Florisvaldo Mattos
Caros amigos,
O poeta baiano Florisvaldo Mattos (1932-) é dono de uma dicção que combina rigor
formal com alta expressividade lírica. Para sentir, desde logo, a força desse
poeta, leia ao lado o poema "Passos e Acenos". Trata-se
de um texto amoroso, no qual um homem corteja uma mulher. Como tema, nada mais
banal. Mas o que se vê aí é um texto recheado de artimanhas e surpresas. Um
soneto tenso, erótico, elegante. Observações similares se podem fazer sobre os
demais poemas.
Formado em direito, Florisvaldo Mattos optou pelo jornalismo, atividade que
exerce até o presente. Nos anos 60, integrou em Salvador o grupo da chamada
Geração Mapa, liderado pelo cineasta Glauber Rocha.
Entre suas obras publicadas, estão Reverdor (1965); Fábula Civil
(1975); A Caligrafia do Soluço & Poesia Anterior (1996); e Mares
Acontecidos (2000). Ele lança agora um ensaio, Travessia de Oásis
– A Sensualidade na Poesia de Sosígenes Costa.
Nesse volume, Florisvaldo analisa a trajetória poética do também baiano
Sosígenes
(1901-1968)
e até encontra aproximações entre a obra dele e a do grego
Konstantinos
Kaváfis (1863-1933).
Abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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Passos e acenos
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Florisvaldo Mattos |
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PASSOS E ACENOS
Nada tens de ave. Fera lúcida, olho
felino (pantera de Rilke entre grades)
nunca indefesa, à espreita. Além dos olhos,
bebo teu corpo, teu cabelo (franja
dos dias) — o mais dardeja. Também és
elástica e macia: braços, pernas
de roliça cogitação. Vais, vens.
De pé, agitas os vaporosos membros,
ao calor da voz que atordoa o vento.
Sentada, as formas se acomodam, urdem
rútilo desenho. É quando, pasmo, ouço
o marulho do sexo, ávido. Bem
que mereço essa onda, ronda de garras
que me acenam, me buscam pela tarde.
A CABRA
Talvez um lírio. Máquina de alvura
Sonora ao sopro neutro dos olvidos.
Perco-te. Cabra que és já me tortura
guardar-te, olhos pascendo-me vencidos.
Máquina e jarro. Luar contraditório
sobre lajedo o casco azul polindo,
dominas suave clima em promontório;
cabra, o capim ao sonho preferindo.
Sulca-me, perdurando nos ouvidos,
laborada em marfim — luz e presença
de reinos pastoris antes servidos —,
teu pêlo, residência da ternura,
onde fulguras na manhã suspensa:
flor animal, sonora arquitetura.
ENTRETANTO DESERTOS
Para Vera
Gosto de teus lábios úmidos
ávido de murmúrios
para dentro do peito
feito
o que a mim recusas
em teu querer diurno
Gosto
de teu rosto parado
logo súbito achado
ao velejar dos olhos
escolhos
repletos de adeuses
em viagem de busca
Gosto
do ilimitado espaço
de teu andar suave
de ave
distância de barco
no azul da enseada
Gosto
de teus lábios úmidos
entretanto desertos
abertos
a meu êxtase lúcido
ávido de murmúrios
ZOOLÓGICO
Não leio o poema como o azul dos olhos
nem vejo as naves como a luz do ocaso
nada transformará lágrimas em frutos
nada redimirá as faces desbotadas.
Pássaro apenas
o bico inerte
as pernas rotas
os pés inchados
O silêncio perturba meu silêncio
nauta que se perdeu
imobilizado pêndulo
complexo sistema de horas
e sons estagnados.
Na gaveta do tempo
guardei os sapatos de outrora
o velho terno marrom
passeia em conúbio com as manhãs
sepultadas na poeira longínqua
Ficou a pele riscada de luto
o cimento categórico do presente
A vontade de rir envelheceu
Um dia alguém há de encontrar a fera
e penetrando sua crespa geografia
saberá que seus olhos ardem como brasas.
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