Rosana Piccolo
Caros amigos,
Praticante de um gênero raro no Brasil, o poema em prosa, a poeta paulistana Rosana Piccolo cria textos curtos, que nunca excedem a extensão de uma página.
Localizado no cotidiano da metrópole, cada poema de Rosana envolve uma cena do
cotidiano. Mas não se trata de meras fotografias. Coisas e personagens se movem
dentro de um ambiente estranho, que é a cidade, sim, mas coada por filtros
poéticos, em cuja química entra uma dose de nonsense e surrealismo.
O olhar urbano da autora se trai desde os títulos de seus livros: Ruelas
Profanas (1999) e Meio-Fio (2003). Não é à toa que um personagem do
poema "Paixão em Trânsito" declara ter na "na boca um gosto de óleo diesel". Em
sua prosa poética, Rosana reinventa uma Paulicéia pessoal. Como diz o poeta
Carlos Felipe Moisés no prefácio de Meio-Fio: "Ao mesmo tempo que é
representação direta da caótica diversidade do cenário urbano, é também
representação metafórica de uma subjetividade escorregadia e multifacetada, que
se mostra e se recolhe, e que, ao voltar-se para fora, busca ao mesmo tempo o
autoconhecimento, a auto-apreensão".
Por motivos
óbvios, poemas de Rosana Piccolo foram incluídos este ano na antologia Paixão por São
Paulo, que reúne textos sobre a cidade escritos por 70 poetas do início do
século XX até o presente.
Um abraço,
Carlos Machado
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AUGUSTO DOS ANJOS
Na semana passada, numa nota adicional sobre o paraibano Augusto dos Anjos (poesia.net
n. 80),
pisei na bola chamando-o de "poeta alagoano". Nem eu mesmo faço idéia de
onde tirei isso. Tanto que, logo depois de soltar o boletim, notei a bobagem e
corrigi a página que foi para o site. Mas, para vocês, já era tarde. Depois, o
poeta José Inácio Vieira de Melo e o contista Valdomiro Santana, ambos de
Salvador, me chamaram a atenção para o equívoco. Fica, pois, registrado o
erro. |
Um gosto de óleo diesel
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Rosana Piccolo |
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PAIXÃO EM TRÂNSITO
No furacão de horas úteis, ele vinha ao celular. Não falava alto, nem espesso
era o pulôver. Eu tinha na boca um gosto de óleo diesel.
Todos na rua vestiam azul. Embora nem motoristas, nem sonhadores fossem. Também
não eram pacifistas, cirurgiões, açougueiros, não havia sangue, nem pássaros
claros em suas mãos sombrias de chuva. Era um dia feio e sem sol. Eu olhei. Ele
olhou. Eu tinha na boca um gosto de carvão.
Todos na rua eram deuses do luto. Nenhum clérigo no entanto, nenhum gótico ou
judeu. Ele passou e eu passei. Ele tudo entendeu e eu também. A Fiandeira, que
enrolou todo o mistério, nunca saberá dizer o quê.
BOLETIM DE OCORRÊNCIA POSSÍVEL
Tenho a rua, findando em outra rua de músculo e trégua, tenho o braço-de-ferro.
Tenho as asas curvas de um anjo esverdeado, tenho dois orelhões. Debaixo de um,
fala o carrasco. Noutro fala o violonista. Tenho o pulso público, noturno, o
telefonema obscuro.
Tenho a mágoa retorcida do recém-nascido, a meia-parede. No excesso de chuveiros
derramam-se os caranguejos. O chaveiro conheço, tenho o olho da coruja que choca
em árvores que dão na lua. Eu teria a pétala de um fígado pulsando em redomas,
borboletas de loucura e a exclusividade do crime, não fosse a porta, bocarra do
vento batendo forte.
ALVA
A
bailarina escapou da caixinha, nem lembrou da despedida. Parecia feita de talco,
não fosse o giro tão vago, nas varredelas do ar.
Fugiu em surdina. Pelo ralo, pela pia, pelo olhar da fechadura. Teria sido manso
orvalho, não fosse a estrela descalça, tinha o cadarço nas mãos.
A
bailarina se foi, lenço algum no corredor. Virou vento, garça aflita, verso
branco, sem final.
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