Número 219 - Ano 5

São Paulo, quarta-feira, 25 de julho de 2007 

«Verdes são os campos / de cor de limão: / assi[m] são os olhos / do meu coração.» (Luís Vaz de Camões) *
 


Fabrício Corsaletti


Caros,

Nascido em 1978 em Santo Anastácio, SP, o poeta Fabrício Corsaletti é graduado em letras pela USP e tem três livros publicados: Movediço (Labortexto, 2001) e O Sobrevivente (Hedra, 2003) e Estudos Para o Seu Corpo (Companhia das Letras, 007), que incorpora os dois primeiros títuilos e dois outros novos: "História das Demolições" e "Estudos Para o Seu Corpo".

A poesia de Corsaletti até agora parece apontar para duas direções. A primeira, registrada em especial nos dois primeiros livros, soa como se fosse um acerto de contas com a infância e a adolescência. Lá estão as lembranças da cidade natal, o convívio familiar, as dúvidas e oscilações de humor da adolescência. Leia-se, por exemplo, "Tomates".

Em "História das Demolições", o poeta reflete um sentimento de outra fase da vida: o estranhamento do jovem que vem do interior ao defrontar-se com a cidade grande. É o que se pode depreender de poemas como "História". Também em "História das Demolições" já se nota o poeta mais voltado para inquietações da juventude. Cresce aí a preocupação com a figura feminina, como se pode constatar em "Ela e Sua Cidade".

A mesma preocupação torna-se o tema central de "Estudos para o Seu Corpo", poema dividido em dezenove partes, cada qual dedicada a uma parte do corpo feminino: pernas, olhos, orelhas, boca etc. Ao lado você pode ler "Braços".

Coloquial e completamente desmetaforizada, a poesia de Corsaletti é muito marcada pela experiência do cotidiano. Talvez seja esse o rumo (ou melhor: um dos rumos) da palavra poética nestes primeiros anos século XXI.

Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



                      •o•



 

História das demolições

Fabrício Corsaletti

 



HISTÓRIA

Na cidade em que nasci
havia um bicho morto em cada sala
mas nunca se falou a respeito
os meninos cavávamos buracos nos quintais
as meninas penteavam bonecas
como em qualquer lugar do mundo
nas salas o bicho morto apodrecia
as tripas cobertas de moscas
(os anos cobertos de culpas)
e ninguém dizia nada
mais tarde bebíamos cerveja
as brincadeiras eram junto com as meninas
a noite aliviava o dia
das janelas o sangue podre
(ninguém tocava no assunto)
escorria lento e seco
e a cidade fedia era já insuportável

parti à noite despedidas de praxe
embora sem dúvidas chorasse



ELA E SUA CIDADE

Vai buscando as nuvens compactas,
como um samba perfeito,
nesta tarde de sol em que a poesia
é menos que a poesia.
Sabe onde estão os vidros da noite.
Tem dedos infinitos,
narinas transparentes,
imperfeitas sobrancelhas intocadas.
Nos seus quadris começa o mundo.
Seu passo aperfeiçoa o amor.
Há redes grávidas, amarelas
em toda a costa do mapa.
De cada bicho rouba uma surpresa.
Pantera branca, garota de colégio
(jamais um tigre de Bengala
desbotado); brancura acinzentada
do cinema em preto e branco.
E as palavras vivas, na boca viva,
são um pensamento livre.
(Ela deveria ter sido poupada para o mundo justo.)
Antes de se cansar, desaparece.
Depois amanhece.
Viver para ela deve ser bom.

                    De História das Demolições (2007)



TOMATES

os tomates
fervendo na panela
meu pai minha mãe
na sala televisão
fiquei olhando
os tomates
estava frio o bafo
quente dos tomates
esquentava as mãos

saía da panela
já naquele dia
um cheiro
forte de passado



AMOR

nos isolaremos
como se isola
o som
que sai do
sax
de Charlie Parker
como atingem
o alto-mar
alguns navios
como se perdem
datas cabelos
amigos como se consomem
laranjas doçuras
jornais
como se destroem
vidas
edifícios
motoristas

                    De Movediço (2001)

 

BALADA

6

você levantou da cama
eu a vi caminhar até o banheiro
fiquei reparando
no seu andar cauteloso que não queria me acordar
achei lindo mas quando você voltava
o despertador tocou e tive que sair para um compromisso
urgente

                    De O Sobrevivente (2003)



BRAÇOS

seus braços são a única coisa do mundo
sem morte

                    De Estudos para o Seu Corpo (2007)
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2007

Fabrício Corsaletti
In Estudos para o Seu Corpo
Cia. das Letras, São Paulo, 2007
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* Luís Vaz de Camões, in Obra Completa,
 
Aguilar, Rio de Janeiro, 1963