Orides Fontela
Caros amigos,
Dona de uma dicção ora enigmática, ora precisa como uma
incisão de bisturi, a paulista Orides Fontela (1940-1998) deixou uma apaixonante
obra poética. É difícil começar a ler sua obra quase completa
— Trevo (1969-1988), que reúne todos os
seus livros, menos um
— e não se deixar envolver.
Sobre seu trabalho escreveu o crítico Antonio Candido: "Uma poesia diáfana, mas
densa, alada e cheia de peso, onde um vocábulo como pássaro pode assumir
significados da mais poderosa vitalidade; onde a pureza incontaminada de espelho
pode virar signo de drama e tormento".
De fato, Orides exibe especial predileção por palavras como pássaro e flor. Seus
poemas oscilam entre formulações abstratas (vejam, ao lado, o poema "Fala") e
constatações bem concretas de uma vida amarga. Como ela diz, desconsoladamente,
no epigrama "CDA (imitado)":
Ó vida, triste vida!
Se eu me chamasse Aparecida
dava na mesma.
Outro aspecto em que Orides se destaca é a síntese, da qual o poema "Média"
constitui um bom exemplo. Outro exemplo é o concretíssimo "Herança". Avessa às
choramingas, ela usa essa capacidade de dizer muito em poucas palavras para
construir essa "Prece" enxuta e tocante, desesperada até, dirigida a uma
potestade sem nome, a "Senhora das feras e esferas".
O livro Trevo está esgotado. Mas você ainda pode encontrar nas
lojas a última obra de Orides Fontela, Teia (Geração Editorial, 1996).
Um abraço,
Carlos Machado
ATUALIZAÇÃO
Este boletim é de 2003. Em 2006, saiu o volume Poesia Reunida [1969-1996],
de Orides Fontela, que neste momento (22/09/2014) também se encontra esgotado.
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Para que serve o pássaro?
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Orides Fontela |
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ELEGIA (I)
Mas para que serve o pássaro?
Nós o contemplamos inerte.
Nós o tocamos no mágico fulgor das penas.
De que serve o pássaro se
desnaturado o possuímos?
O que era vôo e eis
que é concreção letal e cor
paralisada, íris silente, nítido,
o que era infinito e eis
que é peso e forma, verbo fixado, lúdico
O que era pássaro e é
o objeto: jogo
de uma inocência que
o contempla e revive
— criança que tateia
no pássaro um
esquema de distâncias —
mas para que serve o pássaro?
O pássaro não serve. Arrítmicas
brandas asas repousam.
De Transposição (1969)
HERANÇA
Da avó materna:
uma toalha (de batismo).
Do pai:
um martelo
um alicate
uma torquês
duas flautas.
Da mãe:
um pilão
um caldeirão
um lenço.
De Rosácea (1986)
MÉDIA
Meia luz.
Meia palavra.
Meia vida.
Não basta?
De Transposição (1969)
FALA
Falo de agrestes
pássaros de sóis
que não se apagam
de inamovíveis
pedras
de sangue
vivo de estrelas
que não cessam.
Falo do que impede
o sono.
De Teia (1996)
PRECE
Senhora
das feras
e esferas
Senhora
do sangue
e do abismo
Senhora
do grito
e da angústia
Senhora
noturna
e eterna
— escuta-nos!
De Teia (1996)
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