Fernando Paixão
Caros amigos,
Nascido numa aldeia portuguesa em 1955, o poeta Fernando Paixão reside em São Paulo
desde os anos 60. Sua poesia, em minha opinião, é marcada pela busca de
essências. Nela não se encontram ecos diretos do que ocorre agora nas ruas. O
poeta arrisca a mirada larga de quem tenta apreender, mesmo nos pequenos
gestos, a ação mais duradoura, o traço daquilo que permanece. Pode-se mesmo
dizer que ele tende a um lirismo de corte filosófico.
Para este boletim, selecionei poemas de três livros de
Fernando Paixão: Fogo dos Rios (1989), 25 Azulejos (1994) e Poeira (2001) . Observem
os títulos: ele quase sempre trabalha com elementos fundamentais: água, terra, fogo e ar.
Azulejos, se alguém pensou o contrário, também não fogem à regra: são feitos de barro. E
mais: seu primeiro livro, de 1980, chama-se Rosa dos
Ventos.
Em Fogo dos Rios, o poeta se inspira, livremente, nos
fragmentos filosóficos deixados pelo grego Heráclito de Éfeso (c.544-484 aC).
Nessa revisitação poética, Fernando Paixão atinge altos momentos de concisão e
sutileza, como nos poemas 95 e 109, que se completam. Uma bela discussão
sobre o rosto e a máscara.
Nos 25 Azulejos, o autor decide trabalhar com minipoemas, todos
de 11 versos. Daí a idéia do azulejo, objeto que tem uma forma fixa. Um
exercício de contenção.
Em Poeira, o poeta volta-se para as raízes portuguesas. Há lembranças de
Beselga, sua aldeia natal. E há também a reflexão maior, pessoana, sobre os
destinos lusitanos. "Dói olhar o mar de uma cadeira",
escreve ele. Esse verso de fato dói, pelo menos se pensarmos nos
portugueses das grandes navegações. O
sentimento é de uma nostalgia inumerável. As glórias dos barões assinalados
reduzidas a um Adamastor corcunda e invertebrado.
Fernando Paixão é também ensaísta. Seu estudo mais recente nessa área está no
livro Narciso em Sacrifício: A Poética
de Mário de Sá-Carneiro, publicado pela Ateliê Editorial (São Paulo, 2003).
Um abraço,
Carlos Machado
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Água, terra, fogo e ar
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Fernando Paixão |
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SENTIMENTO PORTUGUÊS
Atado ao crepúsculo deste vagamundo
vejo mãos líquidas bater na praia inteira.
Escrevem brancas palavras de um sal agudo
e triste. Dói olhar o mar de uma cadeira.
Os lábios das canoas tremulam heurísticos
em contraste a navios castos sonolentos.
Só mesmo a corcunda de Adamastor persiste
caída ao longe: sem esqueleto por dentro
nem a mover-lhe Deus
— que acaso não
existe
mas aparece posto neste rosto imenso.
De Poeira (2001)
ALEIJADINHO
Na pausa do cinzel e das ferramentas
declinas perguntas à pedra.
Teus profetas elegem o ar
conhecem o volteio dos dias
pisam
o pergaminho das parábolas.
Doze vezes a pedra humanizada
respira
o silêncio das colinas.
Tuas mãos em descanso emocionam
o tempo fixado.
De 25 Azulejos (1994)
FOGO DOS RIOS
49-a
Corpo: rio
de tantas margens
de onde
secretamente
se entra e se sai.
86
Alegria despertar em campos de trigo
quando os homens erguem os feixes
e levantam contra o céu o vapor das almas.
São meus irmãos
esses que põem os pés no barro
enfiam as mãos nos pântanos
e das raízes arrancam
a parte do fogo.
95
Tira
do rosto
a máscara:
fica
a máscara
do rosto. |
109
Tira
da máscara
o rosto:
fica
o rosto
da máscara. |
115
Fosse o rio
abraçaria o mar.
Fosse mar
abraçaria o ar.
Fosse ar
abraçaria o fogo.
Seria então
todo.
De Fogo dos Rios (1989)
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Carlos Machado,
2004
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Fernando Paixão
• "Sentimento Português"
In Poeira
Editora 34, São Paulo, 2001
• "Aleijadinho"
In 25 Azulejos
Iluminuras, São Paulo, 1994
• "49-a", "86", "95", "109", "115"
In Fogo dos Rios
Ed. Brasiliense, São Paulo, 1989
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