Carlos Drummond de Andrade
Caros,
Transcrevo ao lado uma parte da entrevista que o poeta Carlos Drummond de
Andrade concedeu ao jornalista Luiz Fernando Emediato, publicada sob o título
"Claros enigmas" no jornal O Estado de S. Paulo, em 15 de agosto de 1987.
Na entrevista, Drummond fala sobre a infância, a escola, a juventude em Belo
Horizonte. Fala também de poesia, morte e política. Selecionei, ao lado, o
trecho em que o poeta discorre sobre poesia, o ato de criar, a sensação de estar
no mundo, seu agnosticismo e a esperança.
Vale observar um detalhe, que é a data de publicação dessa entrevista, saída
para as bancas dois dias antes da morte do poeta. Por isso é apresentada como
sendo "a última entrevista de Drummond".
Não sei exatamente em qual data ocorreu a conversa entre Emediato e Drummond.
Noto, porém, que há outra entrevista, igualmente apresentada como "a última",
feita pelo jornalista Geneton Moraes Neto e publicada no livro O Dossiê
Drummond (Ed. Globo, 1994).
Nesse livro, Geneton informa que sua entrevista foi gravada cinco dias antes da
morte de Maria Julieta, filha do poeta, que ocorreu em 5 de agosto de 1987. Como
o poeta faleceu dez dias depois da filha, a conversa com Emediato só pode
realmente ser a última se tiver sido feita nesse intervalo de cinco dias.
Porque, por motivos óbvios, é improvável que o poeta tenha dado entrevista após
a perda da filha.
Mas o fato de ser ou não "a última" não tem a menor importância.
Ambas são entrevistas muito bem conduzidas. E melhor ainda é o entrevistado
— vivaz e interessante até o fim.
Carlos Machado
Mais Drummond:
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Sou partidário da
inspiração
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Carlos Drummond de Andrade
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Trecho de entrevista a
Luiz Fernando Emediato |
Drummond: estátua na praia de Copacabana, Rio de Janeiro
EMEDIATO
‒ Vamos falar de literatura, então. Mas o senhor não acha
que sua obra pode ter sido determinada pelo que aconteceu na sua infância,
na sua adolescência e, depois, na sua maturidade, essa carga toda de
experiência de vida?
DRUMMOND ‒ A minha obra literária foi determinada pela circunstância de eu
ser mineiro. Mineiro do interior de Minas, uma região de mineração, onde a
dificuldade de comunicação era maior do que em outras zonas do Estado. Nós
vivíamos ilhados. Éramos fechados por necessidade e por contingência
O senhor acha então que Minas é um lugar especial?
Drummond ‒ Você é mineiro, não é? Minas foi um lugar especial. Hoje não é.
O senhor foi autodidata, não é? Isso por acaso o limitou em alguma
coisa?
Drummond ‒ É, eu fiz maus cursos. Tenho apenas o terceiro ano ginasial.
Estudei Farmácia numa escola livre. Eu não tenho uma formação cultural
básica, não é?, que possa ser caracterizada como de um escritor de nível
médio. Um escritor consciente de seu ofício deveria ter uma formação
cultural bastante boa, como de conhecimento de literaturas estrangeiras. A
minha formação foi mais francesa.
Será que sua poesia teria sido diferente se o senhor tivesse tido uma
formação cultural e filosófica mais profunda?
Drummond ‒ Não sei. Uma grande parte da cultura que a pessoa absorve para
uma carreira literária é para não ser consumida, é só para servir de pano de
fundo. Na realidade, a gente obedece a um impulso interior, à capacidade de
imaginação que nós temos. Porque, se fôssemos nos prender àquilo que lemos
ou aprendemos não escreveríamos nada. Todas as obras-primas já foram
escritas. O contemporâneo não conta, a meu ver.
O senhor consegue explicar essa emoção que o leva a escrever intuitivamente?
Drummond ‒ Eu sou inteiramente partidário da ideia da inspiração. Seja
banal, antiquado, mas sem inspiração não se faz nem se escreve nada. A
pessoa adquire a técnica de se comunicar e tem facilidade, como eu tenho, de
escrever coisas. Mas aquela coisa profunda que vem das entranhas da gente,
isto é inspiração.
Que é que o senhor sente no fundo do coração quando está criando?
Drummond ‒ Quando estou criando um poema eu sinto uma certa exaltação
física, um certo ardor. (Pausa) Não, não exageremos; também não é um estado
de transe, de levitação. Mas sinto uma espécie de emoção particular que me
impele a escrever. E isso me surge até em horas imprevistas, diante de um
espetáculo, de uma criança dormindo na rua, um cachorro mexendo com o rabo,
uma moça. Qualquer destas coisas pode provocar na gente um estado poético.
Ao lado disso, há o lado crítico, depois.
Os seus escritos têm dois lados: um é humorado, alegre, lúdico. O outro é
amargo. Qual dos dois é o verdadeiro?
Drummond ‒ Eu acho que o mais sincero é o lado amargo, não é? Eu sou uma
pessoa inteiramente pessimista, cética. Não acredito em nenhum valor de
ordem política, filosófica, social ou religiosa. Acho a vida uma experiência
que tem de ser vivida, mas que se esgota e termina, acabou, não tem nada.
Vale a pena viver, apesar disso?
Drummond ‒ Claro, porque deram a você essa oportunidade.
Ou viver é só uma fatalidade?
Drummond ‒ É, porque você não pediu, você foi chamado. Então é uma
fatalidade neste sentido. Então procure viver o menos desagradavelmente
possível.
O senhor acredita em Deus?
Drummond ‒ Não.
Só isso? Não?!
Drummond ‒ Sou rigorosamente agnóstico. Uma pessoa que não pode afirmar a
inexistência de Deus, da mesma maneira que não pode afirmar a existência.
Não tenho, na minha capacidade intelectual, condições para afirmar que Deus
existe. E, a não ser os teólogos, duvido que alguém mais tenha capacidade
para isso. Mas eu passo muito bem sem Deus. Não me dá remorso e foi uma
conquista da minha vida, à qual agradeço em parte aos meus queridos
jesuítas. Porque eles é que começaram a fazer desabar em mim a ideia de Deus
como um Todo-Poderoso que regula a vida e a morte das pessoas. Mas respeito
profundamente qualquer forma de religião.
E a morte?
Drummond ‒ Eu estou encarando, não é? Outro dia um amigo meu perguntou a
outro: "Você pensa na morte?" E ele respondeu: "Não penso em outra coisa".
O senhor brinca muito com a ideia da morte.
Drummond ‒ Desde menino que eu penso na morte. Sabe, eu queria ser cremado,
mas não existe crematório no Rio, a Santa Casa, que vive do negócio de
vender túmulos, impede a criação de crematórios. Quis ser então cremado em
São Paulo, quando morrer, mas dá tanto trabalho, é preciso levar uma
testemunha. Uma burocracia. Não quero chatear ninguém, então comprei um
túmulo no cemitério São João Batista, aqui no Rio. Tenho lá uma situação
privilegiada, porque o meu túmulo está no alto do morro. No mesmo nível do
mausoléu da Academia Brasileira de Letras. Então é de igual para igual
(risos). Mas, sabe eu tenho pena das pessoas que vão me sepultar, porque
para chegar ao meu túmulo é preciso subir uma escadinha estreita. Não vai
ser fácil. Mas não tenho culpa, foi o lugar que encontrei para comprar, não
tinha outro.
O senhor é feliz?
Drummond ‒ Não sei. Não sei. Eu não sei o que é ser feliz. Eu vivo, e vivo
em paz com meus semelhantes.
O que é a esperança, para o senhor?
Drummond ‒ Um fio muito fino, ao qual eu me agarro para não morrer
desesperado.
Um de seus poemas, “José”, é um poema desesperado, mas no final ele não se
mata, ou seja: o senhor escreve coisas amargas, mas às vezes deixa uma
abertura, uma ponta de esperança.
Drummond ‒ Sim, ele não se mata. Ele marcha, ele anda.
O que o senhor acha do suicídio?
Drummond ‒ Uma solução heroica. De uma grandeza moral enorme. A não ser,
claro, quando o suicida é doente, que se mata porque está privado do
raciocínio.
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Outras Palavras
Carlos Machado,
2014
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• Outras Palavras
Entrevista: Luiz Fernando Emediato
O Estado de S. Paulo, 15/08/1987 _______________ *
Elias Canetti De uma página de seu diário, trad. de Nelson
Ascher
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