Número 15

28/12/2016

«Toda lua é cruel e todo sol, engano.» (Arthur Rimbaud) *
 


       Vinicius de Moraes


Caros,

O prêmio Nobel oferecido a Bob Dylan em 2016 trouxe à tona uma velha discussão: letra de música e poema são a mesma coisa?

O texto ao lado foi publicado originalmente no site cultural Kultme, em novembro de 2016.

Carlos Machado


 

 



 

Poetas de um lado, letristas do outro?

            
Carlos Machado


O Nobel de Bob Dylan trouxe à tona uma velha polêmica: letra de música é poema?



Bob Dylan
Bob Dylan: Prêmio Nobel para letras de música



O prêmio Nobel oferecido a Bob Dylan ocasionou inflamadas discussões. No meio da saraivada de opiniões pró e contra a Academia Sueca, subiu à tona outra polêmica, antiga mas não resolvida: letra de canção é poema?

A questão é simples somente na aparência. De saída, não se trata apenas de observar que algumas vezes o texto das canções assume características similares às do poema. Ou, de outro ângulo, notar que alguns poemas, quando musicados, resultam em belas canções. Evidentemente, isso acontece, mas não basta para decretar que as duas coisas são uma só. Há muito tempo me interesso pela diferenciação entre letra de música e poema. O Nobel de Bob Dylan me levou a repensar o assunto e me deixou ainda mais convencido da existência das duas artes.

Para mim, embora ambas usem a palavra como matéria-prima, letra de canção popular é uma coisa e poesia de livro, outra. O modus faciendi de cada uma é diferente e também são distintas as formas de apreciá-las. Deixo claro que não inventei essa disjunção. Apenas sigo nomes de altíssimo costado, gente ligada à música como Fernando Brant, Edu Lobo, Manuel Bandeira.

Letrista maior do Clube da Esquina, Brant dizia que as duas artes “são primas”. Portanto, compartilham algum estoque de DNA, mas não são “a mesma pessoa”. Observe-se que ele não ousou sequer considerá-las mais próximas, classificando-as como “irmãs”… Mesmo assim, é esse parentesco que gera toda a confusão.


Na visão do filósofo, poeta
e letrista Antonio Cícero,
o poema se basta. Já a letra
depende da melodia e não pode
ser vista de forma autônoma



A poesia que se escreve para ser lida (originariamente no papel, mas não só) obedece a regras próprias, e só a elas. A letra, no entanto, está subordinada à melodia. Em geral, quem se propõe a escrever um texto para ser musicado já trabalha com certa regularidade métrica e com a repetição de blocos similares — traços que facilitam a vida do compositor. Antonio Cícero, filósofo, letrista e poeta, escreve:

Um poema é um objeto autotélico, isto é, ele tem o seu fim em si próprio. Quando o julgamos bom ou ruim, estamos a considerá-lo independentemente do fato de que, além de ser um poema, ele tenha qualquer utilidade. (…) Já uma letra de canção é heterotélica, isto é, ela não tem o seu fim em si própria. Para que a julguemos boa, é necessário e suficiente que ela contribua para que a obra lítero-musical de que faz parte seja boa. Em outras palavras, se uma letra de canção servir para fazer uma boa canção, ela é boa, ainda que seja ilegível. E a letra pode ser ilegível porque, para se estruturar, para adquirir determinado colorido, para ter os sons ou as palavras certas enfatizadas, ela depende da melodia, da harmonia, do ritmo, do tom da música à qual se encontra associada.
[Antonio Cicero, “Letra de canção e poesia”, Folha de S.Paulo, Ilustrada, 16/06/2007]



*

Antonio Cicero avança para outras complexidades da questão e conclui: “Nada impede que um bom poema, quando musicado, se torne uma boa letra de canção”. Sem dúvida. Nada impede — mas é raro, digo eu. Basta consultar os álbuns musicais organizados para celebrar a obra de grandes poetas. Alguém tem a ideia (e os meios de realização) e convida uma série de compositores para musicar poemas do homenageado e colocá-los num CD. Nessas iniciativas, podem conferir, umas poucas canções se salvam. Isso não significa que as outras faixas “não prestam”. Simplesmente, nelas, o conjunto música e letra não produz um resultado tão feliz.

É prudente lembrar: sempre há as exceções, que conseguem agregar música interessante aos textos mais improváveis. Uma dessas façanhas é, por exemplo, a cantiga de cego “Circuladô de Fulô”, que Caetano Veloso associou brilhantemente a trechos do poema em prosa “Galáxias”, de Haroldo de Campos.

Além disso, Antonio Cicero diz encontrar num livro de letras de Caetano Veloso “grandes poemas que são também letras de canção”. Perfeito. Porém aí, mais uma vez, estamos falando de Caetano — e talvez de Chico Buarque, Bob Dylan etc. Exceções das exceções. E, claro, nem toda letra deles funciona como poema.

Preocupado com esses casos fora do comum, Antonio Cicero propõe uma reelaboração da pergunta sobre a identidade entre as duas artes. Diz ele: “Talvez o que se deva perguntar é se uma boa letra é necessariamente um bom poema”. Minha resposta é não. Pegue canções que você considera boas, separe as letras e tente imaginá-las como ficariam nas páginas de um livro de poemas.


Para Bandeira, a letra é como
um vestido de palavras para
a melodia. A roupa não é uma
obra independente: precisa
adaptar-se ao corpo da dona


Tentemos agora a operação inversa: chame um poeta sem experiência musical e peça que ele escreva a letra para uma melodia. Dificilmente sairá algo tão vivo, popular e instigante quanto um texto feito por alguém que conhece as manhas do setor. O poeta Manuel Bandeira, como se sabe, também escreveu letras. No livro Itinerário de Pasárgada (1954), Bandeira conta sua experiência como letrista:

Essa tarefa de escrever texto para melodia já composta, coisa que fiz duas vezes para Ovalle e muitas vezes para Villa-Lobos, é de amargar. Pode suceder que depois de pronto o trabalho o compositor ensaia a música e diz: “Ah, você tem que mudar esta rima em i, porque a nota é agudíssima e fica muito difícil emiti-la nessa vogal”. E lá se vai toda a igreja do poeta! Do poeta propriamente, não: nesse ofício costumo pôr a poesia de lado e a única coisa que procuro é achar as palavras que caiam bem no compasso e no sentimento da melodia. Palavras que, de certo modo, façam corpo com a melodia. Lidas independentemente da música, não valem nada, tanto que nunca pude aproveitar nenhuma delas.


Como se vê, o autor de “Vou-me Embora pra Pasárgada” deixa bem explícita a separação entre as duas artes. Em certo sentido, Bandeira sugere que a letra é como um vestido de palavras para a melodia. Não importa tanto a existência de uma lógica do próprio texto, porque quem está no comando é a música. Ou seja, o vestido precisa adaptar-se ao corpo da dona, e não necessariamente ser uma roupa em si mesma, uma obra autônoma com sua própria estética.

Creio que esse trecho de Bandeira enseja ainda a discussão de outro aspecto: entender a letra não é condição sine qua para gostar da música. O ouvinte pode não fazer a menor ideia de qual sentido têm as palavras de uma letra, mas isso não o impede de apreciar a canção. Ele pode muito bem apaixonar-se por uma música cantada num idioma desconhecido.


Poesia e letra de música são duas
artes que se tocam, mas não se
trocam. Não tente colocar uma no
lugar da outra. Pode dar certo, mas
somente em casos excepcionais


Deixei para o fim exatamente uma figura sempre citada para justificar que letra de música e poema são a mesma coisa: Vinicius de Moraes. Sim, em Vinicius existiam de fato um soberbo letrista e um magnífico poeta. Mas nunca esses dois artistas se sentaram juntos à mesma mesa de criação.

O poeta, já consagrado, ao entrar para a canção popular, nela ficou. Acontece que as artes são como esposas: querem exclusividade. Vinicius não chegaria à excelência dos afrossambas, por exemplo, somente dando uma bicadinha eventual nas letras, mas continuando dedicado à poesia. Ele transferiu-se de mala e cuia para a música, porque a nova arte — que, não há como negar, também oferece mais prêmios — exigia dele essa dedicação. Caso contrário, não teria sido o letrista que foi. Digo de outra forma: as duas artes são tão sutilmente diferentes — e cada uma delas com seus próprios segredos e complexidades — que Vinicius, enquanto poeta, não foi músico. E, quando passou a ser músico-letrista, deixou de ser poeta.

O último livro do Vinicius, com poesia original, foi Novos Poemas II (1959), reunindo textos escritos até 1956. Exatamente nesse último ano ele conheceu Tom Jobim. Pronto. Daí em diante, o autor de “Garota de Ipanema” só produziu letras: para Jobim, Carlos Lyra, Edu Lobo, Baden Powell, Chico Buarque etc., até findar com o parceiro Toquinho. Aliás, Vinicius também escreveu música e letra sozinho e, ainda, música para outros adicionarem letras. Nessa nova fase, claro, pode ter escrito um ou outro poema. Mas poesia, a rigor, nunca mais.

*

Vamos concluir. Obviamente, há letras de canção popular que podem ser lidas como poemas. E também há poemas que, musicados, resultam em boas canções. Mas o ponto fundamental é que, na sufocante maioria dos casos, letras não funcionam como bons poemas e estes, por sua vez, não atendem às condições necessárias para se tornarem boas letras.

Enfim, poesia e letra de música são duas artes que se tocam, mas não se trocam. Levado pelas semelhanças, não tente colocar uma no lugar da outra. Pode dar certo em casos excepcionais. O grande erro é partir desses casos para afirmar que essas duas primas são a mesma e única pessoa.



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Outras Palavras

Carlos Machado, 2016

•  Poetas de um lado, letristas do outro?
    Crônica publicada originalmente
    no site cultural Kultme
   
26 de novembro de 2016
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* Arthur Rimbaud
  no poema "O Barco Bêbado"
  trad. de Augusto de Campos