Amigas e amigos,
Esta edição do boletim é do tipo poético-musical. O artista em foco é conhecido como poeta de livro e, mais ainda, como autor de letras musicais.
Estou falando do baiano José Carlos Capinan (Esplanada, 1941), letrista emérito, que já adicionou palavras a melodias compostas
por Gilberto Gil, Caetano Veloso, Edu Lobo, Jards Macalé, João Bosco, Joyce, Sueli Costa, Geraldo Azevedo, Paulinho da Viola, Moraes
Moreira, Zé Ramalho etc.
O que traz Capinan hoje a esta página é o recente lançamento do volume Cancioneiro Geral [1962-2023] (Círculo de Poemas, 2024).
Organizado por Claudio Leal e Leonardo Gandolfi, esse livro reúne poemas e inclui também uma seleção de letras de música
escritas pelo autor.
Para ajudar o leitor a situar-se nos diferentes momentos históricos do autor e de sua obra, o livro oferece ainda um posfácio do
jornalista Claudio Leal, mais um ensaio do crítico José Guilherme Merquior (1941-1991), além de um artigo do editor Ênio Silveira
(1925-1996), da antiga Civilização Brasileira, editora e revista. Mas não é só: há ainda textos do parceiro Gilberto Gil e do jornalista
Luiz Carlos Maciel (1938-2017), conhecido como “guru da contracultura” e fundador do jornal O Pasquim. À parte o posfácio de
Claudio Leal, todos esses textos já haviam sido publicados em livros do poeta.
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Para este número do boletim, selecionei do livro alguns poemas e também algumas letras. No caso dos textos musicais, fiz questão de
adicionar também videoclipes das canções. Assim, torna-se possível acompanhar as
canções em sua integridade. Passemos, pois, à leitura e audição.
No poema “[Baobá]” (na verdade sem título), que abre a seleção ao lado, o poeta fala de suas origens familiares. O pai, seu Osmundo,
e a mãe, dona Judite, “umbigos do mundo”. Curiosamente, nascido numa família de treze irmãos, ele compara a barriga da mãe a um velho
baobá. Essa árvore africana, como se sabe, chega a viver mil anos. Por isso vários povos de África a consideram uma planta sagrada,
porque testemunha a presença de muitas gerações. E os ancestrais do poeta estão lá: “Nossos avós nas paredes / Nos vigiavam em preto e branco”.
Questão de fotografia e melanina.
No próximo poema, “A Eternidade aos Cinquenta”, o poeta mostra duas vertentes. De um lado, certa inclinação para o surrealismo:
“Deus não vai mais ao baile / Não tem mais truque na cartola”. De outro, destaca-se a impenitente ironia: “Suas blasfêmias se
perdem com o último ônibus no infinito / E nenhuma gatinha lambe o seu joelho ferido”.
Os dois poemas seguintes, “Relâmpagos” e “X” (dez), são haicais. Vem, depois, “Madrugadas de Narciso”, um discurso do personagem,
solitário e autocentrado, que almeja tudo e não conquista nada. “Sou eu mesmo a terra à vista / Inalcançável”.
A seleta de poemas termina com “Quintas”. Ressalta-se aí a capacidade do poeta de brincar com as palavras e imbricá-las no texto.
“Há neve / Há naves / Aves / Coisas graves / Há greve”.
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Passemos agora ao lado musical. A primeira letra escolhida é “Viramundo”, parceria com Gilberto Gil, que também corresponde a um
dos primeiros sucessos do letrista. Associado à luta de camponeses e trabalhadores rurais, o viramundo promete:
“Ainda viro este mundo / Em festa, trabalho e pão”.
A próxima letra, parceria de Capinan com Edu Lobo, é a premiada “Ponteio”, vencedora em 1967 do histórico Festival de Música
Popular Brasileira da TV Record. Foi uma celebração de clássicos: em segundo lugar, “Domingo no Parque”, de Gilberto
Gil; em terceiro, “Roda Viva”, de Chico Buarque; e em quarto, “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso.
Vem a seguir uma das canções mais emblemáticas do Tropicalismo, “Soy Loco por ti, América” (Gilberto Gil/Capinan, 1967). Inspirada
na trajetória do líder político e guerrilheiro Ernesto Che Guevara (1928-1967), a letra, em português e espanhol, celebra o amor
e a luta dos povos latino-americanos.
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E por falar em amor, é exatamente ele o eixo da próxima letra, “Coração Imprudente”, choro composto em parceria com Paulinho da Viola.
“O que é que pode fazer / Um coração machucado?” A resposta, dada logo em seguida, é “cair no chorinho” e “Retirar de mansinho /
De todo o amor o espinho / Profundamente deixado”. Mas, viciado em amar, o incorrigível coração, lá no fim, escolhe “Sofrer de novo
o espinho / Deixar doer novamente”.
E o amor continua dando as cartas. Na próxima música, ele brinca com “Papel Machê” (João Bosco/Capinan, 1984): “Ser feliz /
No teu colo dormir / E depois acordar / Sendo o seu colorido / Brinquedo de papel machê”.
A seleta musical chega ao fim com “Yáyá Massemba” (2005), letra de Capinan para melodia de Roberto Mendes, compositor baiano de
Santo Amaro, o torrão natal de Caetano Veloso, Maria Bethânia e, mais para trás no tempo, Assis Valente (1911-1958), autor de
“Camisa Listrada” e “Brasil Pandeiro”.
“Yáyá Massemba” é um canto da negritude brasileira. “Quem me pariu foi o ventre de um navio”. Isso dói fundo como um espinho
que atravessa a carne dos séculos. “Quem me ouviu / Foi o vento no vazio / Do ventre escuro de um porão”. Mas Yáyá Massemba
não para aí: “Vou baixar no seu terreiro / Epa raio, machado, trovão / Epa justiça de guerreiro”.
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Nascido em 1941, José Carlos Capinan mudou-se para Salvador em 1960. Advogado, médico, poeta, letrista e gestor cultural,
Capinan publicou os seguintes livros de poesia: Bumba meu boi (1963); Inquisitorial (1966); Cidade de Navegação,
Bahia e Gente (1975); Estrela do Norte, Adeus (1981); Poemas (1987); Confissões de Narciso (1995);
Uma Canção de Amor às Árvores Desesperadas (1996);Balança Mas Hai-Kai (1996); Poemas (1996); Vinte
Canções de Amor e um Poema Quase Desesperado (2014); e Cancioneiro Geral [1962-2023] (2024).
No lado musical, Capinan escreveu extenso número de letras. Citemos algumas conhecidas: “Clarice” (com Caetano Veloso); “Coração
Imprudente” (com Paulinho da Viola); “Corrida de Jangada” (com Edu Lobo); “Gothan City” (com Jards Macalé); “Miserere Nobis”
(com Gilberto Gil); “Moça Bonita” (com Geraldo Azevedo); “Papel machê” (com João Bosco); “Ponteio” (com Edu Lobo);
“Soy Loco Por Ti, América” (com Gilberto Gil); “Viola Fora de Moda” (com Edu Lobo); “Viramundo” (com Gilberto Gil);
e “Yáyá Massemba” (com Roberto Mendes).
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Uma historinha pessoal. Jamais encontrei o poeta José Carlos Capinan, nem mesmo à distância — por exemplo, ele no palco e eu na
plateia. Contudo, tenho um caso que o envolve. Estudante do curso científico em Salvador, eu conhecia o letrista desde o primeiro
disco de Gilberto Gil. Nessa época eu começara a ler os poetas do modernismo: Drummond, Bandeira, Cabral...
Certa vez, possivelmente em 1967, tomei emprestado na Biblioteca Pública o livro Um Dia Depois do Outro, do poeta paulista
Cassiano Ricardo. Na época, colocavam nos livros um envelope com o histórico de empréstimos. Então, quem havia lido aquele livro
antes de mim? Uau! José Carlos Capinan! Adolescente e fã de MPB, fiquei todo pimpão com aquela descoberta.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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