Número 492 - Ano 20

Salvador, quarta-feira, 3 de agosto de 2022

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«Não sei de pássaros, / não conheço a história do fogo. / Mas creio que minha solidão deveria ter asas.» (Alejandra Pizarnik) *

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Lubi Prates
Lubi Prates



Amigas e amigos,

Poeta, tradutora, editora e psicóloga, a paulistana Lubi Prates (1986-) escreve desde a infância, sob o incentivo da família. Estreou na poesia em 2012 com a autopublicação do livro Coração na Boca, depois reeditado pela Patuá (2016). Também por essa editora, publicou Triz (2016).

Em 2018, a poeta lançou seu terceiro livro, Um corpo negro, que se tornou uma obra vitoriosa, agora já em terceira edição (2021). Finalista do Prêmio Rio de Literatura (2018) e do Prêmio Jabuti (2019), Um corpo negro foi traduzido e publicado na Argentina, Colômbia, Croácia, Espanha, Estados Unidos, França, Itália e Suíça. No Brasil, poemas dessa coletânea integram materiais didáticos do ensino fundamental e médio.

Um corpo negro sinaliza um divisor de águas na poesia de Lubi Prates. A autora admite que os estudos de psicologia, feminismo e relações raciais introduziram em sua concepção estética uma preocupação social. Lubi Prates cursa o doutorado em Psicologia do Desenvolvimento Humano na USP e também atua como psicóloga clínica.

Em seu trabalho como tradutora e editora, Lubi dedica-se, em suas próprias palavras, a “ações que combatem a invisibilidade de negros e mulheres”. Aliás, a primeira referência a ela no poesia.​net foi feita este ano, na edição 489, dedicada à poesia da americana Maya Angelou, de quem Lubi Prates traduziu para o português a Poesia Completa.

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Os textos da miniantologia desta edição foram todos extraídos do livro Um corpo negro. O primeiro poema é “Mátria e/ou terra-mãe”. Nele, a poeta faz um mergulho na História e questiona a validade de tratar como mãe a terra que “permite/ que te arranquem/ o solo e os pés/ no mesmo instante”. E continua: “não é mãe/ se inventa um navio/ quando te jogam/ ao mar”. No poema seguinte do livro — “Como Chamar de”, não transcrito aqui —, o questionamento se estende à palavra “pátria”, uma vez que dar à luz é condição feminina e “esse útero geográfico/ que me pariu” traz a imagem masculina de pai.

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O próximo texto, “Não foi um cruzeiro”, lembra, mais uma vez, a travessia do mar num navio negreiro: “meu nome e/ minha língua// (...) esqueci no navio/ que me cruzou/ o Atlântico”. No terceiro poema da seleção, o título exprime o espanto do africano escravizado, sobrevivente da tavessia, após pôr os pés na Terra de Santa Cruz: “Tudo aqui é um exílio”. E isso ocorre “apesar do sol/ das palmeiras/ dos sabiás”. E também “apesar dos rostos/ quase todos negros/ dos corpos/ quase todos negros/ semelhantes ao meu”.

Por fim, no poema “Pele que habito”, o sujeito poético salta da geografia para dentro do próprio corpo: “minha pele é meu quarto./ minha pele é todos os cômodos/ onde me alimento onde deito finjo/ o mínimo conforto”. Contudo, a orientação geográfica ainda está presente: “minha pele não é casca/ é um mapa: onde África ocupa/ todos   os   espaços:/ cabeça útero pés”. O texto se fecha com um resumo certeiro: “minha pele é um mundo/ que não é só meu”.

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No prefácio de Um corpo negro, a baiana Lívia Natália, poeta e professora de teoria da literatura da UFBA, afirma: “Este livro atualiza a discussão sobre o racismo a partir de um investimento delicado, intenso, meticuloso de devolver humanidade às nossas travessias, às nossas dores, ao nosso ser e estar no mundo”. De fato, Lubi Prates produziu uma ambiciosa coletânea de poemas que põem o dedo numa das feridas mais pungentes da sociedade brasileira.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Tudo aqui é um exílio


• Lubi Prates


              

Lionel Smit- revive-1-2014
Lionel Smit, pintor e escultor sul-africano, Reviver #1 (2014)


MÁTRIA E/OU TERRA-MÃE

repetem repetem
mátria
com tanta certeza
como se a palavra
existisse
no dicionário
o último lugar de validação.

mas não é mãe
se permite
que te arranquem
o solo e os pés
no mesmo instante

não é mãe
se inventa um navio
quando te jogam
ao mar
se força as ondas
pra que chegue
mais rápido
ao desconhecido

não é mãe
se permite que grite
até a rouquidão
mas num idioma
que ninguém compreende.

repetem repetem
mátria
com tanta certeza
como se a palavra
existisse
no dicionário
o último lugar de validação.

de onde eu vim
pra onde sempre vou
eu chamo pátria.


Lionel Smit - pendulum-2022
Lionel Smit, Pêndulo (2022)


NÃO FOI UM CRUZEIRO

meu nome e
minha língua

meus documentos e
minha direção

meu turbante e
minhas rezas

minha memória de
comidas e tambores

esqueci no navio
que me cruzou
o Atlântico.


Lionel Smit - paused-2022
Lionel Smit, Pausada (2022)


TUDO AQUI É UM EXÍLIO

apesar do sol
das palmeiras
dos sabiás,

tudo aqui é
um exílio.

tudo aqui é
um exílio,

apesar dos rostos
   quase todos negros
dos corpos
   quase todos negros
semelhantes ao meu.

tudo aqui é
um exílio,

embora eu confunda
a partida e a chegada.

embora chegar
apague
as ondas que o navio
forçou no mar

embora chegar
não impeça
que meus olhos
sejam África,

tudo aqui é
um exílio.


Lionel Smit-dispersion-2022
Lionel Smit, Dispersão (2022)


PELE QUE HABITO

minha pele é meu quarto.
minha pele é todos os cômodos
onde me alimento onde deito finjo
  o mínimo conforto.

minha pele é minha casa
com as paredes descobertas
  uma falta de cuidado
: necessita sempre mais
para ser casa.

minha pele não é um estado
desgovernado.

minha pele é um país
embora distante demais   para os meus braços
embora eu sequer caminhe sobre seu território
embora eu não domine sua linguagem.

minha pele não é casca
é um mapa: onde África ocupa
todos   os   espaços:
cabeça útero pés

onde os mares são feitos de
minhas lágrimas.

minha pele é um mundo
que não é só meu.



poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2022


Foto:
Douglas Santiago


Lubi Prates
      in Um corpo negro
      3a. ed., nossa editora, São Paulo, 2021
      Site da autora: https://lubiprates.com/
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* Alejandra Pizarnik, "La Carencia", in Poesía Completa (2001)
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* Imagens: quadros do pintor sul-africano contemporâneo Lionel Smit (1982-)