Fernando Pessoa
Caros,
Em janeiro de 1935, o último ano de sua vida, o poeta português Fernando Pessoa
escreveu uma carta ao crítico Adolfo Casais Monteiro. Nessa missiva, Pessoa
responde a perguntas que lhe haviam sido feitas pelo amigo e, em especial,
esclarece como criou os intrigantes personagens-poetas que chamou de
heterônimos: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos.
•o•
Nascido em Portugal, na
cidade do Porto, em 1908, Adolfo Casais Monteiro foi também poeta e romancista.
Formado em letras na Universidade do Porto em 1933, assumiu a função de
professor do ensino público, da qual seria afastado em 1937, por motivos políticos. Muda-se então
para Lisboa, onde passa a viver como autor, tradutor e editor.
Contrário
ao regime fascista capitaneado por Salazar, Casais Monteiro foi preso várias
vezes. Em 1954, devido às perseguições políticas, exila-se no Brasil, onde
ensina literatura portuguesa em diversas universidades, entre as quais a
Universidade da Bahia. A partir de 1962, torna-se professor fixo da Universidade
Estadual Paulista, Unesp, no campus de Araraquara. Nesse período, colaborou em
vários jornais brasileiros e deixou estudos sobre a obra de Fernando Pessoa.
Casais Monteiro faleceu em 1972 na capital paulista.
•o•
Como os brasileiros dedicam especial afeição à obra de Fernando Pessoa, julguei
interessante reproduzir aqui a carta de Pessoa a Casais Monteiro. Nela, o autor
de Mensagem, além de contar como criou seus três principais heterônimos, faz
revelações sobre suas manias pessoais, convicções políticas e religiosas.
Fala também de seu propalado ocultismo, maçonaria e rituais iniciáticos. Mas
no final acrescenta um pós-escrito, dizendo que Casais Monteiro pode divulgar
todo o conteúdo da carta, menos “reproduzir em letra impressa” o parágrafo em
que ele fala sobre ocultismo. Em obediência à restrição do amigo, Casais
Monteiro publicou o texto, sem o parágrafo ocultista. Somente depois é que o
trecho passou a ser divulgado.
Fernando Pessoa escreveu essa
correspondência em janeiro, e viria a morrer em novembro de 1935, aos 47 anos.
•o•
Introduzi intertítulos [entre cochetes] na carta de Pessoa, a fim de ajudá-los na leitura. Desse modo,
quem não se dispuser a ler o documento em toda a sua extensão, poderá localizar
rapidamente os pontos que julgar mais interessantes. Contudo, recomendo
vivamente a
leitura de toda a carta.São riquíssimas as revelações e, mesmo quando afirma que
está escrevendo de forma quase automática, Pessoa mantém um estilo inatacável.
Carlos Machado
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Carta a Adolfo
Casais Monteiro
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Fernando Pessoa
13 de janeiro de 1935
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Neste documento, o poeta revela como criou os heterônimos Caeiro,
Reis e Campos |
Pessoa e Casais Monteiro: correspondência revela a origem dos heterônimos
[Carta
a Adolfo Casais Monteiro - 13 Jan. 1935]
Caixa Postal 147
Lisboa, 13 de
Janeiro de 1935.
Meu prezado Camarada:
Muito agradeço a sua carta, a que
vou responder imediata e integralmente. Antes de, propriamente, começar, quero
pedir-lhe desculpa de lhe escrever neste papel de cópia. Acabou-se-me o decente,
é domingo, e não posso arranjar outro. Mas mais vale, creio, o mau papel que o
adiamento.
Em primeiro lugar, quero dizer-lhe que nunca eu veria «outras
razões» em qualquer coisa que escrevesse, discordando, a meu respeito. Sou um
dos poucos poetas portugueses que não decretou a sua própria infalibilidade, nem
toma qualquer crítica, que se lhe faça, como um acto de lesa-divindade. Além
disso, quaisquer que sejam os meus defeitos mentais, é nula em mim a tendência
para a mania da perseguição. À parte isso, conheço já suficientemente a sua
independência mental, que, se me é permitido dizê-lo, muito aprovo e louvo.
Nunca me propus ser Mestre ou Chefe-Mestre, porque não sei ensinar, nem sei se
teria que ensinar; Chefe, porque nem sei estrelar ovos. Não se preocupe, pois,
em qualquer ocasião, com o que tenha que dizer a meu respeito. Não procuro caves
nos andares nobres.
[SOBRE O LIVRO MENSAGEM]
Concordo absolutamente consigo em que não foi feliz a
estreia, que de mim mesmo fiz com um livro da natureza de «Mensagem». Sou, de
facto, um nacionalista místico, um sebastianista racional. Mas sou, à parte
isso, e até em contradição com isso, muitas outras coisas. E essas coisas, pela
mesma natureza do livro, a «Mensagem» não as inclui.
Comecei por esse livro
as minhas publicações pela simples razão de que foi o primeiro livro que
consegui, não sei porquê, ter organizado e pronto. Como estava pronto,
incitaram-me a que o publicasse: acedi. Nem o fiz, devo dizer, com os olhos
postos no prémio possível do Secretariado, embora nisso não houvesse pecado
intelectual de maior. O meu livro estava pronto em Setembro, e eu julgava, até,
que não poderia concorrer ao prémio, pois ignorava que o prazo para entrega dos
livros, que primitivamente fora até fim de Julho, fora alargado até ao fim de
Outubro. Como, porém, em fim de Outubro já havia exemplares prontos da
«Mensagem», fiz entrega dos que o Secretariado exigia. O livro estava
exactamente nas condições (nacionalismo) de concorrer. Concorri.
Quando às
vezes pensava na ordem de uma futura publicação de obras minhas, nunca um livro
do género de «Mensagem» figurava em número um. Hesitava entre se deveria começar
por um livro de versos grande — um livro de umas 350 páginas —, englobando as
várias subpersonalidades de Fernando Pessoa ele mesmo, ou se deveria abrir com
uma novela policiária, que ainda não consegui completar.
Concordo consigo,
disse, em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo fiz, com a publicação de
«Mensagem». Mas concordo com os factos que foi a melhor estreia que eu poderia
fazer. Precisamente porque essa faceta — em certo modo secundária — da minha
personalidade não tinha nunca sido suficientemente manifestada nas minhas
colaborações em revistas (excepto no caso do Mar Português parte deste mesmo
livro) — precisamente por isso convinha que ela aparecesse, e que aparecesse
agora. Coincidiu, sem que eu o planeasse ou o premeditasse (sou incapaz de
premeditação prática), com um dos momentos críticos (no sentido original da
palavra) da remodelação do subconsciente nacional. O que fiz por acaso e se
completou por conversa, fora exactamente talhado, com Esquadria e Compasso, pelo
Grande Arquitecto.
(Interrompo. Não estou doido nem bêbado. Estou, porém,
escrevendo directamente, tão depressa quanto a máquina mo permite, e vou-me
servindo das expressões que me ocorrem, sem olhar a que literatura haja nelas.
Suponha — e fará bem em supor, porque é verdade — que estou simplesmente falando
consigo).
[PLANOS PARA O FUTURO]
Respondo agora directamente às suas três perguntas: (1) plano
futuro da publicação das minhas obras, (2) génese dos meus heterónimos, e (3)
ocultismo.
Feita, nas condições que lhe indiquei, a publicação da «Mensagem»
, que é uma manifestação unilateral, tenciono prosseguir da seguinte maneira.
Estou agora completando uma versão inteiramente remodelada do Banqueiro
Anarquista, essa deve estar pronta em breve e conto, desde que esteja pronta,
publicá-la imediatamente. Se assim fizer, traduzo imediatamente esse escrito
para inglês, e vou ver se o posso publicar em Inglaterra. Tal qual deve ficar,
tem probabilidades europeias. (Não tome esta frase no sentido de Prémio Nobel
imanente). Depois — e agora respondo propriamente à sua pergunta, que se reporta
a poesia — tenciono, durante o verão, reunir o tal grande volume dos poemas
pequenos do Fernando Pessoa ele mesmo, e ver se o consigo publicar em fins do
ano em que estamos. Será esse o volume que o Casais Monteiro espera, e é esse
que eu mesmo desejo que se faça. Esse, então, será as facetas todas, excepto a
nacionalista, que «Mensagem» já manifestou.
Referi-me, como viu, ao Fernando
Pessoa só. Não penso nada do Caeiro, do Ricardo Reis ou do Álvaro de Campos.
Nada disso poderei fazer, no sentido de publicar, excepto quando (ver mais
acima) me for dado o Prémio Nobel. E contudo — penso-o com tristeza — pus no
Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda
a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é própria, pus em Álvaro de
Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida. Pensar, meu querido
Casais Monteiro, que todos estes têm que ser, na prática da publicação,
preteridos pelo Fernando Pessoa, impuro e simples!
Creio que respondi à sua
primeira pergunta.
Se fui omisso, diga em quê. Se puder responder, responderei. Mais planos não tenho, por enquanto. E, sabendo eu o que são e em
que dão os meus planos, é caso para dizer, Graças a Deus!
Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Desenho de Almada
Negreiros, pintor e escritor modernista português, amigo de Pessoa.
Obviamente, os traços baseiam-se nas descrições feitas pelo criador dos
heterônimos.
[A ORIGEM DOS HETERÔNIMOS]
Passo agora a
responder à sua pergunta sobre a génese dos meus heterónimos. Vou ver se consigo
responder-lhe completamente.
Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos
meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou
simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histero-neurasténico.
Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenómenos de abulia que a
histeria, propriarmente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas. Seja
como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica
e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos —
felizmente para mim e para os outros — mentalizaram-se em mim; quero dizer, não
se manifestam na minha vida prática, exterior e de contacto com outros; fazem
explosão para dentro e vivo — os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher — na mulher
os fenómenos histéricos rompem em ataques e coisas parecidas — cada poema de
Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico de mim) seria um alarme para a
vizinhança. Mas sou homem — e nos homens a histeria assume principalmente
aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia...
Isto explica, tant
bien que mal, a origem orgânica do meu heteronimismo. Vou agora fazer-lhe a
história directa dos meus heterónimos. Começo por aqueles que morreram, e de
alguns dos quais já me não lembro — os que jazem perdidos no passado remoto da
minha infância quase esquecida.
Desde criança tive a tendência para criar em
meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca
existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que
não existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos ser dogmáticos). Desde que
me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente,
em figura, movimentos, carácter e história, várias figuras irreais que eram para
mim tão visíveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos, porventura
abusivamente, a vida real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser
um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me
encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar.
Lembro, assim, o
que me parece ter sido o meu primeiro heterónimo, ou, antes, o meu primeiro
conhecido inexistente — um certo Chevalier de Pas dos meus seis anos, por quem
escrevia cartas dele a mim mesmo, e cuja figura, não inteiramente vaga, ainda
conquista aquela parte da minha afeição que confina com a saudade. Lembro-me,
com menos nitidez, de uma outra figura, cujo nome já me não ocorre mas que o
tinha estrangeiro também, que era, não sei em quê, um rival do Chevalier de
Pas... Coisas que acontecem a todas as crianças? Sem dúvida — ou talvez. Mas a
tal ponto as vivi que as vivo ainda, pois que as relembro de tal modo que é
mister um esforço para me fazer saber que não foram realidades.
Esta
tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra
gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias fases, entre as quais esta,
sucedida já em maioridade. Ocorria-me um dito de espírito, absolutamente alheio,
por um motivo ou outro, a quem eu sou, ou a quem suponho que sou. Dizia-o,
imediatamente, espontaneamente, como sendo de certo amigo meu, cujo nome
inventava, cuja história acrescentava, e cuja figura — cara, estatura, traje e
gesto — imediatamente eu via diante de mim. E assim arranjei, e propaguei,
vários amigos e conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de
trinta anos de distância, oiço, sinto, vejo. Repito: oiço, sinto vejo... E tenho
saudades deles.
(Em eu começando a falar — e escrever à máquina é para mim
falar —, custa-me a encontrar o travão. Basta de maçada para si, Casais
Monteiro! Vou entrar na génese dos meus heterónimos literários, que é, afinal, o
que V. quer saber. Em todo o caso, o que vai dito acima dá-lhe a história da mãe
que os deu à luz).
Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande),
veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso
irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade),
e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago
retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu
soubesse, o Ricardo Reis).
Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia
de fazer uma partida ao Sá-Carneiro — de inventar um poeta bucólico, de espécie
complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de
realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que
finalmente desistira — foi em 8 de Março de 1914 — acerquei-me de uma cómoda
alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que
posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja
natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca
poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se
seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de
Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre.
Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram
esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a
fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa.
Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a
Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a
sua inexistência como Alberto Caeiro.
Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo
de lhe descobrir — instintiva e subconscientemente — uns discípulos. Arranquei
do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o
a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à
de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à
máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro
de Campos — a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.
Criei, então,
uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as
influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as
divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo,
o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. E
parece que assim ainda se passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão
estética entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes, e
como eu não sou nada na matéria.
Quando foi da publicação de «Orpheu», foi
preciso, à última hora, arranjar qualquer coisa para completar o número de
páginas. Sugeri então ao Sá-Carneiro que eu fizesse um poema «antigo» do Álvaro
de Campos — um poema de como o Álvaro de Campos seria antes de ter conhecido
Caeiro e ter caído sob a sua influência. E assim fiz o Opiário, em que tentei
dar todas as tendências latentes do Álvaro de Campos, conforme haviam de ser
depois reveladas, mas sem haver ainda qualquer traço de contacto com o seu
mestre Caeiro. Foi dos poemas que tenho escrito, o que me deu mais que fazer,
pelo duplo poder de despersonalização que tive que desenvolver. Mas, enfim,
creio que não saiu mau, e que dá o Álvaro em botão...
Creio que lhe expliquei
a origem dos meus heterónimos. Se há porém qualquer ponto em que precisa de um
esclarecimento mais lúcido — estou escrevendo depressa, e quando escrevo
depressa não sou muito lúcido — , diga, que de bom grado lho darei. E, é
verdade, um complemento verdadeiro e histérico: ao escrever certos passos das
Notas para recordação do meu Mestre Caeiro, do Álvaro de Campos, tenho chorado
lágrimas verdadeiras. É para que saiba com quem está lidando, meu caro Casais
Monteiro!
Mais uns apontamentos nesta matéria... Eu vejo diante de mim, no
espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e
Alvaro de Campos. Construi-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em
1887 (não me lembro do dia e mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e
está presentemente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915;
nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão
nem educação quase alguma. Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de
Outubro de 1890 (às 1.30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois,
feito o horóscopo para essa hora, está certo). Este, como sabe, é engenheiro
naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inactividade. Caeiro era
de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia
tão frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais
forte, mas seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 m de altura, mais 2 cm do que
eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada todos — o Caeiro louro
sem cor, olhos azuis; Reis de um vago moreno mate; Campos entre branco e moreno,
tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao
lado, monóculo. Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma —
só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em
casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó.
Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no
Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um
latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria. Álvaro
de Campos teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia
estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem
ao Oriente de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era
padre.
Como escrevo em nome desses três?... Caeiro por pura e inesperada
inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois
de uma deliberação abstracta, que subitamente se concretiza numa ode. Campos,
quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. (O meu
semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro
de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um
pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um
constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a
minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o
raciocínio e a afectividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de ténue à
minha, é igual a esta, e o português perfeitamente igual; ao passo que Caeiro
escrevia mal o português, Campos razoavelmente mas com lapsos como dizer «eu
próprio» em vez de «eu mesmo», etc., Reis melhor do que eu, mas com um purismo
que considero exagerado. O difícil para mim é escrever a prosa de Reis — ainda
inédita — ou de Campos. A simulação é mais fácil, até porque é mais espontânea,
em verso).
Nesta altura estará o Casais Monteiro pensando que má sorte o fez
cair, por leitura, em meio de um manicómio. Em todo o caso, o pior de tudo isto
é a incoerência com que o tenho escrito. Repito, porém: escrevo como se
estivesse falando consigo, para que possa escrever imediatamente. Não sendo
assim, passariam meses sem eu conseguir escrever.
[O OCULTISMO DE PESSOA]
Falta responder à sua
pergunta quanto ao ocultismo (escreveu o poeta). Pergunta-me se creio no
ocultismo. Feita assim, a pergunta não é bem clara; compreendo porém a intenção
e a ela respondo. Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de
habitantes desses mundos, em experiências de diversos graus de espiritualidade,
subtilizando até se chegar a um Ente Supremo, que presumivelmente criou este
mundo. Pode ser que haja outros Entes, igualmente Supremos, que hajam criado
outros universos, e que esses universos coexistam com o nosso,
interpenetradamente ou não. Por estas razões, e ainda outras, a Ordem Extrema do
Ocultismo, ou seja, a Maçonaria, evita (excepto a Maçonaria anglo-saxónica) a
expressão «Deus», dadas as suas implicações teológicas e populares, e prefere
dizer «Grande Arquitecto do Universo», expressão que deixa em branco o problema
de se Ele é criador, ou simples Governador do mundo. Dadas estas escalas de
seres, não creio na comunicação directa com Deus, mas, segundo a nossa afinação
espiritual, poderemos ir comunicando com seres cada vez mais altos. Há três
caminhos para o oculto: o caminho mágico (incluindo práticas como as do
espiritismo, intelectualmente ao nível da bruxaria, que é magia também), caminho
místico, que não tem propriamente perigos, mas é incerto e lento; e o que se
chama o caminho alquímico, o mais difícil e o mais perfeiro de todos, porque
envolve uma transmutação da própria personalidade que a prepara, sem grandes
riscos, antes com defesas que os outros caminhos não têm. Quanto a «iniciação»
ou não, posso dizer-lhe só isto, que não sei se responde à sua pergunta: não
pertenço a Ordem Iniciática nenhuma. A citação, epígrafe ao meu poema Eros e
Psique, de um trecho (traduzido, pois o Ritual é em latim) do Ritual do Terceiro
Grau da Ordem Templária de Portugal, indica simplesmente — o que é facto — que
me foi permitido folhear os Rituais dos três primeiros graus dessa Ordem,
extinta, ou em dormência desde cerca de 1881. Se não estivesse em dormência, eu
não citaria o trecho do Ritual, pois se não devem citar (indicando a ordem)
trechos de Rituais que estão em trabalho.
Creio assim, meu querido camarada,
ter respondido, ainda com certas incoerências, às suas perguntas. Se há outras
que deseja fazer, não hesite em fazê-las. Responderei conforme puder e o melhor
que puder. O que poderá suceder, e isso me desculpará desde já, é não responder
tão depressa.
Abraça-o o camarada que muito o estima e admira.
Fernando
Pessoa
[O PÓS-ESCRITO, UM DIA DEPOIS]
P.S. (!!!)
14/1/1935.
Além da cópia que normalmente tiro
para mim, quando escrevo à maquina de qualquer carta que envolve explicações da
ordem das que esta contém, tirei uma cópia suplementar, tanto para o caso de
esta carta se extraviar, como para o de, possivelmente, ser-lhe precisa para
qualquer outro fim. Essa cópia está sempre às suas ordens.
Outra coisa. Pode ser que, para
qualquer estudo seu, ou outro fim análogo, o Casais Monteiro precise, no futuro,
de citar qualquer passo desta carta. Fica desde já autorizado a fazê-lo, mas
com uma reserva, e peço-lhe licença para lha acentuar. O parágrafo sobre o
ocultismo, na página 7 da minha carta, não pode ser reproduzido em letra
impressa. Desejando responder o mais claramente possível à sua pergunta, saí
propositadamente um pouco fora dos limites que são naturais nesta matéria.
Trata-se de uma carta particular, e por isso não hesitei em fazê-lo. Nada obsta
a que leia esse parágrafo a quem quiser, desde que essa outra pessoa obedeça
também ao critério de não reproduzir em letra impressa o que nesse parágrafo vai
escrito. Creio que posso contar consigo para tal fim negativo.
Continuo em
dívida para consigo da carta ultra-devida sobre os seus últimos livros. Mantenho
o que creio que lhe disse na minha carta anterior: quando agora (creio que será
só em Fevereiro) passar alguns dias no Estoril, porei essa correspondência em
ordem, pois estou em dívida, nessa matéria, não só para consigo, mas também com
várias outras pessoas.
Ocorre-me perguntar de novo uma coisa que já lhe
perguntei e que me não respondeu: recebeu os meus folhetos de versos em inglês,
que há tempos lhe enviei?
«Para meu governo», como se diz em linguagem
comercial, pedia-lhe que me indicasse o mais depressa possível que recebeu esta
carta. Obrigado.
F. Pessoa.
poesia.net
Outras Palavras
Carlos Machado,
2015
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• Outras Palavras
Carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro
In Fernando Pessoa, Obra Poética e em Prosa
Edição de António Quadros
Lello & Irmão, Porto, 1986 _______________ * Mario Quintana,
"Inscrição para uma Lareira", in Esconderijos do Tempo (1980)
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