«Nasceram-me gaivotas nos sentidos» (Affonso Manta) *
Fernando Brant
Caros,
A crônica ao lado foi escrita em 2015 e conta uma história
verdadeira, envolvendo dois saudosos mineiros — o compositor Fernando Brant (1946-2015), autor de
clássicos da MPB, e o poeta Donizete Galvão (1955-2014) —, além do contista e fotógrafo
paulista Mario Rui Feliciani.
A crônica foi publicada originalmente no site cultural
Kultme,
em julho de 2015.
De como Brant contou uma história que inspirou o
poeta Donizete Galvão a desafiar seus amigos contistas
Fernando Brant: "a beleza é simples"
Este é um relato que envolve amizades e, principalmente, põe em destaque a
sensibilidade artística de dois poetas que perdemos recentemente: os mineiros
Donizete Galvão, morto em 2014, e Fernando Brant, no mês passado.
Para começar, devo dizer que jamais encontrei Fernando Brant. Não fui nem mesmo seu amigo
virtual. Somente uma agradável sucessão de acasos é que me levaria a receber um e-mail do
letrista de “Travessia”, “Ponta de Areia”, “Maria Maria” e tantos outros clássicos da
música brasileira.
Um dia, em agosto de 2013, abri a edição de maio/junho do jornal Suplemento Literário
de Minas Gerais. Lá estava o Fernando Brant, entrevistado pelo jornalista João Pombo
Barile, um amigo e colega de ofício. Li a entrevista, com muito gosto. O papo de Brant,
muito natural, sem nenhuma afetação, envolvia o leitor.
Brant: inventei um tipo
de documento,
o Termo de Bem-Viver
Mas o que realmente me encheu os olhos foi um caso que ele contou, lembrando os tempos de
quando, ainda estudante, trabalhara com o pai, juiz, no Juizado de Menores de Igarapé,
município da região metropolitana de Belo Horizonte. Transcrevo a pergunta de Barile
e a resposta de Brant:
Você gosta de repetir uma frase que eu acho muito boa: você diz que “a beleza é simples”. É isso?
É isso mesmo. Mas eu também vivi outras histórias quando trabalhava com meu pai. Eu lembro,
por exemplo, de um caso engraçado com um casal de Igarapé, que um dia apareceu lá no Juizado.
O homem contou que trabalhava na roça e a sua esposa ficava em casa sozinha. Um dia, passou
um caminhoneiro, enrolou a mulher, e acabou transando com ela. Aí esse senhor queria saber
o que teria que fazer: ele tinha que se separar dela? Era obrigado a fazer alguma coisa?
Quer dizer: um negócio que não tem nada que ver com o juizado de menores. Um problema do
casal, né? E aí eu fiquei lá, conversando com eles, e percebi que ele não estava querendo
coisa nenhuma. Ele só estava querendo um termo legal para poder voltar pra casa com a mulher
dele na boa. Então eu inventei um tipo de documento: o termo de bem viver. Eles então
assinaram com testemunha e tal e foram embora. Quer dizer, uma coisa bacana, né?
O cara não tinha maldade nenhuma. Ele tinha perdoado a mulher dele.
*
Donizete Galvão lê poemas em programa da TV Cultura
Achei a história excelente, e fiquei impressionado com a perspicácia do jovem Brant ao achar
uma solução simples e solidária para o caso. O “termo de bem-viver” é ótimo, até no nome.
Quem tem nas mãos uma história dessas não pode se dar o direito de saboreá-la sozinho. Copiei
o trecho da entrevista e enviei-o ao poeta Donizete Galvão, meu amigo e ex-colega jornalista,
e também a outros amigos comuns, além de pessoas fora de nosso grupo.
Donizete obviamente apreciou a narrativa de Brant e foi mais longe. Repassou-a a amigos prosadores,
com uma recomendação assim: olhem aí, vocês, ficcionistas (Donizete só escrevia poesia):
peguem esse mote e desenvolvam um conto.
Passou. Um dia, o contista e fotógrafo Mario Rui Feliciani me manda um e-mail dizendo que havia
topado o desafio de Donizete e produzira um conto, “Na cômoda do missal”, que já estava publicado
numa revista online. Fiquei, mais uma vez, empolgado ao ver como a “beleza simples” rendia frutos.
Resolvi, então, dar a notícia a Fernando Brant, por intermédio de seu entrevistador João Barile,
que enviou ao compositor um e-mail compartilhado comigo. Brant quis saber se outros contistas haviam
encarado o desafio de Donizete Galvão. Respondi que não, e aproveitei para apresentar a ele meu site
Alguma Poesia e lembrar que ele era citado num dos meus textos, a propósito das diferenças entre letra
de música e poesia. Brant costumava dizer que essas duas artes não são a mesma, mas pertencem à mesma
família: são primas.
O sócio-fundador do Clube da Esquina me respondeu, gentil como imagino que sempre fosse: “Obrigado,
Carlos Machado. Vou ao seu site. Um abraço. Fernando Brant”. Isso ― consulto aqui em meu programa de
e-mail ― foi em abril de 2014. A essa altura, Donizete Galvão já havia nos deixado fazia cerca de
três meses. Perguntei ao Mario Rui se o Doni tinha lido o conto que apadrinhara. Infelizmente, não.
Fica aqui este pequeno relato como uma homenagem à criatividade desses dois mineiros, dos quais nunca
vamos nos esquecer. Semeadores de poemas e letras musicais tão profundamente humanos, Donizete Galvão
(1955-2014) e Fernando Brant (1946-2015) não podem mesmo ser esquecidos.
• O dia em que
Fernando Brant me mandou e-mail Crônica publicada originalmente no
site cultural
Kultme 16 de julho de 2015 _______________ * Affonso
Manta,
no poema
"Retorno" in Antologia Poética org. sel. e notas Ruy Espinheira Filho Ass. Legislativa/Academia
de Letras BA, Salvador, 2013