João Camilo
Caros amigos,
O poeta, ficcionista e crítico português João Camilo dos Santos (1943-) é um
homem de letras, no sentido da expressão. Estudou filologia em Lisboa, trabalhou
com literatura na Noruega e na França. Atualmente, ele dirige o centro de
estudos portugueses da Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara.
Um traço que salta aos olhos logo nos primeiros contatos com a poesia de João
Camilo é seu escancarado andamento de prosa. Os temas estão sempre ligados à
observação de pequenos momentos do cotidiano, episódios banais e aparentemente
desprovidos de matéria poética.
O autor parece dedicar-se a um exercício de garimpo para extrair emoção de
situações cinzentas e sem graça.
Os dois poemas mostrados aqui são bons exemplos dessas características. O
primeiro, "À Flor da Pele", foi publicado na revista de poesia Inimigo Rumor
n. 13. O outro, "Que se Passa?" vem do livro Nunca Mais se Apagam as Imagens,
de 1996.
Um abraço,
Carlos Machado
•
•
• |
À flor da pele
|
João Camilo |
|
À FLOR DA PELE
Acende o cigarro, rapariga. E olha para a
rua onde passam transeuntes desconhecidos.
A tarde vai avançando e nós morrendo nela
ou morrendo nela as nossas esperanças,
a ilusão de eternidade. A beleza o que é?
Braços nus, o ventre liso nu, os cabelos caídos
nos ombros. A desconhecida concentra em si
a atenção do homem desocupado. Para
distrair-se, ele olha para ela e recorda-se
da história antiga do amor, reconstrói
ficções que sabe serem apenas ficções. Assim
passa o tempo, depois irá para casa. Quem
sabe o segredo mais secreto da existência
de cada um? Todos nós temos uma
história. Uns calam-na, outros murmuram
entre dentes os episódios essenciais, outros
encontram palavras com que construir o
poema hermético. Que diferença é que faz?
De tudo se constrói a existência, se alimenta
o sentido. Camisa branca à flor da pele, a
rapariga levantou-se e foi lá dentro do café
comprar qualquer coisa. Palavras, deixai-me
celebrar o vão movimento dos ponteiros do
relógio, os episódios vãos, a nossa morte.
QUE SE PASSA?
Claro que não, de maneira nenhuma.
Estava sentada ao meu lado, o desejo
agitava-lhe o ventre, ela semicerrava
os olhos. De maneira nenhuma, assim não,
ainda não. Debrucei-me sobre o seu rosto
e beijei-a. Pousei a cabeça no seu peito
e esperei pelas suas mãos. Continuava,
lento, a ir devagar ao encontro do desejo.
Não tinha pressa. Ela apertava-me
contra si silenciosamente, parecia
dormir e repousava o seu corpo como
se a morte ou uma hibernação o tivessem
ocupado. A televisão passava um filme
de John Ford. Ela ergueu-se subitamente,
afastou-me. Que se passa, perguntei-lhe,
surpreendido. Nada, respondeu ela, mas não é
o filme de John Ford que acaba de começar?
Não o quero perder. De acordo, pensei eu.
Levantei-me, fui sentar-me na cadeira do outro
lado da sala. Acendi um cigarro. Lá fora
caíra a noite há muito tempo. Mas quem
tinha vontade de pensar no que se passava
lá fora? Um filme de John Ford, repeti em voz
baixa. Apaguei o cigarro e concentrei-me
na aventura irreal, nas cores magníficas do deserto.
|