Número 282 - Ano 10

São Paulo, quarta-feira, 4 de julho de 2012

«Não se morre / uma só vez, nem de vez.» (Carlos Drummond de Andrade) *
 


Conceição Lima
 

Caro leitor,

Desde pequena, a poeta são-tomense Conceição Lima prestou atenção ao poder das palavras. O pai, músico, compunha canções para a mãe após algum desentendimento do casal. Embalada pela música, a mãe voltava às boas. A menina Conceição notou que as palavras tinham a capacidade de restaurar a paz. Ao mesmo tempo, percebia que elas ferem, porque antes o pai magoara a mãe também com palavras.

Conceição nasceu em 1961 na ilha de São Tomé, em São Tomé e Príncipe, país africano de língua portuguesa que se tornou independente de Portugal em 1975, após 500 anos de colonização. Ela cresceu em meio às lutas políticas pela independência de seu país. Formada pelo King’s College de Londres, Conceição é jornalista e trabalha para a BBC.

Até o momento, publicou dois livros de poesia: O Útero da Casa, em 2004, e A Dolorosa Raiz do Micondó, de 2006. Este último foi agora editado no Brasil pela Geração Editorial. Os poemas ao lado, que compõem a breve amostra do trabalho poético de Conceição Lima, foram extraídos dessa edição brasileira, com exceção de “Afroinsularidade”, que está no livro de estreia da autora.

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O micondó, ou imbondeiro, é uma árvore considerada sagrada por muitos povos africanos. Espécie de baobá, é conhecida como árvore da vida, devido à sua incrível longevidade, que chega a 6 mil anos. Portanto, em muitas comunidades, as gerações passam e as árvores sagradas permanecem, assistindo a tudo. É por isso que no poema “Sóya” (lenda) Conceição Lima escreve: “Há-de nascer de novo o micondó — / belo, imperfeito, no centro do quintal”. A árvore é uma referência ― quase certeza ― de futuro e de esperança.

Toda a poesia de Conceição Lima é marcada pela realidade de seu país. Observe a descrição breve e precisa que ela faz de uma cena de trabalho infantil em “O vendedor”. Do mesmo modo, “A Lenda da Bruxa” apresenta uma personagem de rua, a velha san Malanzo, tida como feiticeira. Em São Tomé e Príncipe, “san” quer dizer senhora.

Em “Afroinsularidade”, a escritora refaz poeticamente o acidentado percurso histórico de seu país natal. Localizada no Golfo da Guiné, a apenas 300 km da costa continental, a ilha de São Tomé foi usada como um entreposto para o tráfico de africanos escravizados que seriam levados para o Caribe e para o Brasil. Também lá, a escravidão foi praticada oficialmente até 1876. Mesmo com o fim oficial do regime escravista, os colonizadores portugueses mantiveram os trabalhadores rurais em condições degradantes até avançado período do século passado.

Diferentemente do que ocorreu em Angola e Moçambique, não houve guerra em São Tomé e Príncipe. Mas certamente a luta armada nos territórios insurretos ganhou reverberação nas ilhas são-tomenses, na forma de repressão e humilhações. Não é por acaso que Conceição escreve: “Deixaram nas ilhas um legado / de híbridas palavras e tétricas plantações”. Nessas plantações encontram-se ainda os espectros do passado colonial e escravista: “cada cafeeiro respira / agora um escravo morto”.

Ao pesquisar sobre palavras do português são-tomense, descobri algo que é também um sinal inequívoco desse passado. A palavra “tlaba” corresponde a trabalho. E “tlabe”, da mesmíssima origem, significa infelicidade, infortúnio, padecimento.

O mesmo tema é retomado em “A Mão”, no qual Conceição escreve: “Toma o ventre da terra / e planta no pedaço que te cabe / esta raiz enxertada de epitáfios”. O texto convida a plantar, construir, seguir em frente, tomando como ponto de partida uma semente marcada pela dor e pelo sofrimento. Este poema é uma das páginas mais pungentes da poeta são-tomense.

No texto “Na Praia de São João”, Conceição Lima invoca uma figura mítica, um aguardado “mercador lunar”, que anima o passo das mulheres, incentiva os negócios e dá vida ao burburinho das feiras. Um mito envolvente.

Por fim, vem uma sátira aos burocratas em “Certos Pequenos Tiranos”. Fala-se daqueles personagens que “tomam por amor a vénia dos vassalos (...) e distribuem grãos de favor”. Em suma, os tiranetes ironizados neste poema são figuras universais: corruptos, traficantes de influência, emotivos e até carinhosos, quando lhes convém. Certamente não são espécimes existentes apenas em São Tomé.

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Listo a seguir o significado de algumas palavras do português são-tomense que aparecem nos poemas. O volume A Dolorosa Raiz do Micondó traz, no final, um glossário com parte desses termos, mas encontrei a maioria deles mediante pesquisa na internet. Em alguns casos indicados, não fui capaz de encontrar uma “tradução” segura.

calema – onda forte
palayê – vendedora
san – senhora
sóya – conto, lenda, fábula
oká – árvore associada a forças maléficas
kukuku – coruja
marapião – árvore a cuja madeira se atribui propriedades exorcizantes
ússua – dança de pares, similar à quadrilha
zêtê d’ochi – azeite doce
tempi – não encontrei significado
ubaga tela – suponho seja “panela de barro”; ubaga é panela, tela é terra
calulu – prato típico de São Tomé e Príncipe
mlajincon – manjericão
luchan – lugarejo, aldeia
 

Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado




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BIBLIOTECA ROMENA

Atenção, editores e escritores brasileiros. Repasso aqui um pedido que me faz a poeta Vera Lúcia de Oliveira. A professora Veronica Manole, da Biblioteca Portuguesa da Faculdade de Letras de Cluj-Napoca, na Romênia, quer montar um acervo de livros brasileiros. Atualmente, a biblioteca tem apenas obras portuguesas, e pede doações. Se vocês quiserem enviar livros, o endereço é:

Prof. Veronica Manole
BIBLIOTECA PORTUGUESA
FACULTATEA DE LITERE
Str. HOREA, N. 31
CLUJ-NAPOCA
ROMANIA 400202


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AGRADECIMENTO

Faço aqui um agradecimento especial aos leitores que recebem o boletim e os retransmitem a listas de amigos, grupos de discussão e afins. Essas iniciativas multiplicam o alcance do poesia.net. Muito obrigado.

 

A dolorosa raiz do micondó 

Conceição Lima

 



O VENDEDOR

Os olhos vagalumem como pirilampos
no encalço dos fregueses
Do fio que é a mão esvoaçam
sacos de plástico
precários, multicores balões

A Feira do Ponto é o seu pátio.

Ao fim do dia, parcimonioso,
devolve a bolsa das moedas a um adulto
e recupera a idade.



Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) e Conceição Lima
A poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) e Conceição Lima
na ilha de São Tomé



NA PRAIA DE SÃO JOÃO

Há séculos que a sua fronte taciturna
desafia a premonição das estrelas —
os rijos movimentos, o solitário remo
a herdada sapiência de pressentir
o cheiro da calema e a mandíbula do tubarão.

Ele que acredita em deus e nos deuses
na bondade dos amuletos, na ciência dos astros
na falível destreza dos seus braços
há séculos que parte com a alvorada
sem ninguém o ver.

Todos os dias aguardamos porém o seu retorno —
a brancura do sal nos músculos retesados
o impulso final
e a canoa implantada no colo da praia.

Em seu rasto perscrutamos ao cair do dia
os limites do mar
Por seu vulto ganham nova pressa
os passos das mulheres
o tilintar das moedas, o pregão das palayês

E se enchem de falas as feiras ao entardecer.

Deste lado, a outra margem do infinito
onde o crepúsculo saúda o regresso
de lá do horizonte, do hemisfério da espuma
da linha oculta no azul espesso
do lugar onde a água só conhece a voz da água.

Nós te aguardamos
mercador lunar, despercebido guerreiro
e ao brilho das escamas que revelas
Pois sem ti a praia seria apenas praia —
o perfil do mar, a queixa do vento
ou a nudez de anónimas pegadas na areia.



A LENDA DA BRUXA

San Malanzo era velha, muito velha.
San Malanzo era pobre, muito pobre.
Não tinha filhos, não tinha netos
Não tinha sobrinhos, não tinha afilhados
Nem primos tinha e nem enteados
Ela era muito pobre e muito velha
Muito velha e muito pobre era.
Era velha, era pobre san Malanzo
Pobre e muito velha
Velha e muito pobre
Era velha e pobre
Era pobre e velha
Velha pobre.
Pobre velha
Velha
Pobre
Feiticeira.



"São meticulosos no arrumar dos papéis"  (Conceição Lima)



CERTOS PEQUENOS TIRANOS

A certos pequenos tiranos
comove-os o enigma na pétala de uma orquídea
e o langor da linha na palma da própria mão.

Algures, um estranho brinquedo falece
na secretária onde existem.

Por vezes articulam breves sentenças
e estão sempre em atritos com o mesmo orçamento.

Mas crêem no amparo de feitiços e amuletos
e segregam uma teia de invencível apatia
que tolhe as impressoras, as portas dos armários
e contrai as linhas das quatro paredes.

Porque os emociona a própria bondade
tomam por amor a vénia dos vassalos
os pequenos tiranos
que publicam altos amigos como títulos de jornal
e distribuem grãos de favor como quem outorga um foral.

São meticulosos no arrumar dos papéis
pois na simetria das coisas enterram a luz das ideias.

Mortifica-os a idade, são hipocondríacos
e só por distracção morrerão em África.

Dói a doçura da savana espezinhada nesses pequenos tiranos
A pátria em seus ombros é divisa, cartão de visita
No borrão do carimbo dispara a AKA que nunca empunharam.



A MÃO

Toma o ventre da terra
e planta no pedaço que te cabe
esta raiz enxertada de epitáfios.

Não seja tua lágrima a maldição
que seqüestra o ímpeto do grão
levanta do pó a nudez dos ossos,
a estilhaçada mão
e semeia

girassóis ou sinos, não importa
se agora uma gota anuncia
o latente odor dos tomateiros
a viva hora dos teus dedos.



"Há-de nascer de novo o micondó — belo, imperfeito, no centro do quintal." (Conceição Lima)
"Há-de nascer de novo o micondó - belo, imperfeito, no centro do quintal".



SÓYA

Há-de nascer de novo o micondó —
belo, imperfeito, no centro do quintal.
À meia-noite, quando as bruxas
povoarem okás milenários
e o kukuku piar pela última vez
na junção dos caminhos.

Sobre as cinzas, contra o vento
bailarão ao amanhecer
ervas e fetos e uma flor de sangue.

Rebentos de milho hão-de nutrir
as gengivas dos velhos
e não mais sonharão as crianças
com gatos pretos e águas turvas
porque a força do marapião
terá voltado para confrontar o mal.

Lianas abraçarão na curva do rio
a insónia dos mortos
quando a primeira mulher
lavar as tranças no leito ressuscitado.

Reabitaremos a casa, nossa intacta morada.


               De A Dolorosa Raiz do Micondó (2006)



AFROINSULARIDADE

Deixaram nas ilhas um legado
de híbridas palavras e tétricas plantações

engenhos enferrujados proas sem alento
nomes sonoros aristocráticos
e a lenda de um naufrágio nas Sete Pedras

Aqui aportaram vindos do Norte
por mandato ou acaso ao serviço do seu rei:
navegadores e piratas
negreiros ladrões contrabandistas
simples homens
rebeldes proscritos também
e infantes judeus
tão tenros que feneceram
como espigas queimadas

Nas naus trouxeram
bússolas quinquilharias sementes
plantas experimentais amarguras atrozes
um padrão de pedra pálido como o trigo
e outras cargas sem sonhos nem raízes
porque toda a ilha era um porto e uma estrada sem regresso
todas as mãos eram negras forquilhas e enxadas

E nas roças ficaram pegadas vivas
como cicatrizes — cada cafeeiro respira agora um
escravo morto.

E nas ilhas ficaram
incisivas arrogantes estátuas nas esquinas
cento e tal igrejas e capelas
para mil quilómetros quadrados
e o insurrecto sincretismo dos paços natalícios.
E ficou a cadência palaciana da ússua
o aroma do alho e do zêtê d'óchi
no tempi e na ubaga téla
e no calulu o louro misturado ao óleo de palma
e o perfume do alecrim
e do mlajincon nos quintais dos luchans

E aos relógios insulares se fundiram
os espectros — ferramentas do império
numa estrutura de ambíguas claridades
e seculares condimentos
santos padroeiros e fortalezas derrubadas
vinhos baratos e auroras partilhadas

Às vezes penso em suas lívidas ossadas
seus cabelos podres na orla do mar
Aqui, neste fragmento de África
onde, virado para o Sul,
um verbo amanhece alto
como uma dolorosa bandeira.


               De O Útero da Casa (2004)
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2012

Conceição Lima
•  Os seis primeiros poemas foram extraídos de:
    A Dolorosa Raiz do Micondó
   
Geração Editorial, São Paulo, 2012
•  O poema "Afroinsularidade" pertence ao livro:
    O Útero da Casa
   
Editorial Caminho, Lisboa, 2004
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* Carlos Drummond de Andrade, "A Mesa", in Claro Enigma (1951)
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Foto de Sophia de Mello B. Andresen e Conceição Lima:
© 2011 Biblioteca Nacional de Portugal