Número 260 - Ano 7

São Paulo, quarta-feira, 10 de dezembro de 2008 

«Estou solto no mundo largo./ Lúcido cavalo / com substância de anjo / circula através de mim.» (Carlos Drummond de Andrade) *
 


Cecília Meireles


Caros,


Este é um boletim especial. Neste 12 de dezembro, o poesia.net completa seis anos em circulação. Para mim é uma profunda alegria pensar nos poetas e nas pequenas porções semanais — agora quinzenais — de poesia   que pudemos compartilhar  durante este sexênio. 

Este é o último boletim do ano. Em janeiro, como ocorre desde 2002, o poesia.net não circula. Boas festas e feliz 2009 para todos.


Para encerrar o ano em alto nível e marcar os seis anos do boletim, esta edição do poesia.net traz pela segunda vez a carioca Cecília Meireles (1901-1964), um dos nomes mais destacados da poesia em língua portuguesa. Cecília apareceu aqui quando o boletim dava os primeiros passos (poesia.net n. 5, em fevereiro de 2003). É justo que voltemos a ela.

Se alguém quisesse resumir numa só palavra a poesia de Cecília Meireles, não erraria muito se escolhesse "música". De um lado, não é difícil perceber que os versos dela perseguem de forma incessante a musicalidade das palavras. De outro, a própria poeta fornece, em toda a sua obra, sobejas indicações de seus vínculos com a arte dos sons.

Alguns de seus livros têm títulos explicitamente musicais: Baladas para El-Rei (1925); Vaga Música (1942); e Canções (1956). Além disso, em toda a poesia de Cecília observa-se a presença quase obsessiva de composições cujos títulos incluem palavras como "canção", "cântico", "cantiga", "modinha", "valsa", "chorinho", "guitarra", "realejo", "serenata".

Vale lembrar, ainda, os poemas cujo título não fazem referência a música mas que também são cantigas, como o célebre "Motivo" ("Eu canto porque o instante existe / e a minha vida está completa. / Não sou alegre nem sou triste: / sou poeta").

Neste boletim reuni alguns desses poemas nitidamente musicais de Cecília Meireles. Findemos o ano ao som das harmonias de Cecília Meireles.

Um abraço, e até fevereiro. Feliz 2009 para todos.

Carlos Machado



                      •o•

Cecília Meireles nasceu no Rio de Janeiro em 1901. Seus pais morreram cedo: o pai, três meses antes do nascimento da filha; e a mãe, quando a menina contava três anos. Quem a criou foi a avó materna, Jacinta Garcia Benevides, portuguesa dos Açores. Apaixonada pelos livros, Cecília diplomou-se na Escola Normal em 1917. Desde criança estudou música, o que talvez explique seu apurado ouvido para o ritmo e as sonoridades na poesia. Ao longo do tempo, além de exercer o magistério, atuou como jornalista, lecionou literatura, escreveu ensaios, prosa e verso.

Em 1922, casa-se com o artista plástico português Fernando Correia Dias. Nascem-lhe três filhas desse casamento. Vítima de depressão aguda, o marido suicida-se em 1935. Cecília casa-se outra vez em 1940, com o  engenheiro agrônomo Heitor Vinícius da Silveira Grilo.

Praticante da poesia desde os nove anos de idade, Cecília estreou em 1919, com Espectros e escreveu cerca de duas dezenas de títulos. Nos versos dela destaca-se um lirismo de traços místicos que o crítico Darcy Damasceno identifica uma "poesia do sensível e do imaginário". Mas há também a Cecília colada aos fatos e à História que se revela no Romanceiro da Inconfidência (1953), um dos pontos mais luminosos de seu trabalho. Também não se pode deixar de citar sua dedicação ao público infantil expressa no clássico Ou Isto ou Aquilo, de 1964, que vem encantando gerações de pais e pequenos leitores.

Cecília Meireles fechou os olhos em 9 de novembro de 1964, dois dias após completar 63 anos.



 


poesia.net entra
em recesso

A todos os leitores do poesia.net desejo um ano novo com muita saúde, paz e poesia.

Durante o mês de janeiro, o boletim não circulará. Espero retornar em fevereiro para nosso encontro quinzenal.


FELIZ 2009!
 

Canções de Cecília

Cecília Meireles

 

 

MOTIVO

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou se desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno e asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.

De Viagem (1939)




"Entre a música e a dança escorre / uma sedosa escada de vileza" (Cecília Meireles) - Quadro: Ballerinas - © Copyright 2004. Niagara Art Collection: Ballet Paintings



BALADA DAS DEZ BAILARINAS DO CASSINO

Dez bailarinas deslizam
por um chão de espelho.
Têm corpos egípcios com placas douradas,
pálpebras azuis e dedos vermelhos.
Levantam véus brancos, de ingênuos aromas,
e dobram amarelos joelhos.

Andam as dez bailarinas
sem voz, em redor das mesas.
Há mãos sobre facas, dentes sobre flores,
e com os charutos toldam as luzes acesas.
Entre a música e a dança escorre
uma sedosa escada de vileza.

As dez bailarinas avançam
como gafanhotos perdidos.
Avançam, recuam, na sala compacta,
empurrando olhares e arranhando o ruído.
Tão nuas se sentem que já vão cobertas
de imaginários, chorosos vestidos.

As dez bailarinas escondem
nos cílios verdes as pupilas.
Em seus quadris fosforescentes,
passa uma faixa de morte tranqüila.
Como quem leva para a terra um filho morto,
levam seu próprio corpo, que baila e cintila.

Os homens gordos olham com um tédio enorme
as dez bailarinas tão frias.
Pobres serpentes sem luxúria,
que são crianças, durante o dia.
Dez anjos anêmicos, de axilas profundas,
embalsamados de melancolia.

Vão perpassando como dez múmias,
as bailarinas fatigadas.
Ramo de nardos inclinando flores
azuis, brancas, verdes, douradas.
Dez mães chorariam, se vissem
as bailarinas de mãos dadas.

De Retrato Natural (1949)



CANÇÃO

Nunca eu tivera querido
dizer palavra tão louca:
bateu-me o vento na boca,
e depois no teu ouvido.

Levou somente a palavra,
deixou ficar o sentido.

O sentido está guardado
no rosto com que te miro,
neste perdido suspiro
que te segue alucinado,
no meu sorriso suspenso
como um beijo malogrado.

Nunca ninguém viu ninguém
que o amor pusesse tão triste.
Essa tristeza não viste,
e eu sei que ela se vê bem...
Só se aquele mesmo vento
fechou teus olhos, também...

De Viagem (1939)

 

CANÇÃO

No desequilíbrio dos mares,
as proas giraram sozinhas...
Numa das naves que afundaram
é que certamente tu vinhas.

Eu te esperei todos os séculos
sem desespero e sem desgosto,
e morri de infinitas mortes
guardando sempre o mesmo rosto.

Quando as ondas te carregaram,
meu olhos, entre águas e areias,
cegaram como os das estátuas,
a tudo que existe alheias.

Minhas mãos pararam sobre o ar
e endureceram junto ao vento,
e perderam a cor que tinham
e a lembrança do movimento.

E o sorriso que eu te levava
desprendeu-se e caiu de mim:
e só talvez ele ainda viva
dentro dessas águas sem fim.

De Viagem (1939)
 


"debaixo da água vai morrendo / meu sonho, dentro de um navio" (Cecília Meireles) - Ilustração: Leda Cruz (http://ledacruz.com/)


CANÇÃO

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
— depois, abri o mar com as mãos,
para meu sonho naufragar.

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre dos meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito:
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e minhas duas mãos quebradas.

De Viagem (1939)

 

CANÇÃO DE ALTA NOITE

Alta noite, lua quieta,
muros frios, praia rasa.

Andar, andar, que um poeta
não necessita de casa.

Acaba-se a última porta.
O resto é o chão do abandono.

Um poeta, na noite morta,
não necessita de sono.

Andar... Perder o seu passo
na noite, também perdida.

Um poeta, à mercê do espaço,
nem necessita de vida.

Andar... — enquanto consente
Deus que a noite seja andada.

Porque o poeta, indiferente,
anda por andar — somente.
Não necessita de nada.

De Vaga Música (1942)



CANÇÃO DO CAMINHO

Por aqui vou sem programa,
sem rumo,
sem nenhum itinerário.
O destino de quem ama
é vário,
como o trajeto do fumo.

Minha canção vai comigo.
Vai doce.
Tão sereno é seu compasso
que penso em ti, meu amigo.
— Se fosse,
em vez da canção, teu braço!

Ah! mas logo ali adiante
— tão perto! —
acaba-se a terra bela.
Para este pequeno instante,
decerto,
é melhor ir só com ela.

(Isto são coisas que digo,
que invento,
para achar a vida boa...
A canção que vai comigo
é a forma de esquecimento
do sonho sonhado à toa...)

De Vaga Música (1942)



"no gume a medida exata //a exata, a medida certa, / punhal de prata" (Cecília Meireles) - Quadro: Vermeer - A guitarrista (1672)


GUITARRA

Punhal de prata já eras,
punhal de prata!
Nem foste tu que fizeste
a minha mão insensata.

Vi-te brilhar entre as pedras,
punhal de prata!
— no cabo, flores abertas,
no gume, a medida exata,

a exata, a medida certa,
punhal de prata,
para atravessar-me o peito
com uma letra e uma data.

A maior pena que eu tenho,
punhal de prata,
não é de me ver morrendo,
mas de saber quem me mata.

De Viagem (1939)



MODINHA

Tuas palavras antigas
deixei-as todas, deixei-as,
junto com as minhas cantigas,
desenhadas nas areias.

Tantos sóis e tantas luas
brilharam sobre essas linhas,
das cantigas — que eram tuas —
das palavras — que eram minhas!

O mar, de língua sonora,
sabe o presente e o passado.
Canta o que é meu, vai-se embora:
que o resto é pouco e apagado.

De Vaga Música (1942)



SERENATA

Repara na canção tardia
que timidamente se eleva,
num arrulho de noite fria.

O orvalho treme sobre a treva
e o sonho da noite procura
a voz que o vento abraça e leva.

Repara a canção tardia
que oferece a um mundo desfeito
sua flor de melancolia.

É tão triste, mas tão perfeito,
o movimento em que murmura,
como o do coração no peito.

Repara na canção tardia
que por sobre o teu nome, apenas,
desenha a sua melodia.

E nessas letras tão pequenas
o universo inteiro perdura.
E o tempo suspira na altura

por eternidades serenas.

De Viagem (1939)




"Aquilo que ontem cantava / já não canta"  (Cecília Meireles)

 

PÁSSARO

Aquilo que ontem cantava
já não canta.
Morreu de uma flor na boca:
não do espinho na garganta.

Ele amava a água sem sede,
e, em verdade,
tendo asas, fitava o tempo,
livre de necessidade.

Não foi desejo ou imprudência:
não foi nada.
E o dia toca em silêncio
a desventura causada.

Se acaso isso é desventura:
ir-se a vida
sobre uma rosa tão bela,
por uma tênue ferida.

De Retrato Natural (1949)

 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2008

Cecília Meireles
•  Obra Poética - Volume Único
    Nova Aguilar, 3a. ed., 6a. reimpr., Rio de Janeiro, 1987
______________
* Carlos Drummond de Andrade,"Idade Madura",
  in A Rosa do Povo (1945)