Amigas e amigos,
O poeta e professor carioca Eucanaã Ferraz já esteve aqui no poesia.net na edição
n. 448, em julho de 2020.
Aquele boletim baseou-se em dois livros do autor: Escuta, de 2015, e Sentimental, de 2012. Agora,
voltamos à obra de Eucanaã Ferraz com poemas de seus dois livros mais recentes: Raio (2023) e
Retratos com Erro (2019). Todos os títulos citados foram publicados pela Companhia das Letras.
No volume Raio, Eucanaã experimenta bastante com poemas em prosa. De um total de 58 poemas, 28 (se não errei
nas contas) têm a forma de texto corrido. O primeiro, que é também a página de abertura do livro, é “Telescópio”,
construído a partir de recordações da infância. “A televisão era em preto e branco. As geladeiras eram brancas e
os telefones eram pretos”. Tudo se apresenta em linguagem direta, como nas redações do primário. Mas, para acentuar
o tom nostálgico (e irônico), o poeta vai mais longe e cita a cantiga do rei trovador Dom Dinis: “Ai flores do
verde pinho — onde perdi meu amigo?”
O próximo poema escolhido para a miniantologia ao lado é “Joalheria”. Nele o poeta se põe a questionar a acuidade
do velho ditado popular “Vão-se os anéis e ficam os dedos”. Para ele, ocorre justamente o contrário: “Museus barracas
de quinquilharias / antiquários estão abarrotados de anéis / sem dedos nenhuns — foram-se os dedos”.
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Em “A Canção do Cavaleiro”, um poema que adota o andamento das baladas épicas, o autor se envolve numa aventura
metalinguística. O narrador começa: “Mandei selar meu cavalo / feito de sombra e de vento / exato para o deserto — /
se lá houvesse uma estrada / que fosse dar no poema”.
O objetivo proposto é encontrar o poema. Contudo, o cavalo, meio irreal, é “feito de sombra e de vento”. Além disso,
tudo é duvidoso: não é certo que no deserto a atravessar haveria uma estrada “que fosse dar no poema”. No final,
desconsolado, o bardo conclui que o tal cavalo, selado e pronto para o embate, na verdade não existe.
“Perfil de Murilo Mendes” é o próximo texto. Nele Eucanaã se dedica a traçar um retrato “natural” do poeta juiz-forano.
“Colarinho trinta e nove sua fruta / predileta é banana-prata gosta / de fazer e de receber visitas”. Ou então:
“Escreve à mão e bem rapidamente / gosta de boi cavalo e Portinari”.
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“Veja Só” é outro exemplo extraído entre os poemas em prosa de Raio. Nele o eu poético é assumido por alguém
bem-falante com uma linguagem cheia de expressões populares e taxativas. “Adverso e desgostoso digo não redondamente
em áspero e bom som. Desconheço”. Mais: “Não e não. Em hipótese nenhuma. Nem por pensamento. Não e nões. Fora de questão”.
Mas, ao fim e ao cabo, não se sabe qual o motivo de tantas e tão radicais negações.
Vem a seguir “Mágica”, o último poema da miniantologia, único extraído do livro Retratos com Erro. Confiante no
poder lírico e encantatório da palavra, alguém pronuncia o vocábulo “amor” e espera que algo aconteça. Diz a palavra,
e repete-a mais de uma vez, “diante de um rosto impossível / para que o amor existisse”. Infelizmente, o esperado
prodígio não se realiza.
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Eucanaã Ferraz (Rio de Janeiro, 1961) é professor de literatura na UFRJ e também editor de livros e consultor em
debates literários e exposições culturais. Seus livros de poesia são: Desassombro (7Letras, 2002); Rua do Mundo (2004);
Cinemateca (2008); Sentimental (2012); Escuta (2015); Retratos com Erro (2019) e Raio (2023).
Os seis últimos títulos foram publicados pela Companhia das Letras. O autor também escreve livros para crianças.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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ERRATA
Na edição do poesia.net com o poeta Hans Magnus Enzensberger, cometi um erro primário: repeti o número
da edição anterior. Portanto, para não deixar dúvidas, aquela é a edição n. 538. A versão do boletim mantida
no site Alguma Poesia já foi corrigida.
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