Número 537 - Ano 21

Salvador, quarta-feira, 18 de setembro de 2024

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«A coisa mais solitária que existe é um solo de flauta.» (Mario Quintana) *

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Dalila Teles Veras
Dalila Teles Veras


Amigas e amigos,

Poeta, cronista e ativista cultural, Dalila Teles Veras é figura conhecida no mundo literário e também conhecida de quem acompanha este boletim. Ela acaba de lançar, pela Editora Patuá, o livro Opções para morrer no espaço. Trata-se de uma coleção de 37 poemas, todos intitulados com números romanos, de I a XXXVII.

Nesses textos, a autora, com acento lírico marcadamente pessoal, observa o mundo (destaque para o trágico período da pandemia) e avança para considerações cósmicas — aspecto trazido para o título da coletânea. No final do volume, a poeta (cujas obras, entre livros e plaquetes, já alcançam a casa das duas dezenas) reúne um conjunto de textos críticos sobre seu trabalho poético.

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Para esta edição, selecionei meia dúzia de poemas de Opções para morrer no espaço. Vamos à leitura. O primeiro texto é o número “VII”, um metapoema no qual se fundem e confundem a existência da criadora com a própria vida do poema. Durante a escrita, chega o momento crucial de atravessar o Rubicão e conquistar a validade do artefato poético. A autora empenha todos os seus esforços e, com braços frágeis para vencer a travessia, “nada e afunda nada e afunda”. E todo o nado pode dar em nada.

Neste poemeto o eu poético se expõe como ente falível (o texto pode resultar num bom poema — ou não) e, portanto, destituído de pretensões olímpicas. A poeta não finge ser detentora dos poderes de um pequeno deus que teria controle absoluto de todas as circunstâncias da obra em construção.

Vem a seguir o poema “VII”, que trata da pandemia do coronavírus. “no começo era apenas uma palavra suspeita / com significados desconhecidos e a legitimar”, dizem os dois primeiros versos. Depois vem o desenrolar da tragédia mundial: “milhões de infectados setecentos mil mortos / outros milhões de brasileiros enlutados”.

No texto, a poeta faz questão de ressaltar a “letalidade insaciável” do vírus, ainda assim “desprezada pelos lunáticos”. No caso brasileiro, os lunáticos estavam no poder, negando as vacinas e arquitetando negociatas com o desespero da população enlutada.

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O poema “XX” é um dos textos em que Dalila Teles Veras aponta para o ambiente cósmico. Mas essa virada para o contexto sideral não significa um abandono do que acontece aqui na Terra, este “pequeno astro sem luz / sem inteligência sem humanidade sem futuro”. Como se vê, tudo continua centrado em nosso planeta e não poupa de críticas os “humanoides zumbis terraplanistas bélicos”.

O texto “XXXIII”, outra peça metaliguística, retorna à seara da criação poética. A autora discorre sobre o que é necessário para a construção do poema: “um poema precisa do estrato mais invisível da engrenagem / aquele que não pode ser radiografado computadorizado / escaneado apalpado auscultado muito menos fotografado”. Como se vê, o poema exige algo que não se subordina aos poderes das novíssimas tecnologias.

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No poema “XXXVI”, Dalila Teles Veras declara os nomes da “multidão silenciosa” que segue com ela nos caminhos de sua “bibliovida”. São autores de poesia e prosa, cujos nomes aparecem colados uns aos outros, formando um objeto único. Lá estão Camões, Drummond, Cabral, Bandeira, Cecília, Clarice, Emily Dickinson, Saramago, Haroldo de Campos etc. etc. etc. Detalhe: este poema é dedicado à cantora Maria Bethânia, conhecida pelo seu valoroso trabalho de divulgação poética.

O último poema da seleção funda-se numa referência bem pessoal da autora. Escrito em primeira pessoa, começa citando a data em que a poeta completou “setenta e sete voltas em torno do sol”. Sempre atenta à realidade, ela constata que já viveu mais que a expectativa média mundial, que é de 73 anos. Considera-se, portanto, uma sobrevivente.

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Dalila (Isabel Agrela) Teles Veras nasceu na ilha da Madeira, Portugal, em 2 de julho de 1946. Emigrou para o Brasil ainda menina, em 1957. Em 1972, radicou-se em Santo André, no ABC Paulista, onde reside até hoje. Desde 1992, criou e dirige um ambiente cultural próprio, a Alpharrabio, um misto de livraria, editora e espaço para eventos.

Poeta e cronista, publicou cerca de vinte títulos. Ativista cultural, coordenou diversos projetos de divulgação literária. Foi diretora e secretária-geral da União Brasileira de Escritores (SP). Sua atividade cultural lhe rendeu o título de Doutora Honoris Causa da Universidade Federal do ABC, concedido em 2019.

A Dalila poeta já apareceu neste boletim em várias outras edições: n. 355, de 2016; n. 331, de 2015; e n. 72, de 2004.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Caminhos da “bibliovida”


• Dalila Teles Veras


              



Abel Manta - retrato de Berta Mendes
Abel Manta, português, Retrato de Berta Mendes (1934)


VI

o rubicão ali está e precisa ser atravessado
na margem a poeta e seu pálido poema hesitam

diante do incontornável ponto sem retorno
funda-se o gesto destemido e ação determinante

antes do mergulho

cantarola uma canção para embalar utopias
e braços flácidos nada e afunda nada e afunda

VII

no começo era apenas uma palavra suspeita
com significados desconhecidos e a legitimar

mal aprenderam a soletrar a indesejada
foram presenteados com outra variante
tão desconhecida quanto a já agora
familiar e intimidatória nova peste

em sua letalidade insaciável fez-se
respeitada e temida pelos mais lúcidos
desprezada pelos lunáticos plantonistas

após a primeira onda segunda onda
terceira onda quarta onda	          a guerra
batalhas travadas no escuro entre ciência
e obscurantismo subestimado
 			     	saldo aterrador 

milhões de infectados setecentos mil mortos
outros milhões de brasileiros enlutados
dois anos a tentar conhecer o inimigo
sensação de trégua tímida temerosa
sinais de retorno à vida e ao idealizado 

eis que novas descobertas novas ordens
o mundo volta a girar
		        desta vez ao contrário



abel manta - jogo de damas - 1927
Abel Manta, Jogo de damas (1927)


XX

o espaço-tempo vivido-decorrido em dois anos
hiato entre duas décadas e o restante se houver
transformou-se em inimagináveis buracos negros
devoradores de luz e produtores de escuridão
e não se tratou de fenômeno do sistema solar
nem previsões da teoria da relatividade geral
mas apenas erros de cálculo e falhas estratégicas
de humanoides zumbis terraplanistas bélicos
foi então que a terra pequeno astro sem luz
sem inteligência sem humanidade sem futuro
sucumbiu debaixo da estrela central do sistema
única fonte de luz e energia cadáver adiado
rebaixado a nanico planeta exposto à indiferença
do universo em permanente expansão

XXXIII

havia um projeto de poema atravessado na faringe algo
feito espinha de peixe osso de galinha ou algo que o valha
faringe laringe e traqueia em pânico na iminência do desastre

mas um poema não se constrói assim apenas com engasgos
é preciso que a ideia toque mais fundo passe pelo
estômago pâncreas fígado intestino e se livre dos gases

um poema precisa do extrato mais invisível da engrenagem
aquele que não pode ser radiografado computadorizado
escaneado apalpado auscultado muito menos fotografado

cabe àqueles que lidam com essa matéria não visível
conduzir o projeto ainda não poema até que se transfigure
e ofereça sua forma concreta àquilo que subjetivo estava



abel manta - nella maissa
Abel Manta, Nella Maissa


XXXVI

uma multidão silenciosa anda comigo
sigo confiante acompanhando-lhe o coro
orientando-me pelos muitos sublinhados
sustos paradas cardíacas descompassos

na biblioteca à noite é um farfalhar de páginas
tosses penas lápis teclas risos discretos
sigo-lhes os rastros farejo-lhes os suores
(re)conheço-os pela cadência do andar

OridesFontelaManuelBandeiraCecíliaMeireles
MáriodeAndradePatríciaGalvãoOswalddeAndrade
HildaHilstJoãoCabralAdéliaPradoMuriloMendes
ClariceLispectorJoãoGuimarãesRosaRenataPallottini
FernandoPessoaVirginiaWoolfEdgarMorinHenriqueta
LisboaCastroAlvesSophiadeMelloBreynerAndresen
HerbertoHelderNatáliaCorreiaFerreiraGullarMariaTeresa
HortaLuísdeCamõesCoraCoralinaGastãoCruzAnaLuísa
AmaralCarlosDrummonddeAndradeAnaHatherly
MáriodeSá-CarneiroFiamaHassePaisBrandãoFagundes
VarelaEmilyDickinsonHaroldodeCamposFlorbela
EspancaJoséSaramagoLuizaNetoJorgeMiguelTorga

deixam suas respectivas prateleiras e confraternizam

sempre que lhes acaricio as lombadas ou abro suas
					   páginas
ganham vida através do fato estético da leitura

ando sempre muito bem acompanhada
não mexe comigo que as feras acordam
transmitem o vírus e dele para sempre
ficarás cativo sem chances de retorno
bibliovida
                    		                                   para Maria Bethânia

XXXVII

neste dia dois de julho do ano dois mil e vinte e três
completo setenta e sete voltas em torno do sol

em fevereiro de dois mil e vinte e três dizem as estatísticas

a expectativa média de vida no mundo era de setenta e três anos
						 e quatro meses

só em meados deste nosso século vinte e um essa média deverá
			      alcançar setenta e sete anos.

ultrapassei as expectativas em três anos e seis meses
				sobrevivente declarada sou

lendo e criando, criando e lendo
			  contemporânea de mim mesma	




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Carlos Machado, 2024



• Dalila Teles Veras
   in Opções para morrer no espaço
   Patuá, São Paulo, 2024
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* Mario Quintana, "Só", in Caderno H (1973)
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* Imagens: quadros do pintor português Abel Manta (1888-1982)