Vinicius de Moraes
Caros,
O prêmio Nobel oferecido a Bob Dylan em 2016 trouxe à tona uma
velha discussão: letra de música e poema são a mesma coisa?
O texto ao lado foi publicado originalmente no site cultural
Kultme, em
novembro de 2016.
Carlos Machado
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Poetas de um lado, letristas do outro?
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Carlos Machado
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O Nobel de Bob Dylan trouxe à tona uma velha polêmica: letra de música é poema? |
Bob Dylan: Prêmio Nobel para letras de música
O prêmio Nobel oferecido a Bob Dylan ocasionou inflamadas discussões. No meio da saraivada de opiniões pró e contra
a Academia Sueca, subiu à tona outra polêmica, antiga mas não resolvida: letra de canção é poema?
A questão é simples somente na aparência. De saída, não se trata apenas de observar que algumas vezes
o texto das canções assume características similares às do poema. Ou, de outro ângulo, notar que
alguns poemas, quando musicados, resultam em belas canções. Evidentemente, isso acontece, mas não
basta para decretar que as duas coisas são uma só. Há muito tempo me interesso pela diferenciação
entre letra de música e poema. O Nobel de Bob Dylan me levou a repensar o assunto e me deixou ainda
mais convencido da existência das duas artes.
Para mim, embora ambas usem a palavra como matéria-prima, letra de canção popular é uma coisa e poesia
de livro, outra. O modus faciendi de cada uma é diferente e também são distintas as formas de apreciá-las.
Deixo claro que não inventei essa disjunção. Apenas sigo nomes de altíssimo costado, gente ligada à música
como Fernando Brant, Edu Lobo, Manuel Bandeira.
Letrista maior do Clube da Esquina, Brant dizia que as duas artes “são primas”. Portanto,
compartilham algum estoque de DNA, mas não são “a mesma pessoa”. Observe-se que ele não
ousou sequer considerá-las mais próximas, classificando-as como “irmãs”… Mesmo assim,
é esse parentesco que gera toda a confusão.
Na visão do filósofo, poeta
e letrista Antonio Cícero,
o poema se basta. Já a letra
depende da melodia e não pode
ser vista de forma autônoma
A poesia que se escreve para ser lida (originariamente no papel, mas não só) obedece a regras próprias,
e só a elas. A letra, no entanto, está subordinada à melodia. Em geral, quem se propõe a escrever um
texto para ser musicado já trabalha com certa regularidade métrica e com a repetição de blocos similares
— traços que facilitam a vida do compositor. Antonio Cícero, filósofo, letrista e poeta, escreve:
Um poema é um objeto autotélico, isto é, ele tem o seu fim em si próprio. Quando o julgamos bom
ou ruim, estamos a considerá-lo independentemente do fato de que, além de ser um poema, ele tenha
qualquer utilidade. (…) Já uma letra de canção é heterotélica, isto é, ela não tem o seu fim em
si própria. Para que a julguemos boa, é necessário e suficiente que ela contribua para que a obra
lítero-musical de que faz parte seja boa. Em outras palavras, se uma letra de canção servir para
fazer uma boa canção, ela é boa, ainda que seja ilegível. E a letra pode ser ilegível porque, para
se estruturar, para adquirir determinado colorido, para ter os sons ou as palavras certas enfatizadas,
ela depende da melodia, da harmonia, do ritmo, do tom da música à qual se encontra associada.
[Antonio Cicero, “Letra de canção e poesia”, Folha de S.Paulo, Ilustrada, 16/06/2007]
*
Antonio Cicero avança para outras complexidades da questão e conclui: “Nada impede que um bom poema,
quando musicado, se torne uma boa letra de canção”. Sem dúvida. Nada impede — mas é raro, digo eu.
Basta consultar os álbuns musicais organizados para celebrar a obra de grandes poetas. Alguém tem
a ideia (e os meios de realização) e convida uma série de compositores para musicar poemas do homenageado
e colocá-los num CD. Nessas iniciativas, podem conferir, umas poucas canções se salvam. Isso não
significa que as outras faixas “não prestam”. Simplesmente, nelas, o conjunto música e letra não
produz um resultado tão feliz.
É prudente lembrar: sempre há as exceções, que conseguem agregar música interessante aos textos mais
improváveis. Uma dessas façanhas é, por exemplo, a cantiga de cego “Circuladô de Fulô”, que Caetano
Veloso associou brilhantemente a trechos do poema em prosa “Galáxias”, de Haroldo de Campos.
Além disso, Antonio Cicero diz encontrar num livro de letras de Caetano Veloso “grandes poemas que
são também letras de canção”. Perfeito. Porém aí, mais uma vez, estamos falando de Caetano — e
talvez de Chico Buarque, Bob Dylan etc. Exceções das exceções. E, claro, nem toda letra deles
funciona como poema.
Preocupado com esses casos fora do comum, Antonio Cicero propõe uma reelaboração da pergunta sobre
a identidade entre as duas artes. Diz ele: “Talvez o que se deva perguntar é se uma boa letra é
necessariamente um bom poema”. Minha resposta é não. Pegue canções que você considera boas, separe
as letras e tente imaginá-las como ficariam nas páginas de um livro de poemas.
Para Bandeira, a letra é como
um vestido de palavras para
a melodia. A roupa não é uma
obra independente: precisa
adaptar-se ao corpo da dona
Tentemos agora a operação inversa: chame um poeta sem experiência musical e peça que ele escreva
a letra para uma melodia. Dificilmente sairá algo tão vivo, popular e instigante quanto um texto
feito por alguém que conhece as manhas do setor. O poeta Manuel Bandeira, como se sabe, também
escreveu letras. No livro Itinerário de Pasárgada (1954), Bandeira conta sua experiência como letrista:
Essa tarefa de escrever texto para melodia já composta, coisa que fiz duas
vezes para Ovalle e muitas vezes para Villa-Lobos, é de amargar. Pode suceder
que depois de pronto o trabalho o compositor ensaia a música e diz: “Ah, você
tem que mudar esta rima em
i, porque a nota é agudíssima e fica muito difícil emiti-la nessa vogal”. E
lá se vai toda a igreja do poeta! Do poeta propriamente, não: nesse ofício
costumo pôr a poesia de lado e a única coisa que procuro é achar as palavras que
caiam bem no compasso e no sentimento da melodia. Palavras que, de certo modo,
façam corpo com a melodia. Lidas independentemente da música, não valem nada,
tanto que nunca pude aproveitar nenhuma delas.
Como se vê, o autor de “Vou-me Embora pra Pasárgada” deixa bem explícita a separação
entre as duas artes. Em certo sentido, Bandeira sugere que a letra é como um vestido
de palavras para a melodia. Não importa tanto a existência de uma lógica do próprio
texto, porque quem está no comando é a música. Ou seja, o vestido precisa adaptar-se
ao corpo da dona, e não necessariamente ser uma roupa em si mesma, uma obra autônoma
com sua própria estética.
Creio que esse trecho de Bandeira enseja ainda a discussão de outro aspecto: entender
a letra não é condição sine qua para gostar da música. O ouvinte pode não fazer a menor
ideia de qual sentido têm as palavras de uma letra, mas isso não o impede de apreciar a
canção. Ele pode muito bem apaixonar-se por uma música cantada num idioma desconhecido.
Poesia e letra de música são duas
artes que se tocam, mas não se
trocam. Não tente colocar uma no
lugar da outra. Pode dar certo, mas
somente em casos excepcionais
Deixei para o fim exatamente uma figura sempre citada para justificar que letra de música
e poema são a mesma coisa: Vinicius de Moraes. Sim, em Vinicius existiam de fato um soberbo
letrista e um magnífico poeta. Mas nunca esses dois artistas se sentaram juntos
à mesma mesa de criação.
O poeta, já consagrado, ao entrar para a canção popular, nela ficou. Acontece que as artes
são como esposas: querem exclusividade. Vinicius não chegaria à excelência dos afrossambas,
por exemplo, somente dando uma bicadinha eventual nas letras, mas continuando dedicado à poesia.
Ele transferiu-se de mala e cuia para a música, porque a nova arte — que, não há como negar,
também oferece mais prêmios — exigia dele essa dedicação. Caso contrário, não teria sido o
letrista que foi. Digo de outra forma: as duas artes são tão sutilmente diferentes — e cada
uma delas com seus próprios segredos e complexidades — que Vinicius, enquanto poeta, não foi
músico. E, quando passou a ser músico-letrista, deixou de ser poeta.
O último livro do Vinicius, com poesia original, foi Novos Poemas II (1959), reunindo textos
escritos até 1956. Exatamente nesse último ano ele conheceu Tom Jobim. Pronto. Daí em diante,
o autor de “Garota de Ipanema” só produziu letras: para Jobim, Carlos Lyra, Edu Lobo, Baden Powell,
Chico Buarque etc., até findar com o parceiro Toquinho. Aliás, Vinicius também escreveu música e
letra sozinho e, ainda, música para outros adicionarem letras. Nessa nova fase, claro, pode ter
escrito um ou outro poema. Mas poesia, a rigor, nunca mais.
*
Vamos concluir. Obviamente, há letras de canção popular que podem ser lidas como poemas. E também
há poemas que, musicados, resultam em boas canções. Mas o ponto fundamental é que, na sufocante maioria
dos casos, letras não funcionam como bons poemas e estes, por sua vez, não atendem às condições
necessárias para se tornarem boas letras.
Enfim, poesia e letra de música são duas artes que se tocam, mas não se trocam. Levado pelas semelhanças,
não tente colocar uma no lugar da outra. Pode dar certo em casos excepcionais. O grande erro é partir desses
casos para afirmar que essas duas primas são a mesma e única pessoa.
poesia.net
Outras Palavras
Carlos Machado,
2016
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• Poetas de um lado,
letristas do outro?
Crônica publicada originalmente no
site cultural
Kultme
26 de novembro de 2016 _______________ * Arthur Rimbaud no poema
"O Barco Bêbado" trad. de Augusto de Campos
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