
Manuel Bandeira, por Cândido Portinari (recorte). Clique na imagem para ver o
quadro completo
Caros amigos,
Cinco anos atrás, nesta mesma data,12 de dezembro, circulou a primeira edição do
poesia.net. O
boletim n. 1 seguiu por e-mail para cerca de 200 endereços. Esta edição vai
para quase 3 mil leitores diretos — sem incluir as "retransmissões" feitas por
leitores. Além disso, o site
Alguma Poesia, do
qual a coleção do poesia.net é o principal conteúdo, recebe em
média 1,1 mil visitas diárias, incluindo leitores de lugares inesperados como
Irã, Vietnã e Tanzânia. Naturalmente, não faço a menor idéia do que isso
representa, mas também não nego que é motivo de alegria. A todos os que vêm
participando desta jornada, ergo um brinde em agradecimento pela boa e
estimulante companhia. Evoé, Poesia!
•o•
Para comemorar os cinco anos do poesia.net, convido um
dos poetas mais queridos do Brasil, o recifense Manuel Bandeira (1886-1968).
Este é também um bis para ele. O primeiro boletim, o de
n. 9, saiu num período de Carnaval e restringiu-se a um poema do livro
homônimo de Bandeira. Agora, a miniantologia ao lado faz uma cobertura mais
ampla da obra desse poeta. Aliás, havia naquele boletim uma espécie de deixa
para este.
Lá eu dizia:
"Talvez eu preferisse, de Bandeira, a 'Balada das Três Mulheres do Sabonete
Araxá', ou a 'Tragédia Brasileira', aquela de Misael, funcionário público, e sua
amada Maria Elvira. Ou, ainda, o incrível 'Poema Tirado de Uma Notícia de
Jornal'. Talvez eu preferisse dezenas de outros poemas, mas é Carnaval..."
Sobre Bandeira, um poeta ultraconhecido, não preciso me alongar muito. Gostaria
apenas de ressaltar dois aspectos. Um é a posição de mestre do modernismo
exercida por ele. E mestre não somente no sentido de artífice com pleno domínio
de seu ofício, mas também com o significado de professor.
Bandeira, mestre de tantos, mas em especial do mineiro Carlos Drummond de
Andrade. Aluno confesso, Drummond dedicou ao amigo um bom punhado de poemas,
entre os quais a "Ode no Cinqüentenário do Poeta", publicado no livro
Sentimento do Mundo, de 1940. "Tua violenta ternura, / tua infinita polícia,
/ tua trágica existência / (...) são razões por que te amamos / e por que nos
fazes sofrer...", escreve Drummond.
O outro ponto a ressaltar no trabalho de Manuel Bandeira é a falsa simplicidade
de seus poemas. A verdade é que não há ali simplicidade nenhuma. Isso está mais
do que provado por estudos de especialistas como Davi Arrigucci Jr. (veja-se,
desse autor, os ensaios de Humildade, Paixão e Morte – A Poesia de Manuel
Bandeira e O Cacto e As Ruínas).
Observe-se, por exemplo, a sutileza dos versos iniciais de "Os Sinos" (de O
Ritmo Dissoluto, 1924): "Sino de Belém, / Sino da Paixão... // Sino de
Belém, / Sino da Paixão... // Sino do Bonfim!... / Sino do Bonfim..." Impossível
não ouvir aí a mudança de timbre dos metais. Simples?
Mesmo os poemas que, numa primeira mirada, parecem exemplares dos poemas-piada
do primeiro modernismo, são na verdade outra coisa, muito mais funda e doída.
Até se pode ler, por exemplo, o "Poema Tirado de Uma Notícia de Jornal" com
espírito de galhofa. Mas lá no final, resta apenas um esboço de riso,
contaminado pelo gosto amargo da tragédia.
Esse é Manuel Bandeira. Um escritor que é capaz de nos proporcionar imensa
alegria estética e, ao mesmo tempo, como diz Drummond, nos faz sofrer com a
imponência do cacto que é a existência humana.
Um abraço, com a força de cinco anos, e até a próxima.
Carlos Machado
•o•
IMAGENS DO POETA
Clique
aqui ou
na imagem ao lado para ver um trecho do curta-metragem Manuel Bandeira - O
Habitante de Pasárgada, de Fernando Sabino e David Neves.
|
Profundamente
|
Manuel Bandeira |
|
DESENCANTO
Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.
Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.
E nestes versos de angústia rouca,
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.
— Eu faço versos como quem morre.
Teresópolis, 1912
De A Cinza das Horas (1917)

Fernand Leger, Three Women
BALADA DAS TRÊS MULHERES DO SABONETE ARAXÁ
As três mulheres do sabonete Araxá me invocam, me
[bouleversam, me hipnotizam.
Oh, as três mulheres do sabonete Araxá às 4 horas da tarde!
O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá!
Que outros, não eu, a pedra cortem
Para brutais vos adorarem,
Ó brancaranas azedas,
Mulatas cor da lua vem saindo cor de prata
Ou celestes africanas:
Que eu vivo, padeço e morro só pelas três mulheres do sabonete
[ Araxá!
São amigas, são irmãs, são amantes as três mulheres do
[ sabonete Araxá?
São prostitutas, são declamadoras, são acrobatas?
São as três Marias?
Meu Deus, serão as três Marias?
A mais nua é doirada borboleta.
Se a segunda casasse, eu ficava safado da vida, dava pra beber e
[ nunca mais telefonava.
Mas se a terceira morresse... Oh, então, nunca mais a minha vida
[ outrora teria sido um festim!
Se me perguntassem: queres ser estrela? queres ser rei? queres
[ uma ilha no Pacífico? Um bangalô em Copacabana?
Eu responderia: Não quero nada disso, tetrarca. Eu só quero as
[ três mulheres do sabonete Araxá:
O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá!
Teresópolis, 1931
De Estrela da Manhã (1936)
POEMA TIRADO DE UMA NOTÍCIA DE JORNAL
João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num
barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.
De Libertinagem (1930)
TRAGÉDIA BRASILEIRA
Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de
idade.
Conheceu Maria Elvira na Lapa — prostituída, com
sífilis, dermite nos dedos, uma aliança empenhada e os dentes em petição de
miséria.
Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num
sobrado no Estácio, pagou médico, dentista, manicura... Dava tudo quanto ela
queria.
Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita,
arranjou logo um namorado.
Misael não queria escândalo. Podia dar uma surra,
um tiro, uma facada. Não fez nada disso: mudou de casa.
Viveram três anos assim.
Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado,
Misael mudava de casa.
Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Rua
General Pedra, Olaria, Ramos, Bonsucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de Sapucaí,
Niterói, Encantado, Rua Clapp, outra vez no Estácio, Todos os Santos, Catumbi,
Lavradio, Boca do Mato, Inválidos...
Por fim na Rua da Constituição, onde Misael,
privado de sentidos e de inteligência, matou-a com seis tiros, e a polícia foi
encontrá-la caída em decúbito dorsal, vestida de organdi azul.
1933
De Estrela da Manhã (1936)
GESSO
Esta minha estatuazinha de gesso, quando nova
— O gesso muito branco, as linhas muito puras —
Mal sugeria imagem de vida
(embora a figura chorasse).
Há muitos anos tenho-a comigo.
O tempo envelheceu-a, carcomeu-a, manchou-a de pátina
[ amarelo-suja.
Os meus olhos de tanto a olharem,
Impregnaram-na da minha humanidade irônica de tísico.
Um dia mão estúpida
Inadvertidamente a derrubou e partiu.
Então ajoelhei com raiva, recolhi aqueles tristes fragmentos,
[ recompus a figurinha que chorava.
E o tempo sobre as feridas escureceu ainda mais o sujo
[ mordente de pátina...
Hoje esse gessozinho comercial
É tocante e vive, e me fez agora refletir
Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu.
De O Ritmo Dissoluto (1924)

Laocoonte e seus filhos enlaçados por
serpentes. Escultura de Hagesandro,
Atenodoro e Polidoro de Rodas. Museu Pio Clementino, Vaticano
O CACTO
Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária:
Laocoonte constrangido pelas serpentes,
Ugolino e os filhos esfaimados.
Evocava também o seco nordeste, carnaubais, caatingas...
Era enorme, mesmo para esta terra de feracidades excepcionais.
Um dia um tufão furibundo abateu-o pela raiz.
O cacto tombou atravessado na rua,
Quebrou os beirais do casario fronteiro,
Impediu o trânsito de bonde, automóveis, carroças,
Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quatro horas
[privou a cidade de iluminação e energia:
— Era belo, áspero, intratável.
De Libertinagem (1930)
NU
Quando estás vestida,
Ninguém imagina
Os mundos que escondes
Sob as tuas roupas.
(Assim, quando é dia,
Não temos noção
Dos astros que luzem
No profundo céu.
Mas a noite é nua,
E, nua na noite,
Palpitam teus mundos
E os mundos da noite.
Brilham teus joelhos,
Brilha o teu umbigo,
Brilha toda a tua
Lira abdominal.
Teus exíguos
— Como na rijeza
Do tronco robusto
Dois frutos pequenos —
Brilham.) Ah, teus seios!
Teus duros mamilos!
Teu dorso! Teus flancos!
Ah, tuas espáduas!
Se nua, teus olhos
Ficam nus também:
Teu olhar, mais longe,
Mais lento, mais líquido.
Então, dentro deles,
Bóio, nado, salto
Baixo num mergulho
Perpendicular.
Baixo até o mais fundo
De teu ser, lá onde
Me sorri tu’alma
Nua, nua, nua...
De Estrela da Tarde (1963)
ENTREVISTA
Vida que morre e que subsiste
Vária, absurda, sórdida, ávida,
Má!
Se me
indagar um qualquer
Repórter:
"Que há
de mais bonito
No ingrato mundo?"
Não hesito;
Responderei:
"De mais bonito
Não sei dizer. Mas de mais triste,
— De mais triste é uma mulher
Grávida. Qualquer mulher grávida."
De Estrela da Tarde (1963)
PROFUNDAMENTE
Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes, cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.
No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?
— Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.
*
Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci
Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?
— Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.
De Libertinagem (1930)
|