Número 532 - Ano 22

Salvador, quarta-feira, 19 de junho de 2024

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«Por que chora o homem? / Que choro compensa / o mal de ser homem?» (Carlos Drummond de Andrade) *

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Micheliny Verunschk
Micheliny Verunschk



Amigas e amigos,

A romancista e poeta pernambucana Micheliny Verunschk (Recife, 1972) compareceu pela primeira vez a esta página na edição n. 186, de 2006. Aquele boletim baseava-se em textos do livro Geografia Íntima do Deserto (Landy, 2003), coletânea que valeu à autora a condição de finalista no Prêmio Portugal Telecom em 2004.

Agora, 18 anos depois, a presente edição tem origem no lançamento de Geografia Íntima do Deserto e Outras Paisagens Reunidas (Círculo de Poemas, 2024), uma compilação — “obras incompletas”, como diz Micheliny — do título inicial com poemas de outros livros da autora: O Observador e o Nada (2003), A Cartografia da Noite (2010); B de Bruxa: Bonnus bonnificarum (2014); Maravilhas Banais (2017); A Cozinha do Buda (2017); e O Movimento dos Pássaros (2020).

A partir de 2014, ano em que lançou seu primeiro romance, Nossa Teresa - Vida e Morte de uma Santa Suicida, Micheliny Verunschk parece ter-se dedicado mais à prosa do que à poesia. De lá para cá, já deu a público mais quatro romances, entre os quais se destaca O Som do Rugido da Onça (Companhia das Letras, 2021), laureado com o Prêmio Jabuti em 2022, além do volume Desmoronamentos (Martelo, 2022), que venceu o Prêmio Biblioteca Nacional da categoria contos em 2023.

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Sem dúvida, a obra de Micheliny atualmente dá a impressão de que tende mais para a ficção do que para a poesia. Mas aqui no poesia.​net cuidamos da gaia ciência. Então, voltemos para a Geografia Íntima do Deserto em sua versão estendida.

Após ler a primeira edição desse livro, registrei no boletim de 2006: “Micheliny Verunschk talvez tenha sido uma das revelações mais auspiciosas da poesia brasileira dos anos recentes”. Lendo agora essa reunião, não titubeio em confirmar essa ideia inicial. Para este número do boletim, selecionei seis poemas do livro, tendo o cuidado de não repetir textos já incluídos na primeira vez.

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Passemos aos poemas. O primeiro, “g” (assim mesmo, em letra minúscula, para mostrar o perfil de um gato), faz parte da Geografia Íntima original. “Era um gato de ébano / estático e mudo: / um gato geométrico / talhando em silêncio / o seu salto mais duro”. Bem ritmado e com as palavras certas, o poema descreve um felino marcado por certo tom de mistério. “Um gato concreto / no meio da sala: / era uma palavra / afiando palavras”. O animal se manifesta como a própria arte poética: o gato das palavras.

O próximo poema é “O Espelho de Borges”, também da Geografia, um retrato do poeta e contista argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), que repousa em uma jaula de vidro. A seguir, a autora brinca com as palavras no poema “Lego”. A brincadeira, porém, é mais do que séria: é sinistra. Após o depor das armas, mutilados de guerra tentam recompor-se procurando “peças extraviadas”: “Em algum lugar / braços e pernas / procuram braços e pernas / pe da ços que se en-caixa-m /com todos os enganos”.

Agora, o texto “VI”, parte do livro Vestidos Vazios. Com as cordas afinadas num diapasão profundamente lírico, a poeta se volta para um ambiente marcado por sonhos, sentimentos, memórias e um vestido evanescente. Restos de um amor que ficou no passado. “XXVI” é outra parte do texto. Trecho: “e no entanto me sonhas novamente / outra noite outra noite outra noite / esta vida que costuramos / em desejo e incompletude”.

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O último poema da seleção é “[Hoje Acordei]”. (Quem lê habitualmente este boletim sabe que, para facilitar as referências, sempre atribuo ao poema sem título um título que corresponde ao primeiro verso, ou parte dele, entre colchetes.) O texto foi publicado originalmente no livro A Cozinha do Buda. É o início de um novo dia. O narrador, tranquilo, associa a chuva lá fora com os acontecimentos triviais no interior da casa: “a chuva chiando na janela” e “o feijão chiando na panela”.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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LANÇAMENTO

Vale das Ameixas
• Hugo Almeida

Hugo Almeida - Vale das AmeixasO jornalista e escritor Hugo Almeida lança o livro Vale das Ameixas (Editora Sinete, 2024), seu segundo romance para adultos.

Quando:
Sábado, 29/06/2024,
das 17h às 20h

Onde:
Canto Madalena
R. Medeiros de Albuquerque, 471
Vila Madalena
São Paulo, SP





O gato das palavras

• Micheliny Verunschk


              



Krystyna Ruminkiewicz - Sadness and joy are red
Krystyna Ruminkiewicz, polonesa, Tristeza e alegria são vermelhas


g

Era um gato de ébano
estático e mudo:
um gato geométrico
talhando em silêncio
o seu salto mais duro.
Era um gato macio
se visto de perto,
um bicho de carne
ao olho certeiro,
arrepio de sombra
subindo nas pernas,
um lance no escuro,
um tiro no espelho.
O gato era um ato,
uma estátua viva,
uma lâmpada acesa
no umbigo de Alice.
Era um gato concreto
no meio da sala:
era uma palavra
afiando palavras.
Era a fome do gato
e sua pata à espreita,
veludo-armadilha:
uma única letra.

O ESPELHO DE BORGES

Em uma jaula de vidro
repousa um homem
que não vê,
mas é visto.

O observam
as coisas inanimadas,
as trevas
e os móbiles
de onde pendem
transluminosas
palavras.

O trem
envolto na bruma azul
do calendário
confunde-se com o homem,
seu sono de mármore,
seu hálito.

Confunde-se com o homem
até a palavra em negro
Fevereiro
o musgo dos números
a pedra dos domingos
em vermelho.

Confunde-se com o homem
tudo o que não vê,
mas o cerca,
o que de fora da moldura
respira e observa.



Krystyna Ruminkiewicz - Golden girl-2021
Krystyna Ruminkiewicz, Moça dourada


LEGO

Corpo m util ado
batalha que/brada
no depor das armas
lance perd?do.
Como uma lâmpada e seu bocal
ajustam-se ainda este membro
e o semelhante que se foi?
Como um jogo
um brinquedo
encontram-se as peças extraviadas
pela mesma dor?
Em algum lugar
braços e pernas
procuram braços e pernas
pe da ços que se en-caixa-m
com todos os enganos.

VI

esses passos
esses vestígios
que recolhes do chão
do teu sonho
fui eu que espalhei.
era para ser um jogo
essa ausência.
era para ser mentira
esse relâmpago no horizonte.
recolhe com cuidado
os colchetes, os botões
a barra de renda tão fina
que se esvai como uma nuvem.
recolhe com cuidado esse vestido desabitado.
em outro sonho eu transito nua.



Krystyna Ruminkiewicz - The.one.with.violet.garlic-2021
Krystyna Ruminkiewicz, Mulher com flor de alho


XXVI

o vestido desaparece
em tuas mãos
não há linhas
nem mais dobras
nem botões
tudo é silêncio e ruína
e o eterno vento da história
que a tudo varre

e no entanto me sonhas novamente
outra noite outra noite outra noite
esta vida que costuramos
em desejo e incompletude

meu nome teu nome
e o que se inscreve
dentro da memória

[HOJE ACORDEI]

hoje acordei
com a chuva
chiando na janela,
levantei,
olhei o mundo em volta,
e fui para a cozinha,
o feijão chiando na panela
imitou a chuva,
pássaro caprichoso,
o cheiro do alho esmagado
misturado ao cheiro
de terra molhada
entrando pelas frestas,
o buda bocejando,
os olhos mal abertos,
se espanta com tanta agitação
num dia ainda escuro,
como se dissesse
que hoje seria dia apenas
para filosofias e números puros,
mas é que hoje acordei
com a chuva chiando
na panela de tudo.




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Carlos Machado, 2024



 • Micheliny Verunschk
    in Geografia Íntima do Deserto
    Círculo de Poemas, São Paulo, 2024
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* Carlos Drummond de Andrade, "Tarde de Maio", in Claro Enigma (1951)
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* Imagens: quadros da pintora polonesa Krystyna Ruminkiewicz (1961-)