Número 543 - Ano 23

Salvador, quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

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«De repente a mentira / põe os seus ovos de ouro em nossa algibeira.» (Francisco Carvalho) *

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Heba Abu Nada
Heba Abu Nada


Amigas e amigos,

Nesta quinta-feira, 12 de dezembro, este boletim completa 22 anos, idade bastante avançada para uma publicação digital. Um brinde ao poesia​.net pelo seu aniversário! E viva a poesia!

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Lembrete: este é o último boletim de 2024 com conteúdo poético. Haverá ainda uma edição com a retrospectiva do ano. Em seguida, o poesia.​net entrará no tradicional recesso de verão. Esperamos voltar com mais poesia em fevereiro de 2025. No mais, um bom fim de ano e um excelente 2025 a todas e todos.

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Em outubro do ano passado, logo após o início do atual massacre em Gaza, publiquei um boletim com poetas palestinos (poesia.net n. 519). Naquela edição, citei duas mulheres: Heba Abu Nada, poeta e romancista, e Heba Zagout, pintora, ambas mortas em bombardeios naquele mês. Elas estão outra vez aqui. Os poemas foram escritos pela primeira e as ilustrações, mais uma vez, são quadros da segunda.

Ao preparar aquele boletim, eu só conhecia o último poema de Heba Abu Nada. Contudo, mais recentemente, encontrei na internet outros poemas dela, traduzidos para o inglês por Huda Fakhreddine, professora de Literatura Árabe na Universidade da Pensilvânia, Estados Unidos.

Comecei então a traduzir, eu mesmo, alguns poemas do inglês. Sei que esse procedimento (tradução de tradução) não é aceitável, nem recomendável. Mesmo assim, decidi assumi-lo, impressionado com os versos da jovem palestina. Torço para que alguém logo traduza para o português, diretamente do árabe, poemas de Heba Abu Nada.

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Mas vamos aos textos. Em “Não Apenas Passantes”, ocorre o diálogo de uma estrela com a pequena luz existente no coração da pessoa que fala no poema. Certamente, diante do contexto de duríssimas adversidades, a luzinha titubeia e pensa em se apagar. A estrela insiste para que permaneça firme.

No final, o próprio narrador passa a encorajar sua luzinha interna: “Ó pequena luz em mim, não morra, / mesmo que todas as galáxias do mundo / se aproximem”. Em suma, não estamos aqui apenas de passagem. Temos uma tarefa a cumprir: vamos cumpri-la.

O próximo poema é “Recomponha-se”. Trata-se de um discurso dirigido a Darwish — Mahmoud Darwish (1941-2008), considerado o poeta nacional da Palestina. É o autor da “Declaração de Independência Palestina”, escrita em 1988, e lida pelo líder Iasser Arafat quando declarou unilateralmente a criação do Estado Palestino.

No poema, Heba Abu Nada repete várias vezes o lamento “Oh como estamos sozinhos!”, referindo-se ao minguado apoio oferecido por outras nações aos palestinos. Afinal, argumenta, no mercado aberto que é a Terra, os grandes países se venderam.

O eu poético dirige-se a Darwish: “A poesia não devolverá aos solitários / o que foi perdido, o que / foi roubado”. Em outras palavras, os palestinos têm sido destroçados na guerra e a poesia não tem força para mudar isso. No final, sobra um pito para a própria Palestina: “recomponha-se”. Ou seja, procure um jeito de sair desta situação.

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“Sete Céus para a Pátria” é o próximo poema. Aí está um texto que dói. Expressa o sentimento palestino de quem se sente abandonado no próprio país. Uma pátria que “corre em nossas veias” e trabalha “nos bosques da tristeza”. O final é terrível: “É como se fôssemos escândalos, nossa saudade um crime, / e o amor ao nosso país um pecado”.

Vem a seguir o poema “Eu Lhe Concedo Abrigo”. Aqui, o tema são os bombardeios israelenses. Escrito em 10 de outubro de 2023, o texto, em cinco partes, mostra bem a preocupação das pessoas aterrorizadas sob a chuva de bombas. O poema vai desde quando o míssil é ainda “a ordem de um general” até quando cai sobre casas e mesquitas — e “as lágrimas das mães agora são pombas”, “arrastando-se atrás / de cada esquife”. Triste, triste, triste.

Vem, por fim, “O Último Poema”, escrito pela poeta na véspera do bombardeio em que ela própria sucumbiu. “A noite na cidade é escura / exceto pelo brilho dos mísseis;/ (...) / tenebrosa, exceto pela luz dos mártires”.

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Heba Abu Nada (1991-2023) nasceu em Meca, na Arábia Saudita. Estudou bioquímica na Universidade Islâmica de Gaza e fez o mestrado em Nutrição Química. Poeta e prosadora, em 2017 publicou o romance Oxygen is Not for the Dead (O oxigênio não é para os mortos). A escritora foi morta aos 32 anos, durante um bombardeio em Khan Yunis, no sul da Faixa de Gaza, em 20 de outubro de 2023.

Agora, mais de um ano após a morte de Heba, a situação, que já era desesperadora no início do conflito, tornou-se “terrível e apocalíptica” — palavras usadas por António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, em comunicado no dia 2 deste mês.

Uma carta assinada por diversas organizações da ONU alerta para o fato de que “toda a população palestina no norte de Gaza está em risco iminente de morrer de doenças, fome e violência”. Segundo autoridades médicas de Gaza, mais de 45 mil pessoas já foram mortas e 105 mil ficaram feridas, desde outubro de 2023.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Nos bosques da tristeza


• Heba Abu Nada


     Tradução: Huda Fakhreddine / Carlos Machado



Heba Zagout - Untitled-2023
Heba Zagout (1984-2023), pintora palestina morta num bombardeio em Gaza, Sem título (2023)


NÃO APENAS PASSANTES

Ontem uma estrela disse
à pequena luz em meu coração:
Não somos apenas transeuntes
passando. 

Não morra. Sob esse brilho
alguns andarilhos permanecem
caminhando. 

Você foi concebida por amor.
Portanto, não leve mais que amor
àqueles que tremem.

Um dia todos os jardins brotaram
de nossos nomes, daquilo que restou
dos corações ansiosos.

E desde que se tornou madura, 
esta língua antiga
nos ensinou a curar pessoas 
com nossos desejos,

como ser um aroma celestial
para relaxar seus pulmões contraídos: 
um suspiro de boas-vindas,
um hausto de oxigênio. 

Suavemente passamos sobre as feridas,
como uma gaze suave, um olhar de alívio,
uma aspirina. 

Ó pequena luz em mim, não morra,
mesmo que todas as galáxias do mundo
se apoximem. 

Ó pequena luz em mim, diga:
Entrem em paz no meu coração.
Todos vocês, entrem!



Heba Zagout - Jerusalem is my city (detail)
Heba Zagout, Jerusalém é minha cidade (detalhe)


RECOMPONHA-SE

Oh como estamos sozinhos!
Todos os outros vencem suas guerras
e vocês foram deixados na lama,
inúteis.

Darwish, você não sabe?
A poesia não devolverá aos solitários
o que foi perdido, o que
foi roubado. 

Como estamos sozinhos!
Esta é mais uma idade da ignorância.
Malditos sejam aqueles que nos dividiram
em guerra e marcharam juntos 
em teu funeral. 

Como estamos sozinhos!
A Terra é um mercado aberto,
e seus grandes países foram leiloados,
sumiram. 

Como estamos sozinhos!
Este é um tempo de insolência,
e ninguém ficará do nosso lado,
nunca. 

Oh! Como estamos sozinhos!
Enxugue seus poemas, antigos e novos,
e todas essas lágrimas. E você, Palestina,
recomponha-se.  



Heba Zagout - Untitled-2020
Heba Zagout, Sem título (2020)


SETE CÉUS PARA A PÁTRIA

Em nossos pulmões há uma pátria
e em nossa respiração um exílio.

Uma pátria que corre em nossas veias
conforme nossos passos se aproximam dela.

Ela cultiva, nos bosques da tristeza,
videiras de estrangeiros, olhares como 
                [ lágrimas penduradas.

Ela nos presenteou com sua melodia
e desistiu de todo o canto.

Podemos negá-la, pode ela nos negar, 
                [ se é nosso sangue
e somos mestres em sangrar?

Em nossos livros, fome e pão são sinônimos,
luz e escuridão, todos os cacos quebrados.

Aprendi a encontrar esperança nos 
		[ extremos do amor
e nuvens de chuva no deserto de rimas.

É uma pátria que retorna nua para nós,
mas sabe nos envolver como um manto.

Em nosso sangue, ela esconde mares
e lança navios com nossos 
		[ batimentos cardíacos.

Enfia suas calçadas em nossos travesseiros
e suas cidades em nossos sonhos.

Dormirá ela em nós pela eternidade 
		[ e continuará 
a inventar o tempo, de novo e de novo?

Como essas oliveiras que se erguem 
		[ como estrangeiras,
sua cor e sabor alienígenas,

não há lugar para nós neste universo.
Como um corredor estreito, ela se fecha.

É como se fôssemos escândalos, nossa 
		[ saudade um crime,
e o amor ao nosso país um pecado.



Heba Zagout - Flowers-2020
Heba Zagout, Flores (2020)


EU LHE CONCEDO ABRIGO

1.

Eu lhe concedo abrigo
em invocação e prece.
Eu abençoo a vizinhança e o minarete
para protegê-los
do míssil

desde o momento
em que é a ordem de um general
até que se torna
um ataque.

Eu concedo abrigo a você e aos pequenos,
pequenos que,
com seus sorrisos, 
mudam o curso do míssil
antes que ele pouse.


2.

Eu concedo abrigo a você e aos pequenos,
os pequenos que agora dormem como pintinhos no ninho.

Em seu sono eles não caminham na direção dos sonhos.
Sabem que a morte espreita do lado de fora da casa.

As lágrimas de suas mães agora são pombas
seguindo-os, arrastando-se atrás
de cada esquife.


3.

Eu concedo abrigo ao pai,
ao pai dos pequenos que mantém a casa de pé
quando ela se inclina após as bombas.
Ele implora o momento da morte:
“Tenha misericórdia. Poupe-me um pouco.
Por eles, aprendi a amar minha vida.
Conceda-lhes uma morte
tão bonita quanto eles.”


4.

Eu lhe concedo abrigo
da dor e da morte,
refúgio na glória do nosso cerco,
aqui no ventre da baleia.

Nossas ruas exaltam Deus em cada bomba.
Reza-se pelas mesquitas e pelas casas.
E toda vez que o bombardeio começa no Norte,
nossas súplicas sobem no Sul.


5.

Eu lhe concedo abrigo
da mágoa e do sofrimento.

Com palavras da escritura sagrada
eu protejo as laranjas da picada do fósforo
e as sombras das nuvens da poluição.

Eu lhe concedo abrigo em saber
que a poeira vai se dissipar,
e aqueles que se apaixonaram e morreram juntos
um dia vão rir.

10/10/2023



Heba Zagout - Jerusalem-2023
Heba Zagout, Jerusalém (2023)


O ÚLTIMO POEMA

A noite na cidade é escura, 
exceto pelo brilho dos mísseis; 
silenciosa, exceto pelo som do bombardeio; 
aterradora, exceto pela promessa lenitiva da oração; 
tenebrosa, exceto pela luz dos mártires.




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Carlos Machado, 2024



 Heba Abu Nada
   • Todos os textos, exceto “O Último Poema”
   Trad. de Carlos Machado, com base em traduções para o inglês feitas por
   Huda Fakhreddine, profa. de Literatura Árabe na Universidade da Pensilvânia (EUA)
   • “O Último Poema”
   Transcrição de texto que circulou em vários idiomas
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* Francisco Carvalho, "Estudo", in Os Mortos Azuis (1971)
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* Imagens: quadros da pintora palestina Heba Zagout (1984-2023), morta num bombardeio na cidade de Gaza, em 13 de outubro de 2023.