Número 533 - Ano 22

Salvador, quarta-feira, 3 de julho de 2024

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«O relógio de parede numa velha fotografia — está parado?» (Mario Quintana) *

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Fabrício Oliveira
Fabrício Oliveira



Amigas e amigos,

O poeta Fabrício Oliveira (Santo Estêvão-BA, 1996) foi destaque aqui no poesia.​net na edição n. 496, em outubro de 2022. Agora, ele retorna ao boletim, trazido pelo lançamento da coletânea Corações Arenosos (Mondrongo, 2023).

Ao discorrer sobre seu livro anterior, Viração (Patuá, 2022), observei que Fabrício Oliveira desenvolve um lirismo especial, sempre baseado em experiências concretas, vividas por ele mesmo ou ouvidas de vizinhos e parentes. No novo livro, esses traços se mantêm.

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De Corações Arenosos selecionei meia dúzia de poemas, que são mostrados ao lado. O primeiro é “Casa Verde”. O narrador, num lugar campestre, observa pássaros (sofrê, araras) e se envolve na paisagem. “Um sofrê atravessa meus olhos / esticando lírios e pedaços de estrelas”.

Vem a seguir o poema “Memórias”. Aqui, o eu poético relata lembranças de infância e constrói um ambiente meio surrealista: “os dentes do cavalo abriram sendas nos meus sonhos”; ou “Trago enrolada numa casca de jerema / uma fotografia 3x4 de Alcides Cachaça”. São lembranças soltas, desconectadas umas das outras. O menino que as apresenta mistura livremente coisas acontecidas com outras sonhadas ou inventadas.

No próximo poema, “Flauta Doce”, o contexto é ainda de lembranças (“lembranças e mágoas”) que voam na brisa e são marcadas pelo “vulto esguio” de um pé de eucalipto. E tudo soa como flauta doce.

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Em “Água Grande”, referência ao nome de um povoado, destaca-se a figura de Dona Graúda, parteira e rezadeira. Chamada às pressas para aviar um parto, ela desta vez não conseguiu dar conta do recado. As rezas foram em vão: o nascituro, infelizmente, morreu ainda no ventre da mãe. Desgosto em Água Grande. “A angústia no semblante de Zé da Prensa / ia se nutrindo da poeira da tarde”.

No poema “Dona Otávia”, surgem mais uma vez recordações de infância. Dona Otávia, há muito falecida, “hoje tange suas cabras magras / em três tarefas de sonhos”. Para os leitores urbanos, vale lembrar que essas tarefas aí não são trabalhos: correspondem a uma medida agrária. Cada tarefa, na Bahia, corresponde a cerca de 4,3 mil metros quadrados de terreno.

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O poema “Sete Luas” fecha a miniantologia com um caso doméstico muito doído. Migué, irmão do narrador, saiu para cumprir um mandado do pai e nunca mais voltou. A mãe, coitada, vive a repetir: “Migué não veio?”. Histórias do interior.

Aplicada à poesia de Fabrício Oliveira, a palavra “interior” tem duplo sentido. Indica o ambiente rural, onde os eventos acontecem, e também um lugar na mente dos narradores, onde residem suas memórias, seus sonhos, suas esperanças.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Corações arenosos

• Fabrício Oliveira


              



Stephen Baker - Eavesdropping
Stephen Baker, pintor australiano, Escuta


CASA VERDE

Um sofrê atravessa meus olhos 
esticando lírios e pedaços de estrelas.

Da varanda da casa verde,
vejo bandos compridos de araras no ar,
— pano colorido desfraldando-se
nos lombos quentes do vento.

MEMÓRIAS

Uma vez, quando eu era menino,
a luz dos vagalumes coagulou no escuro das janelas.

Do meu esquálido quarto,
eu via as casas dos transeuntes.
As telhas eram rachadas
pelo mistério de uma rua cruzada
				constantemente
por gente sem córneas.

A umidade no corredor do fim da casa
era como uma chaga em meu sono.

Uma vez, quando eu era menino,
os dentes do cavalo abriram sendas nos meus sonhos
onde duas cobras corais pinicam a noite que se abate.

No lugar dos olhos das cobras corais
cresce a saudade de Dona Lindu e Seu Norato
que se inscrevem nas ausências da paisagem.

Meu coração é um Paraguaçu despojado.

Crianças se lambuzam nos restos do azul 
que levemente contorna as margens 
				 daquela estrada.

Sobre um pasto de luz ouço passos de atabaques.

Uma fuligem de velames vai tomando as cortinas tristes
e as salas do meu coração rachado.
A pálida luz da lua toma a face dos paiaiás
que mascam nacos de fumo e enegrecem o poente.

Trago enrolada numa casca de jerema 
uma fotografia 3x4 de Alcides Cachaça.

Uma vez, quando eu era menino,
pedaços de luas germinaram feito malvas
				       no pasto,
e um tiziu escavou a noite nos restos mortais
da menina que eu amava.



Stephen Baker - Second floor
Stephen Baker, Segundo andar


FLAUTA DOCE

Para além da curva do meu coração, 
há o vulto esguio do pé de eucalipto, 
as lembranças e mágoas da casa de adobe 
e uma brisa trotando livremente 
e imprimindo em todo ser vivo
seu canto calmo de flauta doce.

ÁGUA GRANDE

Minha infância no povoado de Água Grande 
foi atiçar as brasas do fogão a lenha. 
				     Foi também 
acompanhar, por dentro das brenhas,
Dona Graúda, chamada às pressas
(quase sempre por um menino traquino) 
quando um rebento na hora de chegar 
atravessava no ventre como se estivesse de birra.

Dona Graúda rezava a barriga da mulher
com bastantes folhas de arruda.

A aflição ocupava todos os cômodos.

Um menino comia camarão na palha da bananeira, 
o outro dormia com a felicidade 
de quem pega peixes na loca.

A angústia no semblante de Zé da Prensa
ia se nutrindo da poeira da tarde.

Dona Graúda rezava o bucho da mulher
com a testa cheia do suor de Nagô.
E o pranto da mãe, feito faca,
escavava no olhar da parteira
o rebento morto no ventre.



Stephen Baker - Workers
Stephen Baker, Trabalhadores


DONA OTÁVIA

Quando criança eu pensava que o mundo
tinha nascido do assobio de Dona Otávia
que hoje tange suas cabras magras
em três tarefas de sonhos. 

Dona Otávia morreu e sua alma então se afinou 
até se transformar num grito.
(Num grito tão forte que dilacerou
minhas entranhas e a luz do dia).

Quando criança eu pensava que o mundo
tinha nascido do assobio de Dona Otávia
que pendurava as roupas das filhas
nos galhos do pé de pinha.

Dona Otávia agora é o além.

Enquanto eu, nu da cintura pra riba,
capino, sozinho, aquelas três tarefas.

SETE LUAS

Vai pra mais de sete luas 
que meu pai mandou meu irmão Migué 
ir buscar quarta e meia de feijão-fradim 
lá na casa de Dona Céu. 
Migué nunca mais voltou.

Grávida de saudade e esperança, 
minha mãe prepara a frigideira 
e o angu de caldo de peixe.

Volto esperançoso da labuta no Oleiro 
e ela me pergunta outra vez: 
— Migué não veio?

— Não, mãe, Migué não veio.




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Carlos Machado, 2024



 • Fabrício Oliveira
    in Corações Arenosos
    Mondrongo, Itabuna-BA, 2023
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* Mario Quintana, "O Relógio", in Caderno H (1973)
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* Imagens: quadros de Stephen Baker, pintor australiano contemporâneo