Allen Ginsberg
Caros amigos,
"Sou um taquígrafo de minha mente. Escrevo o que se passa nela, não o que me
circunda.Sou um poeta". Essa é uma das muitas frases de autoapresentação do
americano Allen Ginsberg (1926-1997), agitador político e cultural, e um dos
poetas mais influentes da segunda metade do século XX nos Estados Unidos e em
outros países. Ginsberg foi o poeta mais celebrado do movimento beat, uma
literatura que combinava anticonformismo existencialista, ação e emoção e que,
nos anos 60, viria a desaguar no movimento hippie.
Irwing Allen Ginsberg nasceu numa família judaica em Newark, New Jersey. O pai,
Louis Ginsberg, era poeta e professor. A mãe, Naomi Ginsberg, era militante do
Partido Comunista americano e às vezes levava os filhos (Allen tinha um irmão
mais velho) a reuniões políticas. Vítima de distúrbios mentais, Naomi passou
longos períodos em sanatórios. Esses episódios marcaram profundamente o futuro
poeta e viriam a reaparecer na genial elegia "Kaddish", escrita após a morte de
Naomi. (Kaddish, na cultura judaica, é uma oração de luto).
Nos anos 40, na Universidade de Columbia, em Nova York, Allen Ginsberg fez
amizade com uma turma da pesada: filósofos, contestadores e gente que trafegava
na contramão em sexo, drogas e literatura. Seu nome passou a ser conhecido a
partir de 1955, quando fez a histórica leitura do poema "Uivo" (Howl) na Galeria
Six, em San Francisco, na Califórnia.
Publicado em 1956 pela editora City Lights, editora do também poeta beat
Lawrence Ferlinghetti (1919-), o livro causou escândalo. Acusado de
pornográfico, rendeu um processo contra a editora e foi afinal liberado. O
choque causado pelo poema vinha de sua linguagem abertamente coloquial, que não
se furta a usar palavrões e a fazer referências diretas a situações de sexo,
inclusive à homossexualidade do autor e de alguns de seus amigos.
Obviamente influenciado pelo estilo de
Walt Whitman (1819-1892), "Uivo" transformou Ginsberg numa celebridade. Mas
o poeta continuou sua busca existencial. Viajou pelo mundo, experimentou drogas,
viveu como saltimbanco. Numa dessas viagens, conhece o Poeta Peter Orlovsky, por
quem se apaixona e que seria seu companheiro por mais de 30 anos.
Também nessa época Ginsberg toma contato com o budismo, religião que influenciou
boa parte de seu trabalho posterior. Ativista político, Ginsberg esteve à frente
de muitas manifestações, em especial dos protestos contra a guerra do Vietnã nos
anos 60. O site
AllenGinsberg.Org
mostrou certa vez fotos dele protestando, em 1971, à frente do escritório da
Varig, em San Francisco. O motivo: pedia a libertação da atriz Judith Malina,
seu marido Julian Beck e outros membros do Living Theater, presos pela ditadura
militar no Brasil, acusados de subversão.
Participante de eventos públicos, palestras, shows de rock, Ginsberg travou
amizade com muitos artistas pop, como Bob Dylan e Paul McCartney. Desse contato,
Ginsberg também passou a compor, cantar e gravar discos, lendo poemas ou
cantando. Um exemplo disso é mostrado ao lado, com o poema "Father Death Blues".
Trata-se de um texto escrito em 1976 a bordo de um avião, enquanto o autor
sobrevoava o lago Michigan, indo para o enterro do pai.
Ao lado, você pode assistir a um vídeo com Ginsberg apresentando uma versão
cantada de "Father Death Blues". Infelizmente, não encontrei uma tradução
poética desse poema. Abaixo do texto original, incluí uma tradução literal.
Nesse poema visceral, Ginsberg mostra sua imensa capacidade de — como disse na
frase citada no início — taquigrafar o que se passava em sua mente. Vale
observar também a curiosa mistura do blues, música de raiz afro-americana, com o
kaddish judaico e o budismo adotado pelo poeta na idade adulta. Ginsberg sabia a
força desse poema. Dizia que gostaria de ser lembrado por ele.
Além do blues ao pai morto, incluí na pequena antologia ao lado a primeira
página de "Uivo" (um poema caudaloso que se estende por 12 páginas) e "Um
Supermercado na Califórnia", no qual Ginsberg dialoga com Walt Whitman, um de
seus gurus poéticos do século XIX.
Em "Uivo" e "Um Supermercado", a tradução é do poeta Cláudio
Willer, autor que é no Brasil um dos maiores divulgadores da poesia da geração
beat.
Um abraço,
Carlos Machado
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CINCO ANOS
Neste mês — exatamente no dia 12/12 — o poesia.net completa cinco anos em
circulação. Por isso estampamos a tarja comemorativa no cabeçalho do boletim.
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Um taquígrafo da mente
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Allen Ginsberg |
Tradução: Cláudio Willer |
UIVO
(trecho
inicial)
Para
Carl Solomon
Eu vi os expoentes de minha geração destruídos pela
loucura,
morrendo de fome, histéricos, nus,
arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em
busca de uma dose violenta
de qualquer coisa,
"hipsters" com cabeça de anjo ansiando pelo antigo contato
celestial com o dínamo
estrelado da maquinaria da noite,
que pobres, esfarrapados e olheiras fundas, viajaram fumando
sentados na sobrenatural
escuridão dos miseráveis apartamentos
sem água quente, flutuando sobre os tetos das
cidades contemplando jazz,
que desnudaram seus cérebros ao céu sob o Elevado e viram
anjos maometanos
cambaleando iluminados nos telhados das
casas de cômodos,
que passaram por universidades com os olhos frios e
radiantes
alucinando Arkansas e tragédias à luz de William
Blake entre os estudiosos
da guerra, que foram expulsos
das
universidades por serem loucos e publicarem odes
obscenas
nas janelas do crânio,
que se refugiaram em quartos de paredes de pintura
descascada
em roupa de baixo queimando seu dinheiro em cestas
de papel, escutando o Terror através da parede,
que foram detidos em suas barbas públicas voltando por Laredo
com um cinturão de
marijuana para Nova York,
que comeram fogo em hotéis mal-pintados ou beberam
terebentina
em Paradise Alley, morreram ou flagelaram
seus
torsos noite após noite,
(...)
HOWL
For Carl Solomon
I
I saw the best minds of my generation destroyed by
madness, starving hysterical naked,
dragging themselves through the negro streets at dawn
looking for an angry fix,
angelheaded hipsters burning for the ancient heavenly
connection to the starry dynamo in the machinery
of night,
who poverty and tatters and hollow-eyed and high sat
up smoking in the supernatural darkness of
cold-water flats floating across the tops of cities
contemplating jazz,
who bared their brains to Heaven under the El and
saw Mohammedan angels staggering on
tenement roofs illuminated,
who passed through universities with radiant cool eyes
hallucinating Arkansas and Blake-light tragedy
among the scholars of war,
who were expelled from the academies for crazy &
publishing obscene odes on the windows of the
skull,
who cowered in unshaven rooms in underwear,
burning their money in wastebaskets and listening
to the Terror through the wall,
who got busted in their pubic beards returning through
Laredo with a belt of marijuana for New York,
who ate fire in paint hotels or drank turpentine in
Paradise Alley, death, or purgatoried their
torsos night after night Paradise Alley, death, or
purgatoried their torsos night after night
(...)
Allen Ginsberg, em 1978, cantando "Father Death Blues", poema escrito a
bordo de um avião, indo para o enterro do pai. Ginsberg declarou que gostaria
de ser lembrado por esse poema. Clique na imagem para assistir ao vídeo.
FATHER DEATH BLUES
Hey Father Death, I'm flying home
Hey old man, you're all alone
Hey old daddy, I know where I'm going
Father Death, don't cry any more
Mama's there underneath the floor
Brother Death, please mind the store
Old Aunty Death, don't hide your bones
Old Uncle Death, I hear your groans
O Sister Death, how sweet your moans
O Children Deaths, go breathe your breaths
Sobbing breasts'll ease your deaths
Pain is gone, tears take the rest
Genius Death, your art is done
Lover Death, your body's gone
Father Death, I'm coming home
Guru Death, your words are true
Teacher Death, I do thank you
For inspiring me to sing this blues
Buddha Death, I wake with you
Dharma Death, your mind is true
Sangha Death, we'll work it through
Suffering is what was born
Ignorance made me forlorn
Tearful truths I cannot scorn
Father Breath, once more farewell
Birth you gave was no thing ill
My heart is still, as time will tell.
July 8, 1976 (Over Lake Michigan)
BLUES
DO PAI MORTE (Tradução
literal)
Ei, Pai Morte, estou voando pra casa / Ei, velho, você está sozinho / Ei, velho
paizinho, eu sei pra onde vou // Pai Morte, não chore mais / Mamãe está lá,
embaixo do chão / Irmão Morte, por favor, tome conta da casa // Velha Titia
Morte, não esconda seus ossos / Velho Tio Morte, eu escuto seus ais / Oh, Irmã
Morte, são doces os seus lamentos // Oh, Crianças Morte, respirem seu ar / O
peito ofegante vai aliviar a morte de vocês/ A dor passou, as lágrimas levam o
resto // Gênio Morte, sua arte está completa / Amante Morte, seu corpo se foi /
Pai Morte, estou indo pra casa // Gênio Morte, suas palavras são verdadeiras /
Professor Morte eu lhe agradeço / Por me inspirar a cantar este blues // Buda
Morte, eu acordo com você / Darma Morte, sua mente é verdadeira / Sanga Morte,
vamos superar isso tudo // Sofrer é [próprio d]o que nasce / Ignorância me fez
esquecer / As verdades amargas não posso desdenhar // Pai Sopro, mais uma vez,
adeus / Sua herança não foi ruim / Meu coração está parado, como o tempo dirá.
UM SUPERMERCADO NA CALIFÓRNIA
Como
estive pensando em você esta noite, Walt Whitman,
enquanto caminhava pelas ruas sob as árvores, com dor de
cabeça, autoconsciente, olhando a lua cheia.
No
meu cansaço faminto, fazendo o Shopping das imagens, entrei no supermercado das
frutas de néon sonhando com tuas enumerações !
Que
pêssegos e que penumbras ! Famílias inteiras fazendo
suas compras a noite ! Corredores cheios de maridos !
Esposas entre os abacates, bebês nos tomates ! — e você,
Garcia Lorca, o que fazia lá, no meio das melancias ?
Eu
o vi Walt Whitman, sem filhos, velho vagabundo solitário, remexendo nas carnes
do refrigerador e lançando olhares para os garotos da mercearia.
Ouvi-o
fazer perguntas a cada um deles; Quem matou as
costeletas de porco ? Qual o preço das bananas ? Será você meu
Anjo ?
Caminhei
entre as brilhantes pilhas de latarias, seguindo-o
e sendo seguido na minha imaginação pelo detetive da loja.
Perambulamos juntos pelos amplos corredores com nosso
passo solitário, provando alcachofras, pegando cada um dos
petiscos gelados e nunca passando pelo caixa.
Aonde
vamos, Walt Whitman ? As portas fecharão em uma
hora. Para quais caminhos aponta tua barba esta noite ?
(Toco teu livro e sonho com nossa odisséia no supermercado e sinto-me absurdo.)
Caminharemos
a noite toda por solitárias ruas ? As árvores
somam sombras às sombras, luzes apagam-se nas casas,
ficaremos ambos sós.
Vaguearemos
sonhando com a América perdida do amor,
passando pelos automóveis azuis nas vias expressas, voltando
para nosso silencioso chalé ?
Ah,
pai querido, barba grisalha, velho e solitário professor
de coragem, qual América era a sua quando Caronte parou
de impelir sua balsa e Você na margem nevoenta, olhando a barca desaparecer nas
negras águas do Letes ?
Bob Dylan e Allen Ginsberg, em 1975.
Os dois eram amigos desde o início dos
anos 60. Dylan foi um dos músicos que levaram Ginsberg a também cantar.
(Foto de Elsa Dorfman, Creative Commons)
A SUPERMARKET IN CALIFORNIA
What thoughts I have of you tonight, Walt Whitman, for
I walked down the sidestreets under the trees with a
headache self-conscious looking at the full moon.
In my hungry fatigue, and shopping for images, I went
into the neon fruit supermarket, dreaming of your
enumerations!
What peaches and what penumbras! Whole families
shopping at night! Aisles full of husbands! Wives in the
avocados, babies in the tomatoes! — and you, Garcia Lorca,
what were you doing down by the watermelons?
I saw you, Walt Whitman, childless, lonely old grubber,
poking among the meats in the refrigerator and eyeing the
grocery boys.
I heard you asking questions of each: Who killed the
pork chops? What price bananas? Are you my Angel?
I wandered in and out of the brilliant stacks of cans
following you, and followed in my imagination by the store
detective.
We strode down the open corridors together in our
solitary fancy tasting artichokes, possessing every frozen
delicacy, and never passing the cashier.
Which way are we going, Walt Whitman? The doors
close in an hour. Which way does your beard point tonight?
(I touch your book and dream of our odyssey in the
supermarket and feel absurd.)
Will we walk all night through solitary streets? The
trees add shade to shade, lights out in the houses, we'll both
be lonely.
Will we stroll dreaming of the lost America of love
past blue automobiles in driveways, home to our silent
cottage?
Ah, dear father, graybeard, lonely old courage-teacher,
what America did you have when Charon quit poling his ferry
and you got out on a smoking bank and stood watching the
boat disappear on the black waters of Lethe?
Berkeley, 1955
Ouça A Supermarket in California na voz do autor.
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