Número 177 - Ano 4

São Paulo, quarta-feira, 23 de agosto de 2006 

«Escrevo para saborear uma outra língua.» (António Ramos Rosa) *
 


Claudia Roquette-Pinto


Caros,


Um dos expoentes da geração que começou a publicar nos anos 90, Claudia Roquette-Pinto é carioca de 1963 e já tem na bagagem cinco livros de poesia. Estreou em 1991, com Os Dias Gagos. Lançou, depois, Saxífraga (1993), Zona de Sombra (1997), Corola (2001 – prêmio Jabuti 2002) e Margem de Manobra (2003).

Claudia cursou letras na PUC do Rio e é tradutora literária. Nos tempos da faculdade, criou o jornal cultural Verve, iniciativa que durou cinco anos — uma eternidade para publicações dessa natureza.

Os poemas mostrados aqui são todos extraídos dos dois trabalhos mais recentes de Claudia. Em Corola, ela trabalha com a metáfora da flor e das partes da flor, uma coisa viva — e, como tal, frágil e misteriosa — para abrir um leque de possibilidades semânticas.

Às vezes, a flor é o próprio trabalho poético, minuciosa construção, arquitetada pétala a pétala. Isso está sugerido no poema "O Dia Inteiro", no qual a poeta persegue uma idéia e sabe que dispõe de muito pouco para materializar uma obra "segura apenas por um fio, frágil e físsil". A poeta tenta criar uma lente capaz de focar um "hipotético jardim".

Explicitamente metalingüístico, o poema "Por que Você me Abandona" é dedicado "à poesia". Ali a poeta se declara perdida entre hortênsias enquanto a chuva cai "sobre rosas que desistiram".
Em outros momentos, o poema se ocupa do ambiente onde supostamente cresceria a flor, agora talvez uma flor natural. É o que ocorre em "De Mãos Postas", que observa um louva-a-deus num fim de tarde. Há vários outros desses poemas que se debruçam sobre quadros naturais.

No livro Margem de Manobra, os poemas metalingüísticos dão lugar a textos que visitam recortes de uma realidade mais crua. Em "Sítio", o cenário, aparentemente, é o Rio de Janeiro atual. "O morro está pegando fogo", anuncia o primeiro verso. O entrecho termina em tragédia, mas — no poema e na vida real — o tom é de uma normalidade quase total.

O clima de violência se repete no poema "Em Sarajevo". A
amostra se conclui com o belo "Poema de Aniversário", no qual uma "mulher-de-ninguém" acorda "entre os lençóis doloridos" e sustenta nas mãos seu próprio coração partido. A autora fecha o poema que dá título ao livro (não transcrito aqui) com a seguinte frase: "eis o último tiro / sem margem de manobra". O tom apreensivo dos textos parece concluir que estamos acuados de várias formas, com pouco espaço para dar a volta por cima.

A poesia de Claudia Roquette-Pinto é uma arte que trabalha por dentro e por fora da palavra. Feita de construções delicadas, tem assonâncias precisas, ajustes de relojoeiro. As rimas, discretas, estabelecem ritmos, criam nexos surpreendentes.


Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



 

Sem margem de manobra

Claudia Roquette-Pinto

 





Nathaniel Skousen - The yellow hat
Nathaniel Skousen, americano, O chapéu amarelo




O DIA INTEIRO

O dia inteiro perseguindo uma idéia:
vagalumes tontos contra a teia
das especulações, e nenhuma
floração, nem ao menos
um botão incipiente
no recorte da janela
empresta foco ao hipotético jardim.
Longe daqui, de mim
(mais para dentro)
desço no poço de silêncio
que em gerúndio vara madrugadas
ora branco (como lábios de espanto)
ora negro (como cego, como
medo atado à garganta)
segura apenas por um fio, frágil e físsil,
ínfimo ao infinito,
mínimo onde o superlativo esbarra
e é tudo de que disponho
até dispensar o sonho de um chão provável
até que meus pés se cravem
no rosto desta última flor.




Nathaniel Skousen - Glenda
Nathaniel Skousen, Glenda



DE MÃOS POSTAS

De mãos postas o louva-a-deus ora,
monge de primeira hora,
longe do coro das cigarras
enquanto a tarde esbarra
na noite e, ombro a ombro,
lutam o claro e a sombra
até que, pesada, vence
a escuridão.
O lago, mais que um vago
parêntese aberto na mata
é a nata de um pensamento
que, lento e lento, se formula
na superfície nula da mente
(inversamente ao que se deu
naquele primeiro dia
quando o rosto do homem abria
em precipício, sobre deus).
 



Nathaniel Skousen - The passing season
Nathaniel Skousen, A estação que se vai


POR QUE VOCÊ ME ABANDONA

                        à poesia

Por que você me abandona
no vértice da vertigem
quando a chuva cai (um Magritte)
sobre rosas que desistiram?
Por que novamente me perco
entre hortênsias, no aclive,
mais altas que homens, mais vivas
que o Exército de Terracota?
Sem você eu caminho no plano,
tudo escorre
— há um silêncio aturdido
uma cota do que morre
por dentro daquilo que brota.
Sem a sua luz, o que me resta?
Palmilhar às cegas
um quarto de veludo
onde o espelho, mudo, assiste
à fuga do que reflete.




Nathaniel Skousen - Ballerina portrait
Nathaniel Skousen, Retrato de bailarina



A SERRA

A serra elétrica das cigarras parou.
Tão de repente que o dia,
que ela partia em dois,
num estalo deitou ao chão suas metades.
Ficou só esta poça de silêncio,
indiferente,
e um tremor de alfinetes ardendo
dentro da caixa
de onde se abre o quem.

                 
De Corola (2001)




Nathaniel Skousen - Back lit
Nathaniel Skousen, Iluminada



SÍTIO

O morro está pegando fogo.
O ar incômodo, grosso,
faz do menor movimento um esforço,
como andar sob outra atmosfera,
entre panos úmidos, mudos,
num caldo sujo de claras em neve.
Os carros, no viaduto,
engatam sua centopéia:
olhos acesos, suor de diesel,
ruído motor, desespero surdo.
O sol devia estar se pondo, agora
― mas como confirmar sua trajetória
debaixo desta cúpula de pó,
este céu invertido?
Olhar o mar não traz nenhum consolo
(se ele é um cachorro imenso, trêmulo,
vomitando uma espuma de bile,
e vem acabar de morrer na nossa porta).
Uma penugem antagonista
deitou nas folhas dos crisântemos
e vai escurecendo, dia-a-dia,
os olhos das margaridas,
o coração das rosas.
De madrugada,
muda na caixa refrigerada,
a carga de agulhas cai queimando
tímpanos, pálpebras:
O menino brincando na varanda.
Dizem que ele não percebeu.
De outro modo poderia ainda
ter virado o rosto:
"Pai!
acho que um bicho me mordeu!" assim
que a bala varou sua cabeça?




Nathaniel Skousen - Julien
Nathaniel Skousen, Julien



EM SARAJEVO

Na primeira foto ela ri,
selvagem,
e se mistura às amigas.
Um ano mais tarde,
posa com as mãos no colo,
coluna reta,
os pés cruzados pra trás.
Por dentro do uniforme pressente
uma mulher, a passos largos,
galgando as ruas de grandes cidades
— quem sabe no exterior.
Quando a vi, ali, distraída,
na escada do ônibus escolar,
nada me preparou para suas pernas abertas,
no meio a flor dilacerada
repetindo, entre as coxas,
o buraco da bala no peito:
um dois pontos insólito.





Nathaniel Skousen - Patina
Nathaniel Skousen, Patina



POEMA DE ANIVERSÁRIO

Sozinha — esplendidamente —
com a fotografia do engano
emoldurada em branco na parede
— paisagem a ser visitada todo santo dia;
com a lantejoula de prata
e a bolsa de madrepérola
pendendo, em plena tolice, do cabide
(filigranas para o adorno
dessa mulher-de-ninguém)
ela acorda entre os lençóis doloridos
por várias ausências, superpostas,
enquanto no sonho
o quase-toque das bocas
que o gongo do telefone
vem, habilmente, cortar.
Intrépida, exposta
ao vento e ao sol a pele
que, antes, o metal do penhor recobria.
Sozinha do lado de fora
(por dentro a própria mão sustenta,
ainda trêmulo,
o coração partido).

                 
De Margem de Manobra (2005)
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2006

Claudia Roquette-Pinto
Corola
  
Ateliê Editorial, São Paulo, 2001
• Margem de Manobra
  
Aeroplano, Rio de Janeiro, 2005
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* António Ramos Rosa, no livro Animal Olhar
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- Imagens: trabalhos do pintor americano Nathaniel Skousen