Número 9

06/08/2014

«A morte (...) Seu grau de dureza é dez e ela corta como diamante.» (Elias Canetti) *
 


Carlos Drummond de Andrade

Caros,

Transcrevo ao lado uma parte da entrevista que o poeta Carlos Drummond de Andrade concedeu ao jornalista Luiz Fernando Emediato, publicada sob o título "Claros enigmas" no jornal O Estado de S. Paulo, em 15 de agosto de 1987.

Na entrevista, Drummond fala sobre a infância, a escola, a juventude em Belo Horizonte. Fala também de poesia, morte e política. Selecionei, ao lado, o trecho em que o poeta discorre sobre poesia, o ato de criar, a sensação de estar no mundo, seu agnosticismo e a esperança.

Vale observar um detalhe, que é a data de publicação dessa entrevista, saída para as bancas dois dias antes da morte do poeta. Por isso é apresentada como sendo "a última entrevista de Drummond".

Não sei exatamente em qual data ocorreu a conversa entre Emediato e Drummond. Noto, porém, que há outra entrevista, igualmente apresentada como "a última", feita pelo jornalista Geneton Moraes Neto e publicada no livro O Dossiê Drummond (Ed. Globo, 1994).

Nesse livro, Geneton informa que sua entrevista foi gravada cinco dias antes da morte de Maria Julieta, filha do poeta, que ocorreu em 5 de agosto de 1987. Como o poeta faleceu dez dias depois da filha, a conversa com Emediato só pode realmente ser a última se tiver sido feita nesse intervalo de cinco dias. Porque, por motivos óbvios, é improvável que o poeta tenha dado entrevista após a perda da filha.

Mas o fato de ser ou não "a última" não tem a menor importância. Ambas são entrevistas muito bem conduzidas. E melhor ainda é o entrevistado vivaz e interessante até o fim.

Carlos Machado


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Sou partidário da inspiração

                                   Carlos Drummond de Andrade
 

Trecho de entrevista a Luiz Fernando Emediato






Drummond - estátua em Copacabana
Drummond: estátua na praia de Copacabana, Rio de Janeiro



EMEDIATO
Vamos falar de literatura, então. Mas o senhor não acha que sua obra pode ter sido determinada pelo que aconteceu na sua infância, na sua adolescência e, depois, na sua maturidade, essa carga toda de experiência de vida?

DRUMMOND
A minha obra literária foi determinada pela circunstância de eu ser mineiro. Mineiro do interior de Minas, uma região de mineração, onde a dificuldade de comunicação era maior do que em outras zonas do Estado. Nós vivíamos ilhados. Éramos fechados por necessidade e por contingência

O senhor acha então que Minas é um lugar especial?
Drummond
Você é mineiro, não é? Minas foi um lugar especial. Hoje não é.

O senhor foi autodidata, não é? Isso por acaso o limitou em alguma coisa?
Drummond
É, eu fiz maus cursos. Tenho apenas o terceiro ano ginasial. Estudei Farmácia numa escola livre. Eu não tenho uma formação cultural básica, não é?, que possa ser caracterizada como de um escritor de nível médio. Um escritor consciente de seu ofício deveria ter uma formação cultural bastante boa, como de conhecimento de literaturas estrangeiras. A minha formação foi mais francesa.

Será que sua poesia teria sido diferente se o senhor tivesse tido uma formação cultural e filosófica mais profunda?
Drummond
Não sei. Uma grande parte da cultura que a pessoa absorve para uma carreira literária é para não ser consumida, é só para servir de pano de fundo. Na realidade, a gente obedece a um impulso interior, à capacidade de imaginação que nós temos. Porque, se fôssemos nos prender àquilo que lemos ou aprendemos não escreveríamos nada. Todas as obras-primas já foram escritas. O contemporâneo não conta, a meu ver.

O senhor consegue explicar essa emoção que o leva a escrever intuitivamente?
Drummond
Eu sou inteiramente partidário da ideia da inspiração. Seja banal, antiquado, mas sem inspiração não se faz nem se escreve nada. A pessoa adquire a técnica de se comunicar e tem facilidade, como eu tenho, de escrever coisas. Mas aquela coisa profunda que vem das entranhas da gente, isto é inspiração.

Que é que o senhor sente no fundo do coração quando está criando?
Drummond
Quando estou criando um poema eu sinto uma certa exaltação física, um certo ardor. (Pausa) Não, não exageremos; também não é um estado de transe, de levitação. Mas sinto uma espécie de emoção particular que me impele a escrever. E isso me surge até em horas imprevistas, diante de um espetáculo, de uma criança dormindo na rua, um cachorro mexendo com o rabo, uma moça. Qualquer destas coisas pode provocar na gente um estado poético. Ao lado disso, há o lado crítico, depois.

Os seus escritos têm dois lados: um é humorado, alegre, lúdico. O outro é amargo. Qual dos dois é o verdadeiro?
Drummond
Eu acho que o mais sincero é o lado amargo, não é? Eu sou uma pessoa inteiramente pessimista, cética. Não acredito em nenhum valor de ordem política, filosófica, social ou religiosa. Acho a vida uma experiência que tem de ser vivida, mas que se esgota e termina, acabou, não tem nada.

Vale a pena viver, apesar disso?
Drummond
Claro, porque deram a você essa oportunidade.

Ou viver é só uma fatalidade?
Drummond
É, porque você não pediu, você foi chamado. Então é uma fatalidade neste sentido. Então procure viver o menos desagradavelmente possível.

O senhor acredita em Deus?
Drummond
Não.

Só isso? Não?!
Drummond
Sou rigorosamente agnóstico. Uma pessoa que não pode afirmar a inexistência de Deus, da mesma maneira que não pode afirmar a existência. Não tenho, na minha capacidade intelectual, condições para afirmar que Deus existe. E, a não ser os teólogos, duvido que alguém mais tenha capacidade para isso. Mas eu passo muito bem sem Deus. Não me dá remorso e foi uma conquista da minha vida, à qual agradeço em parte aos meus queridos jesuítas. Porque eles é que começaram a fazer desabar em mim a ideia de Deus como um Todo-Poderoso que regula a vida e a morte das pessoas. Mas respeito profundamente qualquer forma de religião.

E a morte?
Drummond
Eu estou encarando, não é? Outro dia um amigo meu perguntou a outro: "Você pensa na morte?" E ele respondeu: "Não penso em outra coisa".

O senhor brinca muito com a ideia da morte.
Drummond
Desde menino que eu penso na morte. Sabe, eu queria ser cremado, mas não existe crematório no Rio, a Santa Casa, que vive do negócio de vender túmulos, impede a criação de crematórios. Quis ser então cremado em São Paulo, quando morrer, mas dá tanto trabalho, é preciso levar uma testemunha. Uma burocracia. Não quero chatear ninguém, então comprei um túmulo no cemitério São João Batista, aqui no Rio. Tenho lá uma situação privilegiada, porque o meu túmulo está no alto do morro. No mesmo nível do mausoléu da Academia Brasileira de Letras. Então é de igual para igual (risos). Mas, sabe eu tenho pena das pessoas que vão me sepultar, porque para chegar ao meu túmulo é preciso subir uma escadinha estreita. Não vai ser fácil. Mas não tenho culpa, foi o lugar que encontrei para comprar, não tinha outro.

O senhor é feliz?
Drummond
Não sei. Não sei. Eu não sei o que é ser feliz. Eu vivo, e vivo em paz com meus semelhantes.

O que é a esperança, para o senhor?
Drummond
Um fio muito fino, ao qual eu me agarro para não morrer desesperado.

Um de seus poemas, “José”, é um poema desesperado, mas no final ele não se mata, ou seja: o senhor escreve coisas amargas, mas às vezes deixa uma abertura, uma ponta de esperança.
Drummond
Sim, ele não se mata. Ele marcha, ele anda.

O que o senhor acha do suicídio?
Drummond
Uma solução heroica. De uma grandeza moral enorme. A não ser, claro, quando o suicida é doente, que se mata porque está privado do raciocínio.

 

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Outras Palavras

Carlos Machado, 2014

•  Outras Palavras
    Entrevista: Luiz Fernando Emediato
    O Estado de S. Paulo
, 15/08/1987
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* Elias Canetti
   De uma página de seu diário, trad. de Nelson Ascher