Amigas e amigos,
Ao longo dos quase vinte anos deste boletim, já houve duas edições com poemas publicados em livro e depois transformados em canções populares:
n. 299
e n. 470. Em relação à música popular, em concordância
com gente do ramo, sempre afirmei o entendimento de que o poema pertence a uma arte e a letra de canção a outra, diferente, embora essas duas
formas de expressão tenham óbvios traços comuns.
Para essa diferença, o ponto axial está no fato de que o poema conta apenas com suas palavras. Já a canção é formada por
duas partes: música (que envolve melodia, arranjo, interpretação vocal) e letra, com a primeira sendo a parte mais importante.
Tanto é assim que se pode tranquilamente gostar de uma canção sem entender uma única palavra de sua letra. Não fosse isso, o artista que
canta num idioma só seria capaz de agradar quem domina esse idioma. Mas, na canção — como diria Gilberto Gil em outro contexto —, “quem manda
é a deusa Música”. As palavras, por mais poéticas que sejam, não passam de meras coadjuvantes.
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Pois bem, até aqui eu nunca havia organizado uma edição apenas com letras de canções populares. Chegou a hora. Neste número, estão reunidos
quatro dos mais destacados compositores da música popular brasileira: Gilberto Gil, Caetano Veloso, Milton Nascimento
e Paulinho da Viola. O quarteto tem um ponto em comum: todos nasceram no ano da graça de 1942 e, portanto, estão agora completando
80 anos. Esta edição é, portanto, uma homenagem à turma de 1942 na MPB.
A ordem de entrada deles corresponde à sequência dos aniversários: Gil, 26/06; Caetano, 07/08; Milton Nascimento, 26/10; e Paulinho da Viola,
12/11. Para não deixar a edição como um perfeito clube do Bolinha, a homenagem estende-se a Nara Leão, igualmente nascida em 1942 (19/01).
Nara também foi compositora, mas aqui ela aparece como intérprete de uma canção dos dois baianos do grupo, Caetano Veloso e Gilberto Gil.
De todos, Nara infelizmente se foi muito cedo, em 1989.
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Embora os textos ao lado não sejam poemas — são letras musicais, e nesta afirmação sigo figuras como o letrista Fernando Brant
(1946-2015); o compositor Edu Lobo (1943-); e os poetas Manuel Bandeira (1886-1967) e Antonio Cicero (1945-) —, não resta a menor dúvida
de que são construções cheias de expressividade e de inventividade poética.
Passemos, então, às canções. Coerentemente, em cada caso, acima de cada letra incluí
a chamada para um clipe de video da canção. Assim, o leitor poderá (re)avaliar
as palavras no devido contexto, que reúne letra e música.
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A primeira canção, na seleta de joias da MPB ao lado, é “Domingo no Parque”, de Gilberto Gil. A obra conquistou em 1967 o segundo lugar
no III Festival da MPB, da TV Record, competindo com pesos-pesados como “Ponteio”, de Edu Lobo/José Carlos Capinan, primeiro lugar; “Roda Viva”, de
Chico Buarque, terceiro lugar; e “Alegria Alegria”, de Caetano Veloso, quarto lugar.
“Domingo no Parque” e a canção de Caetano Veloso são as primeiras manifestações da Tropicália, movimento artístico liderado pelos dois
baianos. A letra conta uma história trágica, que se passa em Salvador, envolvendo o feirante José, o operário e capoeirista João e
a moça Juliana, que mexe com o coração dos dois.
Em meu ponto de vista, esta é uma das canções que conquistam os mais altos níveis de combinação entre o andamento da história, na letra,
e a melodia. Uma pequena e vibrante ópera. É antológico, por exemplo, o crescendo de sentimentos desencontrados que tomam conta de José ao surpreender
Juliana na roda-gigante ao lado de seu amigo João. Observe-se, especialmente, o papel cênico da rosa e do sorvete nas mãos de Juliana.
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O foco, agora, passa para a palavra e a voz de Caetano Veloso. Da extensa obra do compositor, pincei a canção “Terra”, lançada originalmente
no álbum Muito, de 1978. A inspiração inicial da letra está explícita nos primeiros versos. Preso pela ditadura militar, após a decretação
do AI-5 em dezembro de 1968, Caetano, dentro de uma cela, viu fotos de nosso planeta tiradas de um foguete espacial.
A partir dessa lembrança, o compositor tece uma declaração de amor a todos os significados da palavra “terra”. Em primeiro lugar, a Terra,
o planeta exibido nas fotografias. Depois, o solo, o chão: “Terra para o pé, firmeza / Terra para a mão, carícia”. Por fim, o lugar de
origem — a terra natal.
No andamento da melodia, todas essas terras se somam e se confundem no coração do autor, que revive a tristeza e a emoção de ver, como um
prisioneiro da ditadura, o rosto da Mãe Terra, “coberta de nuvens” e fotografada do espaço.
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A próxima canção, “Morro Velho”, gravada em 1967, vem de Minas Gerais e representa uma das poucas composições nas quais Milton Nascimento
assina letra e música. (Outra, da mesma época, é “Canção do Sal”.) O texto conta a história de dois meninos do interior, um branco e um preto,
que brincam juntos numa fazenda. Pequenos amigos, correm atrás de passarinho, atravessam a plantação, nadam no riacho.
Mas a infância um dia termina. O menino branco, filho dos donos da fazenda, vai para a cidade estudar. O preto, filho de peão, permanece
na terra e vai fazer os mesmos trabalhos que seu pai. O tempo passa, o moço branco retorna já adulto e passa a ser o novo patrão.
“E seu velho camarada já não brinca, mas trabalha”.
“Morro Velho” apresenta um retrato sensível, verdadeiro, pungente do Brasil patriarcal e ainda ancorado nos padrões escravistas.
Uma letra magnífica. Milton, no entanto, desde o início da carreira escolheu dedicar-se apenas à criação de melodias, transferindo
a parceiros o encargo de vesti-las com palavras.
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A canção de Paulinho da Viola, “Dança da Solidão”, completa agora exato meio século de gravada. Saiu pela primeira vez no álbum homônimo,
A Dança da Solidão (1972). Trata-se de um samba composto com precioso lirismo e muita tristeza.
A solidão, como diz o letrista, essa “palavra cavada no coração”, “é lava que cobre tudo” — e todos dançamos “no compasso da desilusão”.
As histórias de várias personagens (Camélia, Joana, Maria), todas desiludidas, são desfiadas na letra como para comprovar essa desolação.
O único consolo, segundo a letra, é buscar uma mítica “fonte de água pura”, cujo líquido prodigioso é capaz de eliminar todas as tristezas.
Qual será essa água? Talvez ela esteja nas canções de Paulinho da Viola e de seus companheiros e companheiras da MPB.
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Vem agora, por fim, “Lindoneia”, a canção de Caetano Veloso e Gilberto Gil interpretada por Nara Leão. Identificada como uma das
musas e principais intérpretes da bossa nova, Nara também participou de outros movimentos musicais. Esta canção, gravada no álbum
Tropicália, de 1967, é um exemplo disso.
Marcada por um andamento abolerado, “Lindoneia” apresenta uma mulher complexa num ambiente que é, ao mesmo tempo,
violento (“Cachorros mortos nas ruas/ Policiais vigiando/ O sol batendo nas frutas/ Sangrando”) e irônico (“Lindoneia desaparecida/
Na preguiça, no progresso/ Nas paradas de sucesso”). Em suma, nota-se aí o mesmo espírito tropicalista que afirma, em outra canção
do mesmo álbum: “Tudo é perigoso/ Tudo é divino-maravilhoso”.
Consta que a canção “Lindoneia” foi composta sob a inspiração do quadro “A Bela Lindoneia” ou “A Gioconda do Subúrbio”,
pintado em 1966 pelo artista carioca Rubens Gerchman (1942-2008). Na própria tela, o pintor indica: “Um amor impossível.
A bela Lindoneia de 18 anos morreu instantaneamente”. Supõe-se, portanto, que Lindoneia pode ter sido colhida
pelo pintor no noticiário policial. Talvez um caso de feminicídio. Aliás, Gerchman — observei agora — foi outro
artista da safra de 1942.
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Aí estão cinco canções bem antigas, compostas por autores que até hoje ainda criam novidades envolventes. Um enorme muito obrigado
a essa turma de 80 anos, que nos ofereceu, durante décadas, as letras e notas musicais de sua generosa “fonte de água pura”.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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ERRATA
No boletim passado (Florisvaldo Mattos, n. 487),
o oitavo verso do poema “Água Preta” (“com palavras escritas nas paredes,”) termina com uma vírgula, e não com um ponto.
A correção já foi feita na versão do boletim depositada no site Alguma Poesia. Agradeço a Ruy Proença, poeta paulistano,
por ter apontado o problema.
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