Número 51

São Paulo, quarta-feira, 24 de dezembro de 2003

«Eu não sou eu nem sou o outro,/Sou qualquer coisa de intermédio.» (Mário de Sá-Carneiro)
 


Maria Lúcia Martins


Caros amigos,

A poesia de Maria Lúcia Ribeiro Martins (Jequié-BA, 1936) é, por vocação, lírica e límpida. Seus versos, muitas vezes, são tocados de uma pureza primordial, algo com sabor de água da fonte, chuva, folha miúda.

Veja-se, por exemplo, o ritmo envolvente e silvestre dessas "Garças". Tudo aí é natural, e cresce como ave que vai conquistando espaço em seu vôo. Ou como a tarde que avança da sede do meio-dia para o recolhimento do crepúsculo. Água, asas, areia.

O poema ao lado faz parte do livro A Condição de Pégaso, volume que reúne poemas de Maria Lúcia Martins escritos até o ano 2000. Saudada por poetas e críticos como Ruy Espinheira Filho, Antonio Carlos Secchin e Ferreira Gullar, Lúcia oferece, nesse vôo do Pégaso, uma expressiva amostra de seu trabalho. Seu território é o vôo sutil. Ela mesma o anuncia: "Quando nasci,/ meu destino era um cavalo/ invisível'.

O volume A Condição de Pégaso, publicado na Bahia, terra natal de Maria Lúcia, será lançado agora em janeiro, no Rio. Local e data: Paço Imperial, dia 15/01/2004, quinta-feira.

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Um abraço, e boas festas,


Carlos Machado



NOTA
A poeta Maria Lúcia Ribeiro Martins faleceu em 2016.
 

A dança das garças

Maria Lúcia Martins

 


GARÇAS



Antes não havia garças. (Antes
                            dos ventos).
Restos de estrelas navegavam a noite
                            (a nuvem escura)
e se alvejavam em seixos e ossos.
                            À mesma noite
acrescentam-se sombras: eram as penas
                            e a plumagem.
As garças não eram feitas: surgiam. Leves,
                            feitas de vôo
(o vôo primeiro). Garças de asas
                            emendadas em asas,
as garças passam penhascos, além,
                            os prados cinza.
O verde inda é longe. Longe, as aves
                            adivinham a terra.
As garças descem (como atraídas) e
                            sentem a primeira
sede. A água compreendida pela
                            sede. Jamais
a informação da água: as garças gestadas
                            de puro vôo.

Nos ventos, o olhar enfastiou-se.
As garças buscam clarão de madrugadas
(ou de crepúsculos: nenhum sinal
por distinguir a cor das horas).
As garças pisam areias virgens
(imprimem sua chegada: a cruz aberta)
beiras de charcos, beiras de lagos,
restos de mar incendiados ao meio-dia.

Às vezes, as garças se animam
com o assovio dos ventos chamando
a noite. E dançam. Dançam o passado
cravado às asas. Nunca procuram
caminhos de volta: foram apagados.
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2003

Maria Lúcia Martins
In A Condição de Pégaso
Sec. da Cultura e Turismo, Funceb, EGBA
Salvador, 2002