Número 489 - Ano 19

Salvador, quarta-feira, 22 de junho de 2022

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«Nasceram-me gaivotas nos sentidos.» (Affonso Manta) *

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Maya Angelou
Maya Angelou



Amigas e amigos,

Neste ano a Casa da Moeda dos Estados Unidos põe em circulação novas moedas de 25 centavos de dólar, entre as quais uma que homenageia a poeta Maya Angelou (1928-2014). Trata-se de um fato histórico: Angelou é a primeira mulher negra a receber tal honraria.

Maya Angelou, pseudônimo de Marguerite Annie Jonhson, nasceu em St. Louis, no estado do Missouri. Foi escritora, dançarina, cantora, atriz, autora teatral, professora e ativista dos direitos civis. Sua estreia na literatura ocorreu em 1969, com a autobiografia I Know Why The Caged Bird Sings (Eu Sei Por Que o Pássaro Canta na Gaiola), que conta sua vida até os 17 anos.

Com 8 anos de idade, ela foi estuprada pelo namorado de sua mãe. Denunciou o abuso à família. O homem foi julgado, mas condenado a apenas um dia de prisão. Dias depois, o agressor foi morto por espancamento. Suspeita-se que os autores do homicídio seriam tios da vítima.

O estupro e a morte do agressor traumatizaram a menina, que se manteve muda durante cerca de quatro anos. Voltou a falar aos 12 anos, por influência de uma professora negra, Sra. Bertha Flowers, que despertou nela o gosto pela leitura e pela poesia. Aos 14, Maya mudou-se para a Califórnia, onde fez o ensino médio e ganhou uma bolsa para estudar dança e teatro.

Aos 16 anos, foi a primeira mulher negra a conduzir bondes em San Francisco. Com 17, tornou-se mãe de Guy Johnson, seu único filho. Envolveu-se em várias outras atividades: dançarina, cozinheira em lanchonetes e restaurantes. Foi até funcionária de uma oficina mecânica. Mas afinal sua carreira se voltou para o palco. Percorreu a Europa cantando e atuando em peças teatrais. Nos anos 60, começou a escrever sua autobiografia.

Com uma vida tão cheia de peripécias, Maya Angelou publicou dezenas de livros, nas áreas de poesia, autobiografia (sete títulos), literatura infantil, teatro, cinema e TV, e até culinária. Sua Poesia Completa e alguns volumes autobiográficos estão disponíveis em português.

Maya Angelou
Moeda de 25 centavos
de dólar com homenagem a Maya Angelou

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Para a microantologia deste boletim, escolhi três poemas de Maya Angelou. O primeiro deles é exatamente o texto mais conhecido da escritora: “Still I Rise”, aqui traduzido por “Ainda Assim, Eu Me Levanto”, frase que também usei como título deste boletim.

Há na internet várias versões desse poema. Escolhi uma do tradutor Mauro Catopodis. O texto em português consegue manter alguns recursos que me parecem fundamentais na poesia de Angelou, como as rimas e a oralidade do texto. Veja-se, ao lado, a própria Maya Angelou lendo seu poema. É fácil perceber que o texto pressupõe certa leitura teatral. A versão em português também é mostrada aqui na leitura da jornalista e apresentadora de TV fluminense Luciana Barreto.

Sim, os poemas de Maya Angelou têm muito a ver com a música, a fala, o teatro. Os versos de abertura são uma prova disso: “Você pode me riscar da História/ Com mentiras lançadas ao ar./ Pode me jogar contra o chão de terra,/ Mas ainda assim, como a poeira, eu vou me levantar”. Este poema representa um símbolo da resistência do negro americano, que enfrenta o preconceito, as leis racistas e todas as adversidades.

O tradutor lança mão de licenças poéticas bastante aceitáveis. Na segunda estrofe, o texto original diz algo como “Porque eu caminho como quem tem poços de petróleo/ jorrando na sala de jantar” (tradução minha). Com isso, a autora parece referir-se à autoestima do negro militante, que se mantém de pé e convoca seus irmãos a também se levantar.

Em sua tradução, Catopodis, talvez por causa da rima, troca os poços de petróleo por “riquezas dignas do grego Midas”. A troca talvez se deva ao fato de que, para brasileiros, poços de petróleo não são propriedades particulares, como nos Estados Unidos. Então, a referência ao mitológico rei Midas ficou perfeita. Outro momento forte: “Da favela, da humilhação imposta pela cor/ Eu me levanto/ De um passado enraizado na dor/ Eu me levanto”.

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Os outros dois poemas de Maya Angelou foram extraídos do volume Poesia Completa, publicado em 2020 pela editora Astral Cultural, de Bauru-SP, com tradução da poeta paulistana Lubi Prates. O primeiro texto é “Trabalho de Mulher”. Nele o sujeito lírico é uma dona de casa pobre, da área rural, mãe de filhos, que lista toda a infinidade de tarefas do seu dia a dia.

Desse rol de trabalhos fazem parte cuidar de crianças, remendar roupas, esfregar o chão, comprar e preparar comida, passar roupa e ainda cortar cana e colher algodão. Não à toa, essa mulher conclui que só tem de seu a observação de elementos da natureza, como o sol, a chuva e a luz das estrelas.

O último poema, “O Pássaro na Gaiola” (“Caged Bird”), é uma versão poética do que Maya Angelou sugere no título de seu primeiro livro autobiográfico, Eu Sei Por Que o Pássaro Canta na Gaiola. A resposta está nos últimos versos: “o pássaro engaiolado/ canta por liberdade”.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Ainda assim, eu me levanto


• Maya Angelou


              




A jornalista Luciana Barreto lê “Ainda Assim, Eu Me Levanto”


AINDA ASSIM, EU ME LEVANTO

Você pode me riscar da História
Com mentiras lançadas ao ar.
Pode me jogar contra o chão de terra,
Mas ainda assim, como a poeira, eu vou me levantar.

Minha presença o incomoda?
Por que meu brilho o intimida?
Porque eu caminho como quem possui
Riquezas dignas do grego Midas.

Como a lua e como o sol no céu,
Com a certeza da onda no mar,
Como a esperança emergindo na desgraça,
Assim eu vou me levantar.

Você não queria me ver quebrada?
Cabeça curvada e olhos para o chão?
Ombros caídos como as lágrimas,
Minh’alma enfraquecida pela solidão?

Meu orgulho o ofende?
Tenho certeza que sim
Porque eu rio como quem possui
Ouros escondidos em mim.

Pode me atirar palavras afiadas,
Dilacerar-me com seu olhar,
Você pode me matar em nome do ódio,
Mas ainda assim, como o ar, eu vou me levantar.

Minha sensualidade incomoda?
Será que você se pergunta
Por que eu danço como se tivesse
Um diamante onde as coxas se juntam?

Da favela, da humilhação imposta pela cor
Eu me levanto
De um passado enraizado na dor
Eu me levanto
Sou um oceano negro, profundo na fé,
Crescendo e expandindo-se como a maré.

Deixando para trás noites de terror e atrocidade
Eu me levanto
Em direção a um novo dia de intensa claridade
Eu me levanto
Trazendo comigo o dom de meus antepassados,
Eu carrego o sonho e a esperança do homem escravizado.
E assim, eu me levanto
Eu me levanto
Eu me levanto.

      Tradução: Mauro Catopodis




Maya Angelou recita seu poema “Still I Rise”


STILL I RISE

You may write me down in history
With your bitter, twisted lies,
You may trod me in the very dirt
But still, like dust, I’ll rise.

Does my sassiness upset you?
Why are you beset with gloom?
‘Cause I walk like I’ve got oil wells
Pumping in my living room.

Just like moons and like suns,
With the certainty of tides,
Just like hopes springing high,
Still I’ll rise.

Did you want to see me broken?
Bowed head and lowered eyes?
Shoulders falling down like teardrops,
Weakened by my soulful cries?

Does my haughtiness offend you?
Don’t you take it awful hard
‘Cause I laugh like I’ve got gold mines
Diggin’ in my own backyard.

You may shoot me with your words,
You may cut me with your eyes,
You may kill me with your hatefulness,
But still, like air, I’ll rise.

Does my sexiness upset you?
Does it come as a surprise
That I dance like I’ve got diamonds
At the meeting of my thighs?

Out of the huts of history’s shame
I rise
Up from a past that’s rooted in pain
I rise
I’m a black ocean, leaping and wide,
Welling and swelling I bear in the tide.

Leaving behind nights of terror and fear
I rise
Into a daybreak that’s wondrously clear
I rise
Bringing the gits that my ancestors gave,
I am the dream and the hope of the slave.
I rise
I rise
I rise.



Scott Burdick - Andrea portrait- study-2008
Scott Burdick, pintor americano, Retrato de Andrea - estudo (2008)


TRABALHO DE MULHER

Eu tenho crianças para cuidar
As roupas para remendar
O chão para esfregar
A comida para comprar
Depois, o frango para fritar
O bebê para secar
Eu tenho as visitas para alimentar
O jardim para aparar
Eu tenho camisetas para passar
O bebê para vestir
A cana para cortar
Eu tenho que limpar essa cabana
Depois, cuidar dos doentes
E colher o algodão.

Brilhe sobre mim, luz do sol
Chova sobre mim, chuva
Caiam suavemente, gotas de orvalho
E refresquem minha testa novamente.

Tempestade, me sopre daqui
Com seus ventos violentos
Me deixe flutuar através do céu
Até que eu possa descansar novamente.

Caiam gentilmente, flocos de neve
Me cubram de beijos
Brancos e gelados e
Me deixem descansar esta noite.

Sol, chuva, céu turvo
Montanha, oceanos, folhas e pedras
Luz das estrelas, brilho da lua
Vocês são tudo o que posso chamar de meu.

      Tradução: Lubi Prates



WOMAN WORK

I’ve got the children to tend
The clothes to mend
The floor to mop
The food to shop
Then the chicken to fry
The baby to dry
I got company to feed
The garden to weed
I’ve got shirts to press
The tots to dress
The can to be cut
I gotta clean up this hut
Then see about the sick
And the cotton to pick.

Shine on me, sunshine
Rain on me, rain
Fall softly, dewdrops
And cool my brow again.

Storm, blow me from here
With your fiercest wind
Let me float across the sky
‘Til I can rest again.

Fall gently, snowflakes
Cover me with white
Cold icy kisses and
Let me rest tonight.

Sun, rain, curving sky
Mountain, oceans, leaf and stone
Star shine, moon glow
You’re all that I can call my own.



Scott Burdick - Latissa portrait-2004
Scott Burdick, Retrato de Latissa (2004)


O PÁSSARO NA GAIOLA

Um pássaro livre salta
nas costas do vento
e flutua com a corrente
até onde ela acaba
e mergulha suas asas
nos raios alaranjados
do sol e ousa tomar conta do céu.

Mas um pássaro que observa
tudo de sua gaiola apertada
raramente consegue ver através
de suas barras de raiva
suas asas estão cortadas e
suas patas estão amarradas
então ele abre sua garganta e canta.

O pássaro engaiolado canta
com um trinado amedrontado
sobre coisas desconhecidas
mas ainda desejadas
e sua melodia é ouvida
nas montanhas distantes
pois o pássaro engaiolado
canta por liberdade.

O pássaro livre pensa em outras brisas
e nos ventos leves que brotam através dos sussurros das árvores
e nos vermes gordos que esperam por ele sobre o gramado
e ele nomeia o céu sua propriedade.

Mas o pássaro engaiolado se encontra no túmulo dos sonhos
sua sombra berra em um grito de pesadelo
suas asas estão cortadas e seus pés estão amarrados
então, ele abre sua garganta e canta.

O pássaro engaiolado canta
com um trinado amedrontado
sobre coisas desconhecidas
mas desejadas
e sua melodia é ouvida
nas montanhas distantes
pois o pássaro engaiolado
canta por liberdade.

      Tradução: Lubi Prates



CAGED BIRD

The free bird leaps
on the back of the wind
and floats downstream
till the current ends
and dips his wings
in the orange sun rays
and dares to claim the sky.

But a bird that stalks
down his narrow cage
can seldom see through
his bars of rage
his wings are clipped and
his feet are tied
so he opens his throat to sing.

The caged bird sings
with fearful trill
of the things unknown
but longed for still
and his tune is heard
on the distant hill for the caged bird
sings of freedom

The free bird thinks of another breeze
and the trade winds soft through the sighing trees
and the fat worms waiting on a dawn-bright lawn
and he names the sky his own.

But a caged bird stands on the grave of dreams
his shadow shouts on a nightmare scream
his wings are clipped and his feet are tied
so he opens his throat to sing

The caged bird sings
with a fearful trill
of things unknown
but longed for still
and his tune is heard
on the distant hill
for the caged bird
sings of freedom.




poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2021



Maya Angelou
      • “Ainda Assim, Eu Me Levanto”:
      Trad. de Mauro Catopodis
      in blog Estante Educativa
      • “Trabalho de Mulher”; “Pássaro na Gaiola”:
      in Poesia Completa
      Trad. de Lubi Prates
      Astral Cultural, Bauru-SP, 2020
      • Todos os poemas no original, em inglês:
      in The Complete Collected Poems of Maya Angelou
      Random House, New York, 1994
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* Affonso Manta, "Retorno", in Antologia Poética (2013)
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* Imagens: obras de Scott Burdick (1967-), pintor norte-americano.