Número 542 - Ano 22

Salvador, quarta-feira, 27 de novembro de 2024

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«É justo querer o impossível.» (Dante Milano) *

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José Carlos Capinan
José Carlos Capinan


Amigas e amigos,

Esta edição do boletim é do tipo poético-musical. O artista em foco é conhecido como poeta de livro e, mais ainda, como autor de letras musicais. Estou falando do baiano José Carlos Capinan (Esplanada, 1941), letrista emérito, que já adicionou palavras a melodias compostas por Gilberto Gil, Caetano Veloso, Edu Lobo, Jards Macalé, João Bosco, Joyce, Sueli Costa, Geraldo Azevedo, Paulinho da Viola, Moraes Moreira, Zé Ramalho etc.

O que traz Capinan hoje a esta página é o recente lançamento do volume Cancioneiro Geral [1962-2023] (Círculo de Poemas, 2024). Organizado por Claudio Leal e Leonardo Gandolfi, esse livro reúne poemas e inclui também uma seleção de letras de música escritas pelo autor.

Para ajudar o leitor a situar-se nos diferentes momentos históricos do autor e de sua obra, o livro oferece ainda um posfácio do jornalista Claudio Leal, mais um ensaio do crítico José Guilherme Merquior (1941-1991), além de um artigo do editor Ênio Silveira (1925-1996), da antiga Civilização Brasileira, editora e revista. Mas não é só: há ainda textos do parceiro Gilberto Gil e do jornalista Luiz Carlos Maciel (1938-2017), conhecido como “guru da contracultura” e fundador do jornal O Pasquim. À parte o posfácio de Claudio Leal, todos esses textos já haviam sido publicados em livros do poeta.

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Para este número do boletim, selecionei do livro alguns poemas e também algumas letras. No caso dos textos musicais, fiz questão de adicionar também videoclipes das canções. Assim, torna-se possível acompanhar as canções em sua integridade. Passemos, pois, à leitura e audição.

No poema “[Baobá]” (na verdade sem título), que abre a seleção ao lado, o poeta fala de suas origens familiares. O pai, seu Osmundo, e a mãe, dona Judite, “umbigos do mundo”. Curiosamente, nascido numa família de treze irmãos, ele compara a barriga da mãe a um velho baobá. Essa árvore africana, como se sabe, chega a viver mil anos. Por isso vários povos de África a consideram uma planta sagrada, porque testemunha a presença de muitas gerações. E os ancestrais do poeta estão lá: “Nossos avós nas paredes / Nos vigiavam em preto e branco”. Questão de fotografia e melanina.

No próximo poema, “A Eternidade aos Cinquenta”, o poeta mostra duas vertentes. De um lado, certa inclinação para o surrealismo: “Deus não vai mais ao baile / Não tem mais truque na cartola”. De outro, destaca-se a impenitente ironia: “Suas blasfêmias se perdem com o último ônibus no infinito / E nenhuma gatinha lambe o seu joelho ferido”.

Os dois poemas seguintes, “Relâmpagos” e “X” (dez), são haicais. Vem, depois, “Madrugadas de Narciso”, um discurso do personagem, solitário e autocentrado, que almeja tudo e não conquista nada. “Sou eu mesmo a terra à vista / Inalcançável”.

A seleta de poemas termina com “Quintas”. Ressalta-se aí a capacidade do poeta de brincar com as palavras e imbricá-las no texto. “Há neve / Há naves / Aves / Coisas graves / Há greve”.

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Passemos agora ao lado musical. A primeira letra escolhida é “Viramundo”, parceria com Gilberto Gil, que também corresponde a um dos primeiros sucessos do letrista. Associado à luta de camponeses e trabalhadores rurais, o viramundo promete: “Ainda viro este mundo / Em festa, trabalho e pão”.

A próxima letra, parceria de Capinan com Edu Lobo, é a premiada “Ponteio”, vencedora em 1967 do histórico Festival de Música Popular Brasileira da TV Record. Foi uma celebração de clássicos: em segundo lugar, “Domingo no Parque”, de Gilberto Gil; em terceiro, “Roda Viva”, de Chico Buarque; e em quarto, “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso.

Vem a seguir uma das canções mais emblemáticas do Tropicalismo, “Soy Loco por ti, América” (Gilberto Gil/Capinan, 1967). Inspirada na trajetória do líder político e guerrilheiro Ernesto Che Guevara (1928-1967), a letra, em português e espanhol, celebra o amor e a luta dos povos latino-americanos.

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E por falar em amor, é exatamente ele o eixo da próxima letra, “Coração Imprudente”, choro composto em parceria com Paulinho da Viola. “O que é que pode fazer / Um coração machucado?” A resposta, dada logo em seguida, é “cair no chorinho” e “Retirar de mansinho / De todo o amor o espinho / Profundamente deixado”. Mas, viciado em amar, o incorrigível coração, lá no fim, escolhe “Sofrer de novo o espinho / Deixar doer novamente”.

E o amor continua dando as cartas. Na próxima música, ele brinca com “Papel Machê” (João Bosco/Capinan, 1984): “Ser feliz / No teu colo dormir / E depois acordar / Sendo o seu colorido / Brinquedo de papel machê”.

A seleta musical chega ao fim com “Yáyá Massemba” (2005), letra de Capinan para melodia de Roberto Mendes, compositor baiano de Santo Amaro, o torrão natal de Caetano Veloso, Maria Bethânia e, mais para trás no tempo, Assis Valente (1911-1958), autor de “Camisa Listrada” e “Brasil Pandeiro”.

“Yáyá Massemba” é um canto da negritude brasileira. “Quem me pariu foi o ventre de um navio”. Isso dói fundo como um espinho que atravessa a carne dos séculos. “Quem me ouviu / Foi o vento no vazio / Do ventre escuro de um porão”. Mas Yáyá Massemba não para aí: “Vou baixar no seu terreiro / Epa raio, machado, trovão / Epa justiça de guerreiro”.

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Nascido em 1941, José Carlos Capinan mudou-se para Salvador em 1960. Advogado, médico, poeta, letrista e gestor cultural, Capinan publicou os seguintes livros de poesia: Bumba meu boi (1963); Inquisitorial (1966); Cidade de Navegação, Bahia e Gente (1975); Estrela do Norte, Adeus (1981); Poemas (1987); Confissões de Narciso (1995); Uma Canção de Amor às Árvores Desesperadas (1996);Balança Mas Hai-Kai (1996); Poemas (1996); Vinte Canções de Amor e um Poema Quase Desesperado (2014); e Cancioneiro Geral [1962-2023] (2024).

No lado musical, Capinan escreveu extenso número de letras. Citemos algumas conhecidas: “Clarice” (com Caetano Veloso); “Coração Imprudente” (com Paulinho da Viola); “Corrida de Jangada” (com Edu Lobo); “Gothan City” (com Jards Macalé); “Miserere Nobis” (com Gilberto Gil); “Moça Bonita” (com Geraldo Azevedo); “Papel machê” (com João Bosco); “Ponteio” (com Edu Lobo); “Soy Loco Por Ti, América” (com Gilberto Gil); “Viola Fora de Moda” (com Edu Lobo); “Viramundo” (com Gilberto Gil); e “Yáyá Massemba” (com Roberto Mendes).

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Uma historinha pessoal. Jamais encontrei o poeta José Carlos Capinan, nem mesmo à distância — por exemplo, ele no palco e eu na plateia. Contudo, tenho um caso que o envolve. Estudante do curso científico em Salvador, eu conhecia o letrista desde o primeiro disco de Gilberto Gil. Nessa época eu começara a ler os poetas do modernismo: Drummond, Bandeira, Cabral...

Certa vez, possivelmente em 1967, tomei emprestado na Biblioteca Pública o livro Um Dia Depois do Outro, do poeta paulista Cassiano Ricardo. Na época, colocavam nos livros um envelope com o histórico de empréstimos. Então, quem havia lido aquele livro antes de mim? Uau! José Carlos Capinan! Adolescente e fã de MPB, fiquei todo pimpão com aquela descoberta.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Festa, trabalho e pão


• José Carlos Capinan


              



Rafal Olbinski - Midsummer dreams-2006
Rafal Olbinski, pintor polonês, Sonhos de verão (2006)


• Poemas

[BAOBÁ]

A barriga de minha mãe lembrava um velho baobá
Umbigos do mundo, Ela e seu Osmundo

Dava frutos sumarentos
Seus rebentos amavam estar no mundo

Jogávamos dominó
Com gosto de fruta saborosa

Visgo e brigas
Desunião inseparável de nós

Nossos avós nas paredes
Nos vigiavam em preto e branco

A ETERNIDADE AOS CINQUENTA

               A Walter Queiroz
I
Deus não vai mais ao baile
Não tem mais truque na cartola
O Espírito Santo não decola
As asas sujas exangues

II
Cristo, olhai pra isto
O eterno Senhor está mais velho do que ontem
Não acha seus sais e tem achaques de velha tia
Arrumando os falsos seios de silicone
Desequilibra na calçada e cai
Mergulhando a ponta da saia lamé na lama
Suas blasfêmias se perdem com o último ônibus no
			infinito
E nenhuma gatinha lambe o seu joelho ferido
Sangra solitariamente o pai de Cristo
Enfim, o infinito saco divino está cheio dessa eterna
			condição de aplacar a dor 
Humana que espera a absolvição num ponto de táxi

III
Senhor, não vais mais ao baile
Estás tomando prosac e fosfosol
Depois que perdeste o último ônibus
Não cantas mais o angelus de memória
Nem decoras os novos rocks evangélicos
Cabe ao menino estender e sacudir o lençol, cultivar e
	mandar flores às tuas amantes
A ti te cabe escovar a manhã fisiológica, outra vez
	comer, meter a mão no bolso e pagar a conta
Ele não conta
Ele te embala, balança e arranja o melhor programa
	como o enamorado aturdido um patético buquê
	arranja
Então acordas
E quando acordas, ele cordato ajeita a roupa, esteja
	nova ou há muito tempo rota
São quase duas e ele é cúmplice de tua dúvida
Se apenas uma, ele sacode a poeira, dobra a bainha,
	experimenta a manga
E acasala os botões um a um, em cada uma
Mas então anoitece e repentinamente estás com medo
As veias na Bahia não te revelam esses futuros segredos
Ele se antecipa em silêncio nas indecifráveis esquinas e
	vai morrendo todas as mortes que o mistério planta
	nas esquinas
Sempre adormeces ou adoeces ante as navalhas os
	punhais as giletes
Mas enquanto ele sangra e morre, o espanto da vida
	milagrosamente te cura
E assim ambicioso e tão valente, vais em frente
	acreditando apenas em tua bravura




Rafal Olbinski - Somewhere in time
Rafal Olbinski, Em algum lugar do tempo


RELÂMPAGOS

Aves que não voam
Lá se vão os trovões
Pássaros que soam

HAICAI X

Se tua estrela não tem clarão
Aguenta firme, camarada
Foi uma cigana cega quem leu a tua mão

MADRUGADAS DE NARCISO

Encalho nas madrugadas as minhas velas em farrapos
Sou eu mesmo os marinheiros
Sou eu mesmo a cabotagem
Sou eu quem traça os portos do roteiro
E torna em desespero a bússola da viagem

Naufrago nas madrugadas
Mas eu mesmo me faço nadar em vão até as mais
longínquas praias
Sou eu a maresia, a calmaria e a tempestade
Sou eu mesmo a terra à vista
Inalcançável

QUINTAS

Há neve
Há naves
Aves
Coisas graves
Há greve

Há chá
Há chave
Os ares
Caras graves
Vento leste

Há peste
Repastos
(E paz?)
Há os gases
Letais

Há modas
Amadas

Um ás
De espadas
Espáduas

As almas
Os elmos
E ainda mais
Infernos
E nada

• Letras de música




Gilberto Gil: “Viramundo” (Gilberto Gil/Capinan, 1965)
Clique na imagem para assistir ao videoclipe


VIRAMUNDO

Sou viramundo virado
Nas rondas da maravilha
Cortando a faca e facão
Os desatinos da vida
Gritando para assustar
A coragem da inimiga
Pulando pra não ser preso
Pelas cadeias da intriga
Prefiro ter toda a vida
A vida como inimiga
A ter na morte da vida
Minha sorte decidida

Sou viramundo virado
Pelo mundo do sertão
Mas inda viro este mundo
Em festa, trabalho e pão
Virado será o mundo
E viramundo verão
O virador deste mundo
Astuto, mau e ladrão
Ser virado pelo mundo
Que virou com certidão
Ainda viro este mundo
Em festa, trabalho e pão
	(Com música de Gilberto Gil, 1965)




Edu Lobo: “Ponteio” (Edu Lobo/Capinan, 1967)
Clique na imagem para assistir ao videoclipe


PONTEIO

Era um, era dois, era cem
Era o mundo chegando e ninguém
Que soubesse que sou violeiro
Que me desse amor ou dinheiro
Era um, era dois, era cem
E vieram pra me perguntar
Oh você de onde vai, de onde vem?
Diga logo o que tem pra contar
Parado no meio do mundo
Senti chegar meu momento
Olhei pro mundo e nem via
Nem sombra nem sol nem vento

Quem me dera agora
Eu tivesse a viola pra cantar

Era um dia, era claro, quase meio
Era um canto calado sem ponteio
Violência viola violeiro
Era morte em redor mundo inteiro
Era um dia, era claro, quase meio
Tinha um que jurou me quebrar
Mas não me lembro de dor nem receio
Só sabia das ondas do mar
Jogaram a viola no mundo
Mas fui lá no fundo buscar
Se tomo a viola ponteio
Meu canto não posso parar

Quem me dera agora
Eu tivesse a viola pra cantar

Era um, era dois, era cem
Era um dia, era claro, quase meio
Encerrar meu cantar já convém
Prometendo um novo ponteio

Certo dia que sei por inteiro
Eu espero não vá demorar
Este dia estou certo que vem
Digo logo que vim pra buscar

Parado no meio do mundo
Não deixo a viola de lado
Vou ver o tempo mudado
E um novo lugar pra cantar

Quem me dera agora
Eu tivesse a viola pra cantar
	((Com música de Edu Lobo, 1967))




Gilberto Gil na ONU, em 2003: “Soy loco por ti, América”
(Gilberto Gil/Capinan, 1967)
Clique na imagem para assistir ao videoclipe


SOY LOCO POR TI, AMÉRICA

Soy loco por ti, América
Yo voy traer una mujer playera
Que su nombre sea Marti
Que su nombre sea Marti
Soy loco por ti de amores
Tenga como colores la espuma blanca de Latinoamérica
Y el cielo como bandera
Y el cielo como bandera

Soy loco por ti, América
Soy loco por ti de amores

Sorriso de quase nuvem
Os rios, canções, o medo
O corpo cheio de estrelas
O corpo cheio de estrelas
Como se chama a amante
Desse país sem nome, esse tango, esse rancho, esse
	povo, dizei-me, arde
O fogo de conhecê-la
O fogo de conhecê-la

Soy loco por ti, América
Soy loco por ti de amores

El nombre dei hombre muerto
Ya no se puede decirlo, quién sabe?
Antes que o dia arrebente
Antes que o dia arrebente
El nombre dei hombre muerto
Antes que a definitiva noite se espalhe em
	Latinoamérica
PI nombre dei hombre es pueblo
g! nombre dei hombre es Pueblo

Soy loco por ti, América
Soy loco por ti de amores

Espero a manhã que cante
El nombre dei hombre muerto
Não sejam palavras tristes
Soy loco por ti de amores
Um poema ainda existe
Com palmeiras, com trincheiras, canções de guerra,
	quem sabe canções do mar
Ai, hasta te comover
Ai, hasta te comover

Soy loco por ti, América
Soy loco por ti de amores

Estou aqui de passagem
Sei que adiante um dia vou morrer
De susto, de bala ou vício
De susto, de bala ou vício
Num precipício de luzes	
Entre saudades, soluços, eu vou de bruços
	nos braços, nos olhos
Nos braços de uma mulher
Nos braços de uma mulher

Mais apaixonado ainda
Dentro dos braços da camponesa, guerrilheira,
	manequim ai de mim
Nos braços de quem me queira
Nos braços de quem me queira

Soy loco por ti, América
Soy loco por ti de amores
	(Com música de Gilberto Gil, 1967)




Paulinho da Viola: “Coração imprudente”
(Paulinho da Viola/Capinan, 1972)
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CORAÇÃO IMPRUDENTE

O que é que pode fazer
Um coração machucado
Se não cair no chorinho
Bater devagarinho pra não ser notado
E depois de ter chorado
Retirar de mansinho
De todo o amor o espinho
Profundamente deixado

O que é que pode fazer
Um coração imprudente
Se não fugir um pouquinho
De seu bater descuidado
E depois de cair no chorinho
Sofrer de novo o espinho
Deixar doer novamente
	(Com música de Paulinho da Viola, 1972)




João Bosco: “Papel machê” (João Bosco/Capinan, 1984)
Clique na imagem para assistir ao videoclipe


PAPEL MACHÊ

Cores do mar
Festa do sol
Vida é fazer
Todo sonho brilhar
Ser feliz
No teu colo dormir
E depois acordar
Sendo o seu colorido
Brinquedo de papel machê

Dormir no teu colo
É tornar a nascer
Violeta e azul
Outro ser
Luz do querer
Não vai desbotar
Lilás cor do mar
Seda cor de batom
Arco-íris crepom
Nada vai desbotar
Brinquedo de papel machê
	(Com música de João Bosco, 1984)




Maria Bethânia: “Yáyá Massemba” (Roberto Mendes/Capinan, 2005)
Clique na imagem para assistir ao videoclipe


YÁYÁ MASSEMBA

Que noite mais funda calunga
No porão de um navio negreiro
Que viagem mais longa candonga
Ouvindo o batuque das ondas
Compasso de um coração de pássaro
No fundo do cativeiro
É o semba do mundo calunga
Batendo samba em meu peito
Kaô Kabiecilê Kaô ôô
Okê arô okê

Quem me pariu
Foi o ventre de um navio
Quem me ouviu
Foi o vento no vazio
Do ventre escuro de um porão
Vou baixar no seu terreiro
Epa raio, machado, trovão
Epa justiça de guerreiro

Ê semba ê, ê samba á
O batuque das ondas
Nas noites mais longas
Me ensinou a cantar
Ê semba ê, ê samba á

Dor é o lugar mais fundo
É o umbigo do mundo
É o fundo do mar
Ê semba ê, ê samba á

No balanço das ondas
Okê arô me ensinou
A bater seu tambor
Ê semba ê, ê samba á
No escuro porão
Eu vi o clarão 
Do giro do mundo

Que noite mais funda calunga
No porão de um navio negreiro
Que viagem mais longa candonga
Ouvindo o batuque das ondas
Compasso de um coração de pássaro
No fundo do cativeiro
É o semba do mundo calunga
Batendo samba em meu peito
Kaô Kabiecilê Kaô ôô
Okê arô okê

Quem me pariu foi o ventre de um navio
Quem me ouviu foi o vento no vazio
Do ventre escuro de um porão
Vou baixar no seu terreiro
Epa raio, machado, trovão
Epa justiça de guerreiro

Ê semba ê, ê samba á
É o céu que cobriu
Nas noites de frio
Minha solidão
Ê semba ê, ê samba á
É oceano sem fim
Sem amor, sem irmão
É Kaô, quero ser seu tambor

Ê semba ê, ê samba á
Eu faço a lua brilhar
O esplendor e clarão
Luar de Luanda
Em meu coração
Umbigo da cor
Abrigo da dor
Primeira umbigada
Massemba Yáyá
Yáyá Massemba
É o samba que dá

Vou aprender a ler para ensinar meus camaradas
	(Com música de Roberto Mendes, 2005)




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Carlos Machado, 2024



 José Carlos Capinan
   • Todos os poemas e todas as letras musicais
   in Cancioneiro Geral [1962-2023]
   Organização Claudio Leal e Leonardo Gandolfi
   Círculo de Poemas, São Paulo, 2024
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* Dante Milano, "Poemas de um verso", in Obra Reunida, ABL, Rio de Janeiro (2004)
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* Imagens: obras do pintor polonês Rafal Olbinski (1943-), que define sua arte como "surrealismo poético". Olbinski vive nos EUA.