Tarso de Melo
Caros amigos,
O que pode fazer um artista diante de sua realidade? Perguntas
assim vêm da poesia de alta dicção: “Que pode uma criatura senão,/ entre
criaturas, amar?” (Drummond, 1951). Mas também podem vir da música pop mais
escancarada: “Que pode fazer um garoto pobre senão tocar numa banda de rock’n’roll?”
(Rolling Stones, 1968).
O que pode escrever, neste início de século, um jovem poeta, vivendo em Santo
André, na Grande São Paulo, senão dizer aquilo que vê? É o que faz o poeta e
advogado Tarso de Melo (1976-) em seu quarto livro, Carbono.
Em retratos sombrios, o poeta se embrenha no cotidiano da megalópole e parece
ver a repetição dos dias e da paisagem árida, poluída. Não por acaso, um poema
longo de Carbono se chama "Deserto". Dele retirei para este boletim os
fragmentos "13" e "19". A própria falta de títulos com palavras tende a acentuar
o clima cáustico. Um clima marcado pelo "agosto desse concreto armado".
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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Paisagens do deserto
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Tarso de Melo |
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DESERTO
(trechos)
13
PONTAS DE FACA abrem
de um canto a outro
a manhã — desterro em
meu deserto
uma mulher, seus filhos,
sacolas
um casal na noite
expande o vulto duro
de uma árvore
volta-se um
contra o outro
até cegarem
quem
os observa
19
SEUS CACOS ao alcance do olho
estilhaços: um cão late
ao longe, talvez ao acaso
o que sobra da vida
entre um e outro passo
poça, o que fica da chuva
como uma flor — precisa
em seus disparos; a dor
como presença
nos detalhes; o corpo de
uma cor, seus claros
espaço que se abre
temporário
no agosto desse concreto
armado
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