Cecília Meireles
Caros,
Este é um boletim especial. Neste 12 de dezembro, o poesia.net completa
seis anos em circulação. Para mim é uma profunda alegria pensar nos poetas e nas
pequenas porções semanais — agora quinzenais — de poesia que pudemos
compartilhar durante este sexênio.
Este é o último boletim do ano. Em janeiro, como ocorre desde 2002, o
poesia.net não circula. Boas festas e feliz 2009 para todos.
Para encerrar o ano em alto nível e marcar os seis anos do boletim, esta edição
do poesia.net traz pela segunda vez a carioca Cecília Meireles
(1901-1964), um dos nomes mais destacados da poesia em língua portuguesa.
Cecília apareceu aqui quando o boletim dava os primeiros passos (poesia.net
n. 5, em fevereiro de 2003). É justo que voltemos a ela.
Se alguém quisesse resumir numa só palavra a poesia de Cecília Meireles, não
erraria muito se escolhesse "música". De um lado, não é difícil perceber que os
versos dela perseguem de forma incessante a musicalidade das palavras. De outro,
a própria poeta fornece, em toda a sua obra, sobejas indicações de seus vínculos
com a arte dos sons.
Alguns de seus livros têm títulos explicitamente musicais: Baladas para
El-Rei (1925); Vaga Música (1942); e Canções (1956). Além
disso, em toda a poesia de Cecília observa-se a presença quase obsessiva de
composições cujos títulos incluem palavras como "canção", "cântico", "cantiga",
"modinha", "valsa", "chorinho", "guitarra", "realejo", "serenata".
Vale lembrar, ainda, os poemas cujo título não fazem
referência a música mas que também são cantigas, como o célebre "Motivo" ("Eu
canto porque o instante existe / e a minha vida está completa. / Não sou alegre
nem sou triste: / sou poeta").
Neste boletim reuni alguns desses poemas nitidamente musicais de Cecília
Meireles. Findemos o ano ao som das harmonias de Cecília Meireles.
Um abraço, e até fevereiro. Feliz 2009 para todos.
Carlos Machado
•o•
Cecília Meireles nasceu no Rio de Janeiro em
1901. Seus pais morreram cedo: o pai, três meses antes do nascimento da filha; e
a mãe, quando a menina contava três anos. Quem a criou foi a avó materna,
Jacinta Garcia Benevides, portuguesa dos Açores. Apaixonada pelos livros,
Cecília diplomou-se na Escola Normal em 1917. Desde criança estudou música, o
que talvez explique seu apurado ouvido para o ritmo e as sonoridades na poesia.
Ao longo do tempo, além de exercer o magistério, atuou como jornalista, lecionou
literatura, escreveu ensaios, prosa e verso.
Em 1922, casa-se com o artista plástico português Fernando Correia Dias.
Nascem-lhe três filhas desse casamento. Vítima de depressão aguda, o marido
suicida-se em 1935. Cecília casa-se outra vez em 1940, com o engenheiro
agrônomo Heitor Vinícius da Silveira Grilo.
Praticante da poesia desde os nove anos de idade, Cecília estreou em 1919, com
Espectros e escreveu cerca de duas dezenas de títulos. Nos versos dela
destaca-se um lirismo de traços místicos que o crítico Darcy Damasceno
identifica uma "poesia do sensível e do imaginário". Mas há também a Cecília
colada aos fatos e à História que se revela no Romanceiro da Inconfidência
(1953), um dos pontos mais luminosos de seu trabalho. Também não se pode deixar
de citar sua dedicação ao público infantil expressa no clássico Ou Isto ou
Aquilo, de 1964, que vem encantando gerações de pais e pequenos leitores.
Cecília Meireles fechou os olhos em 9 de novembro de 1964, dois dias após
completar 63 anos.
poesia.net entra
em recesso
A todos os leitores do poesia.net desejo um ano novo
com muita saúde, paz e poesia.
Durante o mês de janeiro, o boletim não circulará. Espero
retornar em fevereiro para nosso encontro quinzenal.
FELIZ 2009!
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Canções de Cecília
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Cecília Meireles |
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MOTIVO
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou se desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno e asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.
De Viagem (1939)
BALADA DAS DEZ BAILARINAS DO CASSINO
Dez bailarinas deslizam
por um chão de espelho.
Têm corpos egípcios com placas douradas,
pálpebras azuis e dedos vermelhos.
Levantam véus brancos, de ingênuos aromas,
e dobram amarelos joelhos.
Andam as dez bailarinas
sem voz, em redor das mesas.
Há mãos sobre facas, dentes sobre flores,
e com os charutos toldam as luzes acesas.
Entre a música e a dança escorre
uma sedosa escada de vileza.
As dez bailarinas avançam
como gafanhotos perdidos.
Avançam, recuam, na sala compacta,
empurrando olhares e arranhando o ruído.
Tão nuas se sentem que já vão cobertas
de imaginários, chorosos vestidos.
As dez bailarinas escondem
nos cílios verdes as pupilas.
Em seus quadris fosforescentes,
passa uma faixa de morte tranqüila.
Como quem leva para a terra um filho morto,
levam seu próprio corpo, que baila e cintila.
Os homens gordos olham com um tédio enorme
as dez bailarinas tão frias.
Pobres serpentes sem luxúria,
que são crianças, durante o dia.
Dez anjos anêmicos, de axilas profundas,
embalsamados de melancolia.
Vão perpassando como dez múmias,
as bailarinas fatigadas.
Ramo de nardos inclinando flores
azuis, brancas, verdes, douradas.
Dez mães chorariam, se vissem
as bailarinas de mãos dadas.
De Retrato Natural (1949)
CANÇÃO
Nunca eu tivera querido
dizer palavra tão louca:
bateu-me o vento na boca,
e depois no teu ouvido.
Levou somente a palavra,
deixou ficar o sentido.
O sentido está guardado
no rosto com que te miro,
neste perdido suspiro
que te segue alucinado,
no meu sorriso suspenso
como um beijo malogrado.
Nunca ninguém viu ninguém
que o amor pusesse tão triste.
Essa tristeza não viste,
e eu sei que ela se vê bem...
Só se aquele mesmo vento
fechou teus olhos, também...
De Viagem (1939)
CANÇÃO
No desequilíbrio dos mares,
as proas giraram sozinhas...
Numa das naves que afundaram
é que certamente tu vinhas.
Eu te esperei todos os séculos
sem desespero e sem desgosto,
e morri de infinitas mortes
guardando sempre o mesmo rosto.
Quando as ondas te carregaram,
meu olhos, entre águas e areias,
cegaram como os das estátuas,
a tudo que existe alheias.
Minhas mãos pararam sobre o ar
e endureceram junto ao vento,
e perderam a cor que tinham
e a lembrança do movimento.
E o sorriso que eu te levava
desprendeu-se e caiu de mim:
e só talvez ele ainda viva
dentro dessas águas sem fim.
De Viagem (1939)
CANÇÃO
Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
— depois, abri o mar com as mãos,
para meu sonho naufragar.
Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre dos meus dedos
colore as areias desertas.
O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...
Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.
Depois, tudo estará perfeito:
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e minhas duas mãos quebradas.
De Viagem (1939)
CANÇÃO DE ALTA NOITE
Alta noite, lua quieta,
muros frios, praia rasa.
Andar, andar, que um poeta
não necessita de casa.
Acaba-se a última porta.
O resto é o chão do abandono.
Um poeta, na noite morta,
não necessita de sono.
Andar... Perder o seu passo
na noite, também perdida.
Um poeta, à mercê do espaço,
nem necessita de vida.
Andar... — enquanto consente
Deus que a noite seja andada.
Porque o poeta, indiferente,
anda por andar — somente.
Não necessita de nada.
De Vaga Música (1942)
CANÇÃO DO CAMINHO
Por aqui vou sem programa,
sem rumo,
sem nenhum itinerário.
O destino de quem ama
é vário,
como o trajeto do fumo.
Minha canção vai comigo.
Vai doce.
Tão sereno é seu compasso
que penso em ti, meu amigo.
— Se fosse,
em vez da canção, teu braço!
Ah! mas logo ali adiante
— tão perto! —
acaba-se a terra bela.
Para este pequeno instante,
decerto,
é melhor ir só com ela.
(Isto são coisas que digo,
que invento,
para achar a vida boa...
A canção que vai comigo
é a forma de esquecimento
do sonho sonhado à toa...)
De Vaga Música (1942)
GUITARRA
Punhal de prata já eras,
punhal de prata!
Nem foste tu que fizeste
a minha mão insensata.
Vi-te brilhar entre as pedras,
punhal de prata!
— no cabo, flores abertas,
no gume, a medida exata,
a exata, a medida certa,
punhal de prata,
para atravessar-me o peito
com uma letra e uma data.
A maior pena que eu tenho,
punhal de prata,
não é de me ver morrendo,
mas de saber quem me mata.
De Viagem (1939)
MODINHA
Tuas palavras antigas
deixei-as todas, deixei-as,
junto com as minhas cantigas,
desenhadas nas areias.
Tantos sóis e tantas luas
brilharam sobre essas linhas,
das cantigas — que eram tuas —
das palavras — que eram minhas!
O mar, de língua sonora,
sabe o presente e o passado.
Canta o que é meu, vai-se embora:
que o resto é pouco e apagado.
De Vaga Música (1942)
SERENATA
Repara na canção tardia
que timidamente se eleva,
num arrulho de noite fria.
O orvalho treme sobre a treva
e o sonho da noite procura
a voz que o vento abraça e leva.
Repara a canção tardia
que oferece a um mundo desfeito
sua flor de melancolia.
É tão triste, mas tão perfeito,
o movimento em que murmura,
como o do coração no peito.
Repara na canção tardia
que por sobre o teu nome, apenas,
desenha a sua melodia.
E nessas letras tão pequenas
o universo inteiro perdura.
E o tempo suspira na altura
por eternidades serenas.
De Viagem (1939)
PÁSSARO
Aquilo que ontem cantava
já não canta.
Morreu de uma flor na boca:
não do espinho na garganta.
Ele amava a água sem sede,
e, em verdade,
tendo asas, fitava o tempo,
livre de necessidade.
Não foi desejo ou imprudência:
não foi nada.
E o dia toca em silêncio
a desventura causada.
Se acaso isso é desventura:
ir-se a vida
sobre uma rosa tão bela,
por uma tênue ferida.
De Retrato Natural (1949)
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