Amigas e amigos,
Neste mês, junho de 2024, dois de nossos mais destacados artistas brasileiros da palavra completam 80 anos: o professor, poeta e pintor baiano Antonio Brasileiro, no dia 15, e o cantor, compositor, dramaturgo e romancista carioca Chico Buarque, no dia 19.
Dedicado de corpo, alma e palma à poesia, este boletim não poderia deixar de registrar essas gratas efemérides. Portanto, esta edição do poesia.net apresenta poemas de Antonio Brasileiro e letras de canções de Chico Buarque,
dois artífices da palavra.
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Nascido em Ruy Barbosa-BA, Antonio Brasileiro é conhecido dos leitores que acompanham este boletim. O poeta já esteve aqui nas edições individuais
419,
351,
293 e
26.
Titubeei bastante durante o processo de escolha dos poemas de Brasileiro para esta homenagem. Primeiro, pensei em encontrar em
sua Poesia Completa (lançada em dois volumes pela Editora Mondrongo, em 2021 e 2022), poemas ainda não citados aqui neste
quinzenário.
Selecionei alguns textos e cheguei a colocá-los na página. Depois, mudei de ideia e decidi fazer um apanhado de poemas
já publicados. Pincei quatro deles entre os que, no meu entender, reverberam mais entre os leitores. Afinal, o momento é de celebração.
Decidi também repetir aqui os comentários que fiz nas primeiras postagens dos poemas.
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Comecemos, então, com “Relato”, do livro Desta Varanda (2011). Aí está um pedaço terrível da vida atual nas grandes cidades brasileiras.
Carros, engarrafamentos, ruídos, grunhidos. E um final violentíssimo. O narrador, confortavelmente instalado em sua varanda, apenas relata.
Isso me lembra o documentário Um Lugar ao Sol (2009), de Gabriel Mascaro, que trata do universo dos moradores
em coberturas de luxo de três metrópoles brasileiras: Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. Uma das entrevistadas,
carioca, diz que assiste do alto aos tiroteios entre traficantes. E que as balas tracejantes constituem um espetáculo “lindo”,
assim como fogos de artifício. Atenção, repito: não estou falando de uma história de ficção, mas de um documentário! Então,
o que parece absurdo ou exagerado neste “Relato” de Antonio Brasileiro não é uma coisa nem outra. É apenas a vida urbana brasileira.
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O segundo poema da seleção é o soneto “Os Sinos da Aldeia”, também extraído de Desta Varanda. Este é um poema que tem o
condão de conquistar nossa sensibilidade logo na primeira leitura. Foi o caso, comigo: fui capturado por esses sinos de província,
que esbanjam clangores e langores. Não há mais o que acrescentar sobre esses bronzes e seus toques impiedosos. O poema diz tudo. E a noite
vai caindo pouco a pouco.
Vem a seguir o poema “Olha, Daisy”, de Como Aquela Montanha Sossegada (2018), uma homenagem de Antonio Brasileiro ao
múltiplo vate lisboeta Fernando Pessoa, na pessoa de Álvaro de Campos. O fictício engenheiro naval Álvaro de Campos também
se dirige, em termos bem parecidos, a uma certa Daisy londrina.
Não resisto à tentação de divagar: se o mineiro Drummond — outro deus nos altares pagãos de Brasileiro — se autointitulava
“fazendeiro do ar”, não há dúvida de que Álvaro de Campos, criatura volátil, só pode ser um engenheiro naval de mares inventados
e navios sonhados. No poema “Opiário”, o próprio Campos abre o jogo: “Eu fingi que estudei engenharia. / Vivi na Escócia. Visitei a Irlanda”.
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“Das Coisas Memoráveis”, do livro Pequenos Assombros, é o último poema da seleção brasileiriana. Nele temos um exemplo
da poesia reflexiva do autor. “Um dia o mundo inteiro vai ser memória. / Tudo será memória”, assevera o texto. Até Deus. “Deus e os pardais”.
Mestre de uma poesia de reiteradas perquirições, Antonio Brasileiro, em toda a sua extensa obra, não
não se cansa de escarafunchar os aspectos
obscuros de nossas pequenas e grandes trapaças existenciais. Com um lirismo marcadamente pessoal, não para de desmascarar as aparências
enganosas da vida. Diz ele em “Toada”, uma quadra escrita em 1979: “Cada vez que me debruço / sobre minha própria face /
não me vejo como sou / mas como sou no disfarce.”
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Passemos agora às letras de Chico Buarque. Confesso que, também aqui, experimentei enorme dificuldade em decidir quais letras
destacaria neste boletim. Primeiro, tentei fazer uma lista. Não deu certo: ficou enorme. Para contemplá-la, seriam necessárias
várias edições do boletim. Peguei a caixa Chico Buarque - Letra e Música
(Cia. das Letras, 1989), consultei a seção “Discografia”. Anotei umas canções,
afastei outras, mas a lista só aumentava, até porque esse livro não inclui a obra do compositor de 1990 para cá.
Para sair desse impasse, resolvi fixar um número: quatro canções (inclusive para manter o mesmo número de poemas de Antonio Brasileiro).
Além disso, para encher o boletim de sons, estabeleci que essas canções deveriam estar disponíveis em videoclipes na internet. Por fim,
depois de muitos vaivéns, cheguei às letras ao lado. Não há aqui qualquer pretensão de afirmar que essas canções, ou letras, sejam
“as quatro mais” de Chico Buarque, sob qualquer critério. É apenas uma seleção comemorativa.
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Abre o quarteto uma das mais icônicas criações de Chico Buarque, “Construção”. Lançada em 1971 no álbum homônimo, essa música já
foi alvo de numerosas análises, inclusive em trabalhos acadêmicos. O que se destaca, de saída, para fãs e críticos, é a montagem
combinatória dos versos. Chico descreve o dia a dia de um trabalhador da construção civil, um pedreiro, que afinal morre atropelado
no trânsito brutal da cidade.
Os versos são todos alexandrinos (12 sílabas) que terminam com uma palavra proparoxítona. No total, a letra contém dois blocos de
17 versos, mais um de 7 (sigo, aqui, o formato exibido no livro Letra e Música e também no site
Chico Buarque).
Nas duas primeiras estrofes, todos os versos começam da mesma forma e praticamente se repetem, com exceção da última palavra,
a proparoxítona, que vai sendo trocada. Assim, na estrofe 1, o pedreiro “Amou daquela vez como se fosse a última”; na 2,
“Amou daquela vez como se fosse o último”; e na última, “Amou daquela vez como se fosse máquina”.
Na letra impressa, se você cobrir o lado direito do texto e comparar
essas duas estrofes, verá na segunda uma perfeita repetição da primeira, verso a verso.
A grande mágica do texto ocorre na obtenção de novos significados apenas com a substituição das últimas palavras. Nos últimos
versos, o pedreiro “Morreu na contramão atrapalhando o tráfego”; “Morreu na contramão atrapalhando o público”; Morreu na
contramão atrapalhando o sábado”.
No livro Desenho Mágico: Poesia e Política em Chico Buarque (Hucitec, 1982), a professora da USP Adélia Bezerra de
Meneses observa que, assim como “Pedro Pedreiro”, outra canção com tema similar, “Construção” pode ser enquadrada “como um
testemunho doloroso das relações aviltantes entre o capital e o trabalho”. Num texto de aproximadamente 12 páginas,
a professora analisa em detalhes o “jogo de palavras” na letra dessa canção.
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A próxima letra do quarteto é “Iracema Voou” (1998). Pois bem, Iracema, aquela dos lábios de mel, deixou o Ceará, sua terra
natal, e tornou-se imigrante clandestina nos EUA. Eis aí mais uma personagem feminina de Chico, integrante da extensa galeria
que abriga Carolina, Januária, Madalena, Cristina, Angélica, Lily Braun e muitas outras.
Pelo jeito, os esperados bons ventos do sonho americano não sopraram para Iracema. Ela “não domina o idioma inglês” e
“lava chão numa casa de chá”. Além disso, “não dá mole pra polícia”. Como é uma moça de tempos anteriores ao WhatsApp, liga
a cobrar e se anuncia: “— É Iracema da América”. Com breves palavras, Chico traça o perfil dessa brasileira desgarrada,
que “tem saudade do Ceará / mas não muita”.
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“Construção” e “Iracema Voou” são criações de Chico Buarque em autoria exclusiva. Nas duas canções a seguir, “A História
de Lily Braun” e “Sinhá”, Chico é apenas o autor da letra. Lily Braun, cuja música foi composta por Edu Lobo, é uma figura muito
especial. Ela é personagem do poema “O Grande Circo Místico”, do alagoano
Jorge de Lima (1893-1953). Esse poema serviu
de base para o espetáculo musical de mesmo nome, com música da dupla Edu Lobo e Chico Buarque.
No poema de Jorge de Lima, Lily Braun, “que tinha no ventre um santo tatuado”, casou-se com Oto Frederico Knieps, dono do Grande
Circo Knieps, o circo místico. Mas a história de Lily Braun recriada por Chico Buarque é muito mais próxima das mulheres de hoje.
Na letra de Chico, Lily, a narradora, é uma cantora que se apresenta em dancings e "espeluncas", conforme ela mesma define.
A ironia está em que mesmo uma mulher experiente como Lily Braun vai se atrapalhar nas tramas do machismo
patriarcal ao se casar com quem ela
chama de “o homem dos meus sonhos”. Ouça a música e delicie-se acompanhando a letra. É empolgação garantida, mesmo que você já
tenha escutado essa canção milhares de vezes.
Gravada inicialmente por Gal Costa para o disco do Grande Circo Místico, “A História de Lily Braun” já ganhou vida na voz
de outras importantes cantoras brasileiras de várias gerações, tais como Leila Pinheiro, Mônica Salmaso, Maria Rita, Maria Gadú
e Teresa Cristina.
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Vem agora a última canção das quatro escolhidas: “Sinhá”, que tem música de João Bosco e letra de Chico Buarque. Localizada no contexto
da escravidão, a letra conta uma história que atravessa séculos. Na primeira parte, quem fala é um homem escravizado, que sofre bárbaras
torturas (“Pra que me pôr no tronco? / Pra que me aleijar?” ou “Pra que que vosmincê / Meus olhos vai furar?”), diante da acusação de ter
olhado a sinhá (mulher da família escravagista) no banho. Ele nega tudo.
Na segunda parte, outro narrador põe um fecho na história, falando de um cantor, “herdeiro sarará / do nome e do renome / de um feroz
senhor de engenho / e das mandingas de um escravo / que no engenho enfeitiçou sinhá”. Ou seja, o cantor é um descendente do escravo e da sinhá.
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Um viva à poesia de Antonio Brasileiro e à música de Chico Buarque. E longa vida aos dois artistas,
com muita música e poesia.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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