Número 52

São Paulo, quarta-feira, 31 de dezembro de 2003

«Ó mundo, vamos dançar.» (Alphonsus de Guimaraens Filho)
 


FELIZ 2004 * FELIZ 2004 * FELIZ 2004

Estátua de Drummond na praia de Copacabana, Rio de Janeiro
 

Caros amigos,

Esta é uma edição especial. Para saudar a chegada de 2004 com poesia de altíssimo quilate, recorro ao nosso poeta-maior, Carlos Drummond de Andrade.

O poema "Passagem do Ano" é superconhecido. Vem do livro mais festejado do poeta: A Rosa do Povo, obra-prima publicada em 1945. Mas conhecimento prévio não quer dizer nada. Afinal, a grande poesia não foi feita para ser lida uma vez e descartada em seguida.

A poesia merecedora desse nome é um objeto no qual o leitor está sempre descobrindo uma nova dimensão — das palavras, de si mesmo, de todos os seres humanos, ou sobre a essência da própria poesia.

Então, voltemos ao velho Drummond como quem abre mais uma garrafa de um conhecido e apreciado vinho. Como diz o poeta, "recebe com simplicidade este presente do acaso. Mereceste viver mais um ano". E isso, por si só, é motivo de alegria.

Feliz 2004. Que neste ano novo haja mais lugar para as nossas teimosas esperanças de construir um lugar de paz, justiça, fraternidade. Palavras gastas, talvez. Mas em quais outras acreditar?

Tin-tin. Feliz Ano Novo!

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Um abraço,

Carlos Machado

 

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FÉRIAS
Neste número o boletim poesia.net faz uma pausa até o final de janeiro.
 

FELIZ 2004 * FELIZ 2004 * FELIZ 2004

O último dia do ano

Carlos Drummond de Andrade

 







PASSAGEM DO ANO



O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o
                                      [ calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória,
                [ doce morte com sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o
                                      [ clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.

O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus...

Recebe com simplicidade este presente do
                                         [ acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos
                                         [ séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras
                                [ espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles... e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.

As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.


 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2003

Carlos Drummond de Andrade
In Reunião
— 10 Livros de Poesia
(de A Rosa do Povo, 1945)
Ed. José Olympio, Rio de Janeiro, 1971