Amigas e amigos,
Os quatro poetas desta edição já são conhecidos de quem acompanha o poesia.net. São eles o maranhense Ronaldo Costa Fernandes;
o mineiro Donizete Galvão (1955-2014); a baiana Myriam Fraga (1937-2016); e, por fim, o pernambucano Alberto da Cunha Melo (1942-2007).
Este boletim é uma pequena revisitação de poemas desses autores já publicados aqui.
Mas como esses quatro poetas se juntaram neste boletim? Para começo de conversa, eu não tinha à mão nenhum autor pronto para figurar nesta edição.
Resolvi então recorrer àquelas velhas prestidigitações matemáticas que já usei aqui algumas vezes. Sorteei um número inicial de boletim, que caiu
em 263 (Ronaldo Costa Fernandes). Em seguida, montei uma progressão geométrica de razão 1,15.
Assim, com aproximações, obtive os outros três autores: 302 (Donizete Galvão); 347 (Myriam Fraga); e, por fim, 399 (Alberto da Cunha Melo). Mais um
detalhe: decidi incluir na presente edição dois poemas de cada autor selecionado. No caso de Alberto da Cunha Melo, tomei a licença poética de buscar
o segundo poema não no boletim selecionado, mas em outro, o 195.
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Passemos aos poemas de Ronaldo Costa Fernandes. O primeiro é “Hopper”, uma bela digressão sobre a obra do clássico pintor estadunidense
Edward Hopper (1882-1967). O poeta começa com a negação de uma ideia estabelecida: a de que os quadros do artista retratam a solidão dos
personagens. “Aquele casal na lanchonete,/ as moças no quarto/ ou no vagão de trem/ estão imobilizados de vida”. O poeta termina concluindo
que, na verdade, as figuras nos quadros de Hopper somos nós.
O outro poema selecionado de Costa Fernandes é “Lamento do Menino Triste”, um texto curto de apenas sete versos. Quem fala é um garoto,
que se dedica a comparar propriedades físicas do azeite e da água, quando colocados num frasco.
Os dois versos finais são um apelo fundo e doído: “Ó mãe, faz permanecer em mim a água da alegria/ e me livra do azeite do desengano”.
Quem dera pudéssemos varrer definitivamente de nossas vidas o gosto amargo desse azeite. Os dois poemas de Costa Fernandes estão em
seu livro A Máquina das Mãos (7Letras, 2009).
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Vêm agora os poemas de Donizete Galvão. São dois dos textos mais conhecidos e celebrados do autor. Em “Escoiceados”, um poema
de fundo autobiográfico, o poeta — menino criado em sítio — trabalha com elevada dose de ironia. Relata a queda do lombo de um burro
que o pai e ele um dia experimentaram.
Como diz o ditado popular, além da queda, levaram coices do burro Ligeiro, que era “sistemático, / cheio de refugos”. E conclui:
“Meu pai e eu./ Os dois/ nunca subimos/ na vida”. É incrível como o poeta consegue transformar um episódio comum da vida no campo
numa conclusão existencial aplicada a duas gerações. As má-criações de Ligeiro tornaram-se tão icônicas que este poema, ricamente
ilustrado, já se transformou num livro independente, ricamente ilustrado, publicado em 2014.
O outro poema do autor é “Visita”, um texto arrepiante em que o narrador, com muita calma,
medita sobre a própria morte: “Que ela chegue / sem clarins ou trombetas, / entre como facho de luz / pelas gretas da janela /
e atravesse o quarto / na sua claridade”.
“Escoiceados” apareceu originalmente no livro Ruminações (1999). “Visita”, por sua vez, vem da coletânea Mundo Mudo
(2003). Toda a obra do saudoso poeta mineiro foi compilada recentemente em Poesia Reunida (Círculo de Poemas, 2023).
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Vamos aos poemas de Myriam Fraga. O primeiro, “Ars Poetica”, começa com uma afirmação nada trivial:
“Poesia é coisa / De mulheres”. Mas a poeta sustenta sua ideia. Diz que a poesia, sempre no feminino, é “Uma alquimia
de fetos / Um lento porejar / De venenos sob a pele”.
E mais ainda: “Poesia como antojos, / Como um ventre crescendo, / A pele esticada / De úteros estalando”. Quem ousa
dizer que discorda de um lirismo tão forte e incisivo, com marcas de sangue, suor e febre? E principalmente com fortes
indícios da gestação de um novo ser? Quem ousa?
O outro poema escolhido de Myriam Fraga é “Possessão”. Ao mesmo tempo doce e brutal, este texto descreve a criação
poética como a dominação do corpo e do espírito do poeta de forma similar ao que acontece com praticantes de religiões
de matriz africana ao receberem uma entidade. Diz a poeta: “O poema fez de mim / O seu cavalo; / Um arrepio no dorso, /
Um calafrio, / Uma dança de espelhos / E de espadas”.
Ambos os poemas de Myriam Fraga foram publicados originalmente na coletânea Femina (Fundação Casa de Jorge
Amado, 1996). Fazem parte também da Poesia Reunida (2008) da autora. Esse livro, que contém substancial
parte da obra dessa poeta baiana, está disponível para download gratuito no site dedicado a Myriam Fraga:
myriamfraga.com.br
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Chegamos, agora, ao nosso último poeta, o pernambucano Alberto da Cunha Melo. Seu primeiro poema é
“Metralhadora Thompson ou Morte ‘T’”. O texto discorre sobre uma marca de metralhadoras. Conforme a Wikipédia,
trata-se na verdade de uma submetralhadora ou pistola-metralhadora (não procurei saber qual a diferença),
muito usada nos EUA tanto entre policiais como entre mafiosos e gângsteres, inclusive o célebre Al Capone (1899-1947).
Para o poeta, essa metralhadora, “Pesada como uma criança / gorda, filha do fabricante, / não para de gritar
enquanto / não devora o pente de balas”. O tom é sempre de cáustica ironia. Lembra, por exemplo, que o famoso
marginal carioca Mineirinho “morreu com ela”, a Thompson (em 1962). Elevar esse instrumento mortífero a tema
de poesia constitui um dos estalos geniais de Alberto da Cunha Melo.
Em “Relógio de Ponto”, o segundo poema de Cunha Melo, destaca-se o quarteto inicial: “Tudo que levamos a sério /
torna-se amargo. Assim os jogos, / a poesia, todos os pássaros, / mais do que tudo: todo o amor”. A rigor,
somente este trecho já valeria um poema. Mas este relógio nos oferece muito mais.
Além do lirismo maiúsculo que perpassa todo o texto (exemplo: “atravessaremos os córregos / cheios de
areia, após as chuvas”), o poema ainda nos brinda com uma reluzente chave de ouro: “e lavaremos as pupilas /
cegas com o verniz das estrelas”. Tomara todo relógio de ponto, desagradável instrumento de controle do
trabalho, tivesse um décimo do prazer estético deste poema.
Toda a obra poética de Alberto da Cunha Melo está presente em sua Poesia Completa, publicada pela
Record em 2017.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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ERRATA
Na edição anterior (poesia.net n. 534,
cometi dois equívocos. 1. Em meus comentários, deixei de citar o livro Poemas (2005), de Henrique Augusto Chaudon;
e 2. Na transcrição do poema “Um Quadro Inacabado”, o verso “Onde buscas tua paisagem ou palco?” teve trocado o sinal de interrogação
por um ponto-e-vírgula. As correções foram feitas no site, repositório de todos os boletins.
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