Número 31

São Paulo, quarta-feira, 6 de agosto de 2003 

«Deus, que será de ti quando eu morrer?» (Rainer Maria Rilke)
 


Tarso de Melo


Caros amigos,

O que pode fazer um artista diante de sua realidade? Perguntas assim vêm da poesia de alta dicção: “Que pode uma criatura senão,/ entre criaturas, amar?” (Drummond, 1951). Mas também podem vir da música pop mais escancarada: “Que pode fazer um garoto pobre senão tocar numa banda de rock’n’roll?” (Rolling Stones, 1968).

O que pode escrever, neste início de século, um jovem poeta, vivendo em Santo André, na Grande São Paulo, senão dizer aquilo que vê? É o que faz o poeta e advogado Tarso de Melo (1976-) em seu quarto livro, Carbono.

Em retratos sombrios, o poeta se embrenha no cotidiano da megalópole e parece ver a repetição dos dias e da paisagem árida, poluída. Não por acaso, um poema longo de Carbono se chama "Deserto". Dele retirei para este boletim os fragmentos "13" e "19". A própria falta de títulos com palavras tende a acentuar o clima cáustico. Um clima marcado pelo "agosto desse concreto armado".

Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado

 

Paisagens do deserto

Tarso de Melo

 



DESERTO
           
                    (trechos)


13

PONTAS DE FACA abrem
de um canto a outro
a manhã — desterro em
meu deserto

uma mulher, seus filhos,
sacolas

um casal na noite
expande o vulto duro
de uma árvore

volta-se um
contra o outro
até cegarem
quem
os observa



19

SEUS CACOS ao alcance do olho
estilhaços: um cão late
ao longe, talvez ao acaso

o que sobra da vida
entre um e outro passo

poça, o que fica da chuva

como uma flor — precisa
em seus disparos; a dor
como presença
nos detalhes; o corpo de
uma cor, seus claros

espaço que se abre
temporário
no agosto desse concreto
armado

 

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Carlos Machado, 2003

Tarso de Melo
•  In Carbono
   
Nankin Editorial/Alpharrabio Edições
    São Paulo/Santo André-SP, 2002