Número 14

São Paulo, quarta-feira, 9 de abril de 2003 

"Dentro de mim mora um grito./ De noite, ele sai com suas garras, à caça/ De algo para amar." (Sylvia Plath)
 


Mauro Mota



Caros amigos,

O poeta pernambucano Mauro Mota (1911-1984) nasceu em Recife mas se criou em Nazaré da Mata, em meio a quintais cheios de frutas, festas em homenagem ao santo padroeiro, chuvas e formigas de asa. Tudo isso ele transportou para sua poesia.

Vejam, por exemplo, essa maravilha de poema que é "Chuva de Vento". Sempre que leio a expressão "chuva de asas" sou forçado a pensar numa revoada de tanajuras. Mas eu sou do interior. Quem não é talvez pense outra coisa, igualmente bonita. Aliás, a idéia das tanajuras aparece, mesmo, no poema...

A "Valsinha da Banda de Música Municipal" me faz pensar no personagem seu Miguel como um Sergeant Pepper de Nazaré da Mata. Toda banda do interior (para quem conhece, o interior geográfico e o interior de si mesmo) é, na verdade, uma Banda dos Corações Solitários do Sargento Pimenta. Pelas graças de Mauro Mota, Lennon & McCartney.

Confiram, por fim, o "Instantâneo". Delicioso. Fofoca provinciana em estado puro.


Um abraço,

Carlos Machado



 

Lembranças do interior

Mauro Mota

 




CHUVA DE VENTO

De que distância
chega essa chuva
de asas, tangida
pela ventania?

Vem de que tempo?
Noturna agora
a chuva morta
bate na porta.

(As biqueiras da infância, as lavadeiras
correm, tiram as roupas do varal,
relinchos do cavalo na campina,
tangerinas e banhos no quintal,
potes gorgolejando, tanajuras,
os gansos, a lagoa, o milharal.)

De onde vem essa
chuva trazida
na ventania?

Que rosas fez abrir?
Que cabelos molhou?

Estendo-lhe a mão: a chuva fria.




VALSINHA DA BANDA DE MÚSICA MUNICIPAL

Música da
Banda Euterpina
Juvenil de
Nazaré da Mata

tocando ao
luar de prata.
(O seresteiro
achando a rima
da serenata.)
Música pelo
Natal; na festa
da padroeira.
(A procissão,
Nossa Senhora
da Conceição.)
Música nos bailes
de carnaval
e em funeral.

Seu Miguel ensaiava de noite, na Rua
da Palha, para as tocatas coletivas.
Nunca mais deixei de ouvir
as suas noturnas melodias na janela.
Sinto que ele acorda e volta de longe nesta madrugada.
Limpa a farda de tempo e areia,
vem do cemitério de São Sebastião,
vem com a sua valsa de antigamente,
vem com o seu clarinete na mão.




INSTANTÂNEO

No pátio da igreja de São Sebastião,
depois da missa cantada e da comunhão,
Dona Santinha, em perfeito estado de graça,
com o véu, o livro e o terço na mão,
murmurava a um grupinho que Padre João
estava, na sacristia, se derretendo
para a filha mais nova do sacristão.

 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2003

•  Mauro Mota
    In Itinerário
   
José Olympio, Rio de Janeiro, 1975