Leão. Identificada como uma das musas e principais intérpretes da bossa nova, Nara também participou de outros movimentos musicais. Esta canção, gravada no álbum Tropicália, de 1967, é um exemplo disso.

Marcada por um andamento abolerado, “Lindoneia” apresenta uma mulher complexa num ambiente que é, ao mesmo tempo, violento (“Cachorros mortos nas ruas/ Policiais vigiando/ O sol batendo nas frutas/ Sangrando”) e irônico (“Lindoneia desaparecida/ Na preguiça, no progresso/ Nas paradas de sucesso”). Em suma, nota-se aí o mesmo espírito tropicalista que afirma, em outra canção do mesmo álbum: “Tudo é perigoso/ Tudo é divino-maravilhoso”.

Consta que a canção “Lindoneia” foi composta sob a inspiração do quadro “A Bela Lindoneia” ou “A Gioconda do Subúrbio”, pintado em 1966 pelo artista carioca Rubens Gerchman (1942-2008). Na própria tela, o pintor indica: “Um amor impossível. A bela Lindoneia de 18 anos morreu instantaneamente”. Supõe-se, portanto, que Lindoneia pode ter sido colhida pelo pintor no noticiário policial. Talvez um caso de feminicídio. Aliás, Gerchman — observei agora — foi outro artista da safra de 1942.

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Aí estão cinco canções bem antigas, compostas por autores que até hoje ainda criam novidades envolventes. Um enorme muito obrigado a essa turma de 80 anos, que nos ofereceu, durante décadas, as letras e notas musicais de sua generosa “fonte de água pura”.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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ERRATA

No boletim passado (Florisvaldo Mattos, n. 487), o oitavo verso do poema “Água Preta” (“com palavras escritas nas paredes,”) termina com uma vírgula, e não com um ponto. A correção já foi feita na versão do boletim depositada no site Alguma Poesia. Agradeço a Ruy Proença, poeta paulistano, por ter apontado o problema.


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Uma fonte de água pura


• Gilberto Gil  • Caetano Veloso
• Milton Nascimento
• Paulinho da Viola  • Nara Leão


              




Gilberto Gil: “Domingo no Parque” (Gilberto Gil)


• Gilberto Gil

DOMINGO NO PARQUE
(1967)

O rei da brincadeira
Ê, José!
O rei da confusão
Ê, João!
Um trabalhava na feira
Ê, José!
Outro na construção
Ê, João!

A semana passada
No fim da semana
João resolveu não brigar
No domingo de tarde
Saiu apressado
E não foi pra Ribeira jogar
Capoeira!
Não foi pra lá
Pra Ribeira, foi namorar

O José como sempre
No fim da semana
Guardou a barraca e sumiu
Foi fazer no domingo
Um passeio no parque
Lá perto da Boca do Rio

Foi no parque
Que ele avistou
Juliana
Foi que ele viu
Foi que ele viu Juliana na roda com João
Uma rosa e um sorvete na mão
Juliana seu sonho, uma ilusão
Juliana e o amigo João

O espinho da rosa feriu Zé
(Feriu Zé!) (Feriu Zé!)
E o sorvete gelou seu coração
O sorvete e a rosa
Ô, José!
A rosa e o sorvete
Ô, José!
Foi dançando no peito
Ô, José!
Do José brincalhão
Ô, José!

O sorvete e a rosa
Ô, José!
A rosa e o sorvete
Ô, José!
Oi girando na mente
Ô, José!
Do José brincalhão
Ô, José!

Juliana girando
Oi girando!
Oi, na roda gigante
Oi, girando!
Oi, na roda gigante
Oi, girando!
O amigo João (João)

O sorvete é morango
É vermelho!
Oi, girando e a rosa
É vermelha!
Oi girando, girando
É vermelha!
Oi, girando, girando

Olha a faca! (Olha a faca!)
Olha o sangue na mão
Ê, José!
Juliana no chão
Ê, José!
Outro corpo caído
Ê, José!
Seu amigo João
Ê, José!

Amanhã não tem feira
Ê, José!
Não tem mais construção
Ê, João!
Não tem mais brincadeira
Ê, José!
Não tem mais confusão
Ê, João!




Caetano Veloso: “Terra” (Caetano Veloso)


• Caetano Veloso

TERRA
(1978)

Quando eu me encontrava preso
Na cela de uma cadeia
Foi que eu vi pela primeira vez
As tais fotografias
Em que apareces inteira
Porém lá não estavas nua
E sim coberta de nuvens

Terra, terra
Por mais distante
o errante navegante
quem jamais te esqueceria?

Ninguém supõe a morena
Dentro da estrela azulada
Na vertigem do cinema
Mando um abraço pra ti
Pequenina
Como se eu fosse o saudoso poeta
E fosses a Paraíba

Terra, terra
Por mais distante
o errante navegante
quem jamais te esqueceria?

Eu estou apaixonado
Por uma menina, terra
Signo de elemento terra
Do mar se diz: terra à vista
Terra para o pé, firmeza
Terra para a mão, carícia
Outros astros lhe são guia

Terra, terra
Por mais distante
o errante navegante
quem jamais te esqueceria?

Eu sou um leão de fogo
Sem ti me consumiria
A mim mesmo eternamente
E de nada valeria
Acontecer de eu ser gente
E gente é outra alegria
Diferente das estrelas

Terra, terra
Por mais distante
O errante navegante
Quem jamais te esqueceria?

De onde nem tempo, nem espaço
Que a força mande coragem
Pra gente te dar carinho
Durante toda a viagem
Que realizas no nada
Através do qual carregas
O nome da tua carne

Terra, terra
Por mais distante
o errante navegante
quem jamais te esqueceria?

Terra, terra
Por mais distante
o errante navegante
quem jamais te esqueceria?

Nas sacadas dos sobrados
da velha São Salvador
há lembranças de donzelas
do tempo do imperador
Tudo, tudo na Bahia
faz a gente querer bem
A Bahia tem um jeito

Terra, terra
Por mais distante
o errante navegante
quem jamais te esqueceria?




Milton Nascimento: “Morro Velho” (Milton Nascimento)


• Milton Nascimento

MORRO VELHO
(1967)

No sertão da minha terra,
fazenda é o camarada que ao chão se deu
Fez a obrigação com força,
parece até que tudo aquilo ali é seu.
Só poder sentar no morro
e ver tudo verdinho, lindo a crescer
Orgulhoso camarada, de viola em vez de enxada.

Filho do branco e do preto
correndo pela estrada atrás de passarinho
Pela plantação adentro,
crescendo os dois meninos, sempre pequeninos
Peixe bom dá no riacho
de água tão limpinha, dá pro fundo ver
Orgulhoso camarada conta histórias pra moçada.

Filho do senhor vai embora,
tempo de estudos na cidade grande
Parte, tem os olhos tristes,
deixando o companheiro na estação distante
Não esqueça, amigo, eu vou voltar,
some longe o trenzinho ao deus-dará.

Quando volta já é outro,
trouxe até sinhá mocinha pra apresentar
Linda como a luz da lua
que em lugar nenhum rebrilha como lá
Já tem nome de doutor,
e agora na fazenda é quem vai mandar
E seu velho camarada já não brinca, mas trabalha.




Paulinho da Viola: “Dança da Solidão” (Paulinho da Viola)


• Paulinho da Viola

DANÇA DA SOLIDÃO
(1972)

Solidão é lava que cobre tudo
Amargura em minha boca
Sorri seus dentes de chumbo
Solidão palavra cavada no coração
Resignado e mudo
No compasso da desilusão

Desilusão, desilusão
Danço eu, dança você
Na dança da solidão

Camélia ficou viúva,
Joana se apaixonou
Maria tentou a morte,
por causa do seu amor
Meu pai sempre me dizia
meu filho tome cuidado
Quando eu penso no futuro,
não esqueço o meu passado
Desilusão, desilusão
Danço eu, dança você
Na dança da solidão

Quando vem a madrugada,
meu pensamento vagueia
Corro os dedos na viola,
contemplando a lua cheia

Apesar de tudo, existe
uma fonte de água pura
Quem beber daquela água
não terá mais amargura




Nara Leão: “Lindoneia” (Caetano Veloso/Gilberto Gil)


• Caetano Veloso / Gilberto Gil

LINDONEIA
(1967)

Na frente do espelho
Sem que ninguém a visse
Miss
Linda, feia
Lindoneia desaparecida

Despedaçados
Atropelados
Cachorros mortos nas ruas
Policiais vigiando
O sol batendo nas frutas
Sangrando
Oh, meu amor
A solidão vai me matar de dor

Lindoneia, cor parda
Fruta na feira
Lindoneia solteira
Lindoneia, domingo
Segunda-feira

Lindoneia desaparecida
Na igreja, no andor
Lindoneia desaparecida
Na preguiça, no progresso
Lindoneia desaparecida
Nas paradas de sucesso
Ah, meu amor
A solidão vai me matar de dor

No avesso do espelho
Mas desaparecida
Ela aparece na fotografia
Do outro lado da vida
Despedaçados, atropelados
Cachorros mortos nas ruas
Policiais vigiando
O sol batendo nas frutas
Sangrando

Oh, meu amor
A solidão vai me matar de dor
Vai me matar
Vai me matar de dor


Rubens Gerchman - Lindoneia-1966
Rubens Gerchman, pintor carioca, A Bela Lindoneia (1966)






poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2022



Gilberto Gil
      • “Domingo no Parque”:
      do álbum Gilberto Gil (1968)
Caetano Veloso
      • “Terra”:
      do álbum Muito - Dentro da Estrela Azulada (1978)
Milton Nascimento
      • “Morro Velho”;
      do álbum Milton Nascimento (1967)
Paulinho da Viola
      • “Dança da Solidão”:
      do álbum A Dança da Solidão (1972)
Caetano Veloso/Gilberto Gil
      • “Lindoneia”:
      do álbum Tropicália (1967)
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* Myriam Fraga, "Arte Poética", in Femina (1996)
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* Quadro "Lindoneia": pintor carioca Rubens Gerchman (1942-2008)