Número 491 - Ano 20

Salvador, quarta-feira, 20 de julho de 2022

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«As palavras fazem seus ninhos / e põem seus ovos de fogo / nas feridas abertas do coração.» (Francisco Carvalho) *

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Cyro de Mattos
Cyro de Mattos



Amigas e amigos,

O autor Cyro de Mattos (Itabuna-BA, 1939) é desses que produzem como quem absolutamente não faz outra coisa, senão escrever. É poeta, cronista, ensaísta e ficcionista para adultos e crianças. Ao lado de dezenas de títulos em português, coleciona publicações de seus livros em traduções para outros idiomas, como francês, italiano, inglês e espanhol.

Especificamente no campo da poesia, Cyro de Mattos publicou em dezembro de 2020 uma reunião de seus trabalhos, chamada Canto Até Hoje. Depois disso, em pouco mais de um ano, o indormido autor já enfileirou oito novos títulos: um de ensaio, um de crônicas, uma edição de poemas bilíngues (português-espanhol) e cinco de literatura infantil.

A presente edição do boletim baseia-se nos poemas reunidos em Canto Até Hoje. O volume (sintam o peso: 800 páginas!), incorpora 12 livros anteriormente publicados, mais cinco títulos inéditos, além de extenso rol de poemas traduzidos para outros idiomas.

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Na microantologia ao lado selecionei cinco textos no vasto material poético de Cyro de Mattos. Extraí um poema de Cancioneiro do Cacau (2002) e todos os outros de Nesses Rumores e Mares, título incluído entre os inéditos que fazem parte de Canto Até Hoje.

Vamos à leitura dos poemas.

O primeiro é “País de Sosígenes Costa”, uma homenagem ao histórico bardo da região cacaueira baiana. Sosígenes Costa (1901-1968), poeta de verso raro, riquíssimo em cores e sonoridades, é o autor dos famosos “sonetos pavônicos”, aos quais o poesia.​net já dedicou uma edição, a n. 317 (setembro, 2014).

No poema-homenagem, Cyro de Mattos, com explícita reverência, dirige-se ao colega de Belmonte (município litorâneo no sul da Bahia). Conta que visitou aquela cidade e a casa do velho aedo. Sentiu lá a presença dele. E conclui o texto com uma referência aos sonetos pavônicos: “Mais lindo foi ver em teu joelho/ pousado aquele pavão vermelho/ entre suspiros e lampejos/ reacendendo versos de amor”.

O primeiro dos quatro escritos inéditos incluídos em Canto Até Hoje é “Lugar”, uma declaração de amor à poesia. Aí o sujeito lírico declara: “o poema é meu lugar / onde tudo arrisco”. No texto seguinte, “Passarinhos”, o poeta viaja em andamento de canção: “Eram passarinhos / no frescor dos sonhos, / na lã da aurora”.

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No soneto “Caminho das Gaivotas”, o ambiente é marítimo e nele o poeta ensaia um mariscar de saudades. Após recordar a despedida de um “velho barco”, vem o apelo às aves do título: “Ó gaivotas do veleiro, // nesse porto agora mudas, / só vós sabeis dos caminhos / do menino e da água-viva”.

Agora, o último poema, “O Embarque”. Conforme o título já trai, mais uma vez estamos à beira-mar. Neste soneto a meninice volta a dar as cartas ao homem feito pela vida afora. “Convém que na chegada estejas leve, / no coração sempre asas da infância”. Há também a expectativa do navegante de que sempre haverá, mesmo no céu escuro, uma estrela para guiá-lo para as rotas mais seguras.

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Cyro de Mattos é membro da Academia de Letras da Bahia e também já foi destacado aqui na edição n. 155, em março de 2006.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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No caminho das gaivotas


• Cyro de Mattos


              

Mainie Jellet- Portrait of a young woman-1921
Mainie Jellet, pintora irlandesa, Retrato de uma jovem (1921)


PAÍS DE SOSÍGENES COSTA

Estimado senhor Sosígenes,
eu ontem estive em Belmonte onde
vi no quintal daquela casa o mar.
Me disse o povo de lá que ali
morava a sereia. Em noite de lua
clara sempre vinha te escutar
quando a lira ardente tocavas.
Vi na manhã animada
tua luz sonora nas galhas
e na tarde, caro artesão da cor,
a emoção verde na algazarra.
Aquele papo do sol que se acurva
polvilhando as nuvens cor-de-rosa.
Mais lindo foi ver em teu joelho
pousado aquele pavão vermelho
entre suspiros e lampejos
reacendendo versos de amor.

      De Cancioneiro do Cacau (2002)



LUGAR

Ainda que eu seja
um grão no deserto
o poema é meu lugar
onde tudo arrisco.
Irriga minhas veias
como a chuva a terra
em suas mil línguas.
Antigo, tão antigo,
anuncia-me cativo
da solidão solidária
dizendo silêncios.
Sem esse jeito
de ser flor e vento,
sonho e música,
palavra só amor,
não há o espanto,
a lágrima, o beijo,
o riso, o epitáfio,
não há o sentido.

      De Nesses Rumores e Mares (2020)



Mainie Jellet- Portrait of a young boy-1920
Mainie Jellet, Retrato de um menino (1920)


PASSARINHOS

Eram passarinhos
no frescor dos sonhos,
na lã da aurora.

Eram passarinhos
que bicavam as frutas
nas manhãs maduras.

Eram passarinhos
no tempo plural
bebendo água clara.

Eram passarinhos
de cantares afoitos
no arco-íris das ruas.

Eram passarinhos
dispersos nas penas
das rações duras.


CAMINHO DAS GAIVOTAS

No caminho das gaivotas
um barquinho em mar azul
mariscava concha, búzio,
raio de sol no claro dia.

No caminho das gaivotas
o litoral de atropelos,
ventos fortes nas marés,
manobrando a pescaria.

Velho barco despediu-se
das salinas numa noite.
Ó gaivotas do veleiro,

nesse porto agora mudas,
só vós sabeis dos caminhos
do menino e da água-viva.

      De Nesses Rumores e Mares (2020)



Mainie Jellet- bay jellet sittin in the gardens in fitzwilliam square
Mainie Jellet, May Jellet sentada no jardim da Praça Fitzwilliam


O EMBARQUE

Convém que essas mãos não estejam sujas
de ouro pilhado em brancos litorais
e que desde cedo nunca te aflijas
com o mar ignoto de ondas e canais.
Convém que na chegada estejas leve,
no coração sempre asas da infância
quando no azul te deslizavas livre
em teu gesto ausente de abismo e insônia.
Convém que mais sereno esteja o rosto,
pleno de reverdor e luz marinha
lembrando a passagem por cada porto
sem rancor de encalhes a nau sozinha.
Embora seja a noite escura e fria,
existirá na curva a estrela-guia.

      De Nesses Rumores e Mares (2020)




poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2022



Cyro de Mattos
      • Todos os poemas:
      in Canto Até Hoje
      Fundação Casa de Jorge Amado: Casa de Palavras, Salvador, 2020
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* Francisco Carvalho, "Palavras Mudam de Cor", in Memórias do Espantalho (2004)
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* Imagens: quadros da pintora irlandesa Mainie Jellet (1897-1944)