Número 32

São Paulo, quarta-feira, 13 de agosto de 2003 

«Duro caminho é o de saber que não há caminho» (Emílio Moura)
 


Orides Fontela


Caros amigos,

Dona de uma dicção ora enigmática, ora precisa como uma incisão de bisturi, a paulista Orides Fontela (1940-1998) deixou uma apaixonante obra poética. É difícil começar a ler sua obra quase completa Trevo (1969-1988), que reúne todos os seus livros, menos um — e não se deixar envolver.

Sobre seu trabalho escreveu o crítico Antonio Candido: "Uma poesia diáfana, mas densa, alada e cheia de peso, onde um vocábulo como pássaro pode assumir significados da mais poderosa vitalidade; onde a pureza incontaminada de espelho pode virar signo de drama e tormento".

De fato, Orides exibe especial predileção por palavras como pássaro e flor. Seus poemas oscilam entre formulações abstratas (vejam, ao lado, o poema "Fala") e constatações bem concretas de uma vida amarga. Como ela diz, desconsoladamente, no epigrama "CDA (imitado)":

Ó vida, triste vida!
Se eu me chamasse Aparecida
dava na mesma.

Outro aspecto em que Orides se destaca é a síntese, da qual o poema "Média" constitui um bom exemplo. Outro exemplo é o concretíssimo "Herança". Avessa às  choramingas, ela usa essa capacidade de dizer muito em poucas palavras para construir essa "Prece" enxuta e tocante, desesperada até, dirigida a uma potestade sem nome, a "Senhora das feras e esferas".

O livro Trevo está esgotado. Mas você ainda pode  encontrar nas lojas a última obra de Orides Fontela, Teia (Geração Editorial, 1996).


Um abraço,


Carlos Machado


 

ATUALIZAÇÃO

Este boletim é de 2003. Em 2006, saiu o volume Poesia Reunida [1969-1996], de Orides Fontela, que neste momento (22/09/2014) também se encontra esgotado.

 

Para que serve o pássaro?

Orides Fontela

 



 


 


ELEGIA (I)



Mas para que serve o pássaro?
Nós o contemplamos inerte.
Nós o tocamos no mágico fulgor das penas.
De que serve o pássaro se
desnaturado o possuímos?

O que era vôo e eis
que é concreção letal e cor
paralisada, íris silente, nítido,
o que era infinito e eis
que é peso e forma, verbo fixado, lúdico

O que era pássaro e é
o objeto: jogo
de uma inocência que

o contempla e revive
— criança que tateia
no pássaro um
esquema de distâncias —

mas para que serve o pássaro?

O pássaro não serve. Arrítmicas
brandas asas repousam.


                    De Transposição (1969)

 


 

HERANÇA


Da avó materna:
uma toalha (de batismo).

Do pai:
um martelo
um alicate
uma torquês
duas flautas.

Da mãe:
um pilão
um caldeirão
um lenço.

                    De Rosácea (1986)



 

MÉDIA


Meia luz.
Meia palavra.
Meia vida.

Não basta?

              
De Transposição (1969)




 

 

FALA

Falo de agrestes
pássaros           de sóis
    que não se apagam
    de inamovíveis
    pedras

    de sangue
    vivo         de estrelas
    que não cessam.

    Falo do que impede
    o sono.

 

                    De Teia (1996)



 

PRECE


Senhora
das feras
e esferas

Senhora
    do sangue
    e do abismo

    Senhora
    do grito
    e da angústia

    Senhora
    noturna
    e eterna

    — escuta-nos!


                    De Teia (1996)


 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2003

Orides Fontela
•  "Elegia (I)"; "Herança"; "Média"
    In
Trevo (1969-1988)
    Livraria Duas Cidades, São Paulo, 1988
•  "Fala"; "Prece"
    In Teia
    Geração Editorial, São Paulo, 1996