Número 83

São Paulo, quarta-feira, 25 de agosto de 2004 

«Quem nunca esperou, ansioso, diante da / cortina do próprio coração?» (Rainer Maria Rilke)
 


Rosana Piccolo


Caros amigos,


Praticante de um gênero raro no Brasil, o poema em prosa, a poeta paulistana Rosana Piccolo cria textos curtos, que nunca excedem a extensão de uma página. Localizado no cotidiano da metrópole, cada poema de Rosana envolve uma cena do cotidiano. Mas não se trata de meras fotografias. Coisas e personagens se movem dentro de um ambiente estranho, que é a cidade, sim, mas coada por filtros poéticos, em cuja química entra uma dose de nonsense e surrealismo.

O olhar urbano da autora se trai desde os títulos de seus livros: Ruelas Profanas (1999) e Meio-Fio (2003). Não é à toa que um personagem do poema "Paixão em Trânsito" declara ter na "na boca um gosto de óleo diesel". Em sua prosa poética, Rosana reinventa uma Paulicéia pessoal. Como diz o poeta Carlos Felipe Moisés no prefácio de Meio-Fio: "Ao mesmo tempo que é representação direta da caótica diversidade do cenário urbano, é também representação metafórica de uma subjetividade escorregadia e multifacetada, que se mostra e se recolhe, e que, ao voltar-se para fora, busca ao mesmo tempo o autoconhecimento, a auto-apreensão".

Por  motivos óbvios, poemas de Rosana Piccolo foram incluídos este ano na antologia Paixão por São Paulo, que reúne textos sobre a cidade escritos por 70 poetas do início do século XX até o presente.

Um abraço,


Carlos Machado

 

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AUGUSTO DOS ANJOS
Na semana passada, numa nota adicional sobre o paraibano Augusto dos Anjos (poesia.net n. 80), pisei na bola chamando-o de  "poeta alagoano". Nem eu mesmo faço idéia de onde tirei isso. Tanto que, logo depois de soltar o boletim, notei a bobagem e corrigi a página que foi para o site. Mas, para vocês, já era tarde. Depois, o poeta José Inácio Vieira de Melo e o contista Valdomiro Santana, ambos de Salvador, me chamaram a atenção para o equívoco.  Fica, pois, registrado o erro.

Um gosto de óleo diesel

Rosana Piccolo

 



PAIXÃO EM TRÂNSITO

No furacão de horas úteis, ele vinha ao celular. Não falava alto, nem espesso era o pulôver. Eu tinha na boca um gosto de óleo diesel.

Todos na rua vestiam azul. Embora nem motoristas, nem sonhadores fossem. Também não eram pacifistas, cirurgiões, açougueiros, não havia sangue, nem pássaros claros em suas mãos sombrias de chuva. Era um dia feio e sem sol. Eu olhei. Ele olhou. Eu tinha na boca um gosto de carvão.

Todos na rua eram deuses do luto. Nenhum clérigo no entanto, nenhum gótico ou judeu. Ele passou e eu passei. Ele tudo entendeu e eu também. A Fiandeira, que enrolou todo o mistério, nunca saberá dizer o quê.



BOLETIM DE OCORRÊNCIA POSSÍVEL

Tenho a rua, findando em outra rua de músculo e trégua, tenho o braço-de-ferro. Tenho as asas curvas de um anjo esverdeado, tenho dois orelhões. Debaixo de um, fala o carrasco. Noutro fala o violonista. Tenho o pulso público, noturno, o telefonema obscuro.

Tenho a mágoa retorcida do recém-nascido, a meia-parede. No excesso de chuveiros derramam-se os caranguejos. O chaveiro conheço, tenho o olho da coruja que choca em árvores que dão na lua. Eu teria a pétala de um fígado pulsando em redomas, borboletas de loucura e a exclusividade do crime, não fosse a porta, bocarra do vento batendo forte.


ALVA

A bailarina escapou da caixinha, nem lembrou da despedida. Parecia feita de talco, não fosse o giro tão vago, nas varredelas do ar.

Fugiu em surdina. Pelo ralo, pela pia, pelo olhar da fechadura. Teria sido manso orvalho, não fosse a estrela descalça, tinha o cadarço nas mãos.

A bailarina se foi, lenço algum no corredor. Virou vento, garça aflita, verso branco, sem final.

 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2004

Rosana Piccolo
• "Paixão em Trânsito",
"Boletim de Ocorrência Possível"

In Meio-Fio
Iluminuras, São Paulo, 2003
• "Alva"
In Ruelas Profanas
Nankin, São Paulo, 1999